O frio chegou para os refugiados. Como previsto, na sequência dos graus centígrados. Entra pelas frestas em abrigos de emergência. E o que também foi previsto, o frio vai entrando pelas frestas na política europeia e internacional, onde movimentos anti-imigração em geral, e antirrefugiados em particular, foram realimentados e reforçados pelos atentados terroristas de 12 e 13 de novembro.
Já está esmaecida a imagem de setembro, das multidões chegando à estação ferroviária de Munique, famílias com crianças e mulheres de xales coloridos sendo recebidas com doces e cobertores e cartazes de Willkommen e Welcome. Depois disso veio a busca de abrigo. A Alemanha é o país que tem mais pedidos de asilo, seguido de França, Suécia, Itália e Reino Unido. Em 2015, segundo estatísticas oficiais, foram registrados na Alemanha cerca de 760 mil pedidos de asilo, até o início de novembro. Só em Berlim, são 40 mil.
E assim a imagem mais marcante nessa nova etapa é a dos hangares do aeroporto de Berlim-Tempelhof, transformado em campo de refugiados, onde já estão mais de 2000 pessoas, famílias completas, muita criança, inclusive crianças que chegaram sozinhas ou separadas. É das poucas estruturas que ainda resta para abrigo em grande escala. Com os locais mais óbvios para abrigar refugiados, como escolas e clubes desportivos, já lotados, foram incorporados locais inusitados: o britânico “The Guardian” publicou reportagem sarcástica de um refugiado que nem percebera que o quarto que encontrara estava em Dachau, num antigo anexo do campo de concentração, e o “The New York Times” apareceu com a história do prefeito de uma aldeia alemã chamada Sumte, na Baixa Saxônia, assustado com uma cota de refugiados que era dez vezes o número de habitantes, porque as autoridades regionais tinham achado ali vários prédios administrativos desativados.
O aeroporto de Berlim-Tempelhof é uma estrutura gigantesca, construída nos 1930s, e foi usado como base americana durante o famoso bloqueio de Berlim pelos soviéticos, em 1948, quando a Força Aérea dos Estados Unidos organizou uma ponte aérea para abastecer a cidade dos artigos mais essenciais. Estava desativado. Nos hangares, em um fim de semana, foram agora montadas divisórias, do tipo usado em feiras comerciais, separando cabines, cada uma abrigando famílias, ou grupos. As imagens desse surpreendente campo de refugiados estão no site da agência da ONU para refugiados (www.unhcr.org), cubículos cheios de camas e brancos lençóis. Banheiros são fora, do tipo portátil. A operação depende de voluntários e ONGs, que providenciam algumas refeições. Mais hangares de Tempelhof estão sendo preparados, para receber outros 4000 refugiados, que esperam a decisão sobre seus pedidos de asilo.
E há os custos. Segundo uma das estimativas o custo anual do sustento de um refugiado pelo estado alemão é de 15 mil euros. Segundo um economista consultado pelo Instituto de Economia Mundial junto à Universidade de Kiel, cada refugiado permanece dependente do estado por ao menos 3 anos, antes de ter condições para se integrar no mercado de trabalho. Aceita a previsão de que permanecerá a entrada anual de perto de 1 milhão de refugiados, chegaremos a um total de 3 milhões até que esse número se estabilize, ou seja, um gasto anual de 45 bilhões de euros, ou 1,5% do PIB alemão. Mesmo que o custo seja menor, 20, 30 ou 40 bilhões, e mesmo que a economia vá bem, isso implica que será necessário cortar gastos em outros itens do orçamento público ou então aumentar impostos. Mas o foco não pode ser esse, e sim, como conseguir qualificar essas pessoas para que possam se integrar no mercado de trabalho e deixar de depender do estado. Já está claro que, depois dos atentados terroristas, essa integração ficou muito mais difícil, em todos os países europeus.
Não são, contudo, essas implicações práticas da recepção aos refugiados, ou algum tipo de cálculo de custo-benefício, o que explica a mais recente escalada de movimentos anti-imigração, que passam a ser contrários também à entrada de refugiados. Pelo menos na superfície, o que parece prevalecer é o medo, medo de que o estilo de vida que privilegia a liberdade individual seja gradualmente destruído ou absorvido com a presença maciça de gente de outra cultura e outra tradição, outros hábitos e costumes, medo do que é tão diferente, e agora, mais que tudo, medo de que agentes infiltrados do Estado Islâmico espalhem o terror.
Momentaneamente o medo bloqueia a capacidade de análise e de raciocínio. Políticos e partidos anti-imigração manipulam esses medos, e simplesmente ignoram que seus países aprovaram a Convenção das Nações Unidas relativa ao Status de Refugiado, de 1951, e os protocolos correspondentes. Já há quem proponha reformar essa convenção da ONU. Esquecem a história de seu próprio sofrimento de deslocados e refugiados durante a guerra. O fato é que estão se multiplicando na Europa e nos Estados Unidos propostas antirrefugiados, até mesmo agressões violentas a refugiados. A rigor, seriam violações da convenção da ONU. Na Alemanha, o judiciário está às voltas com vários processos correndo contra indivíduos que tentaram depredar instalações destinadas a refugiados. Que isso venha dos já conhecidos partidos ultranacionalistas nos extremos do espectro político, como Le Pen na França, PEGIDA na Alemanha, ou Amanhecer Dourado na Grécia, entre outros, não surpreende. PEGIDA até se pretende um movimento europeu e internacional, é sigla para “Patriotische Europäer gegen die Islamisierung des Abendlandes”, ou “Europeus Patrióticos contra a Islamização do Ocidente”, e ampliou suas manifestações para várias cidades da Alemanha em novembro.
O que deve preocupar mais ainda é a mudança na posição de políticos até agora moderados, longe dos extremos do espectro político. Nos Estados Unidos, com sua reputação de pátria de tantas levas de refugiados no passado, 30 governadores se recusam agora a receber refugiados de guerra da Síria. Supostamente para se defender do terrorismo. E, no entanto, esses refugiados sírios estão exatamente fugindo do terror do EI, muitos são testemunhas da crueldade e da barbárie do EI. Rejeitá-los só faz aumentar a força do EI, ao confirmar sua propaganda de união contra um inimigo. Barrar a entrada das suas vítimas não vai eliminar o risco de atentados. E aceitá-los poderia inclusive ajudar no combate ao terror.
Também na Alemanha arrefeceu em alguma medida o primeiro impulso generoso e Angela Merkel passou a enfrentar resistência na sua política para refugiados dentro dos próprios partidos que a sustentam. Em alguns jornais da Europa já se viu menção a algo inimaginável e impronunciável há apenas três meses, a possibilidade de Marine Le Pen ganhar eleição e de Angela Merkel perder eleição. Um dos partidos da coalizão de governo na Alemanha, CSU (“Christlich-Soziale Union”), que é mais forte na Bavária e é o sócio menor do partido de Angela Merkel, a CDU (“Christlich-Demokratische Union”), está insistentemente defendendo “limites à imigração”, quer que Angela Merkel estabeleça um teto para a concessão de asilo. Na convenção da CSU realizada 20 de novembro pp. em Munique havia cartazes com “Zuwanderung begrenzen!” (“Limitar a imigração”) e até um militante que carregava um cartaz de duas folhas, uma dizia “raus”, a outra dizia “Merkel”, “fora Merkel”. Isso no próprio partido que é sócio na sustentação à Chanceler.
E tudo por causa do medo dos refugiados e, mais que isso, do medo de perder votos para partidos mais à direita. Falando na convenção da CSU logo após o pronunciamento do presidente do partido, Horst Seehofer, que pediu limite e avisou que continuaria em campanha pelo limite, Angela Merkel não se abalou: “Muros e omissão são inaceitáveis no século XXI.” Até agora não havia ocorrido um conflito tão explícito entre os partidos de apoio à Chanceler. Merkel repetiu, mais uma vez, que o megadesafio é combater as causas desses fluxos de gente que foge para a Europa e ajudar a Turquia, o Líbano e a Jordânia a melhorar as condições de vida dos refugiados.
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O drama dos refugiados continuará presente por muitos anos. Sua principal fonte, atualmente, são as guerras no Oriente Médio, em especial na Síria. Em próximas edições teremos que examinar as condições nos países de onde parte a maioria dos refugiados, em especial na Síria e nos países que mais tem sofrido na emergência de abrigar os milhões de vítimas dos bombardeios e do terror, como a Turquia, o Líbano, a Jordânia, e onde os recursos escasseiam também para os campos do UNHCR, a agência da ONU.
Prezada Elga.
Seu artigo, expõe uma verdade que, não só a Alemanha mas toda a Europa está sentindo. Diminuir o tempo,(3 anos), para integrar o refugiado ao mercado de trabalho seria solução? E como saber, qual a ideologia ou pensamento do refugiado?
Realmente o problema que tem difícil solução e que. vai com certeza afetar a economia e a instabilidade do país.
Reconheço que não sei de solução. E acho que o problema permanecerá conosco por muito tempo, daqui pra frente. O tal mínimo de 3 anos para integrar o refugiado no mercado de trabalho foi apresentado no debate alemão pensando no tempo que leva aprender uma língua usada nesse mercado (alemão ou inglês) e aprender alguma qualificação, pois o mercado de trabalho europeu pede mão de obra qualificada. gente sem qualificação já tem de sobra. Isso não quer dizer que, mesmo qualificados, haverá vagas suficientes para eles. A questão, ali, era só advertir que não se pode imaginar o refugiado como para sempre dependendo de ser sustentado pelo estado (ou pela agência de refugiados da ONU).
Helga,
Sempre atento às suas colocações, vejo que você é pé quente. Pois bastou você levantar a lebre no último parágrafo sobre as plataformas de acolhimento imediato para os refugiados sírios para que os europeus assinassem um cheque de 3 bilhões de euros de ajuda à Turquia. É claro que isso é uma benção para Recep Erdogan. Pois, ademais do dinheiro sonante, a Europa promete reabrir as portas à inserção do País na União. Não será pelo contencioso com Chipre que isso não ocorrerá, dizem alguns. Por trás disso, o caça russo que os turcos bobamente abateram, o que está gerando a reação enfurecida do Czar contra o Sultão. Estive na França semana passada e estou na Itália hoje. As televisões não falam de outra coisa e até as ruas. Se essa lufada de prestígio alivia os calos da Turquia, o pânico no País não é menor. Putin vai dificultar a vida de duzentos mil turcos que vivem na Rússia; já levantou barreiras sanitárias contra os produtos agrícolas; suspendeu a venda de pacotes turísticos para Antalya – onde os russos só perdem para os alemães em presença – e exige desculpas públicas e indenização pelos danos. O que está por trás disso, na ótica geopolítica? Os portos de Tartus e Latakia – bastião de Bashar al-Assad -, vitais para o equilíbrio de forças no Mediterrâneo Oriental. Para entornar o caldo, os turcos mataram um líder curdo de grande expressão e integridade. Fato é que o cenário é tão volátil que ninguém pode dizer onde isso vai parar. De fato, ainda que o resultado seja distinto, estamos com um quadro sintomático do mundo de um século atrás, quando a Primeira Guerra campeava. Imagino quanto tempo pessoas estudiosas de seu naipe não levam devorando informações e rascunhando cenários que, no dia seguinte, serão provavelmente obliterados por uma nova composição de nuvens. Ontem, aqui perto de Verona, fui a uma quermesse divertida. Em dado momento, fiquei observando um casal de camponeses dançar a ponto de suar, apesar do frio de três graus. De grande agilidade e com a graciosidade das pessoas simples de espírito, fiquei matutando o que querem eles saber dessas figuras sinistras que movimentam as peças nesse universo onde nos emaranhamos, você e eu. Provavelmente, nada. Ali naquele vilarejo do Trento, apesar dos riscos de jato que cruzam o céu azul a caminho de todos os teatros de guerra, o que conta é a chuva, a neve, o sol, a polenta, as perdizes, as uvas e a música. Daqui dirijo até Trieste e volto para Munique. Há pouco mais de um ano, na quase vizinha Bósnia-Herzegovina, fiquei maravilhado com Sarajevo, uma rara capital europeia que ainda não conhecia. Ontem ouvi um documentário aterrador. A cidade já virou um grande centro de aliciamento salafista e o proselitismo é feito nas ruas. Tem áreas no norte do país cujo valor despencou bruscamente. Isso porque os muçulmanos financiados pela Arábia Saudita estão comprando tudo. Os vizinhos eslavos devem estar dizendo: estão vendo no que deu não nos deixar terminar a faxina étnica? Um horror, minha cara amiga. Essa linda parte do mundo está a ponto de explodir. Não há líder – por melhor que seja – que possa ter repertório para interpretar e se posicionar diante dessa miríade de variáveis. Nem Hillary de quem já ouvi FHC dizer que ela conhece mais os cenários do que o marido. Com isso, vou dormir. E vou sonhar com o casalzinho de camponeses que dançavam e rodopiavam como se estivessem se purgando de algum mal. E quem disse que não estavam? Mil desculpas pela invasão indevida. É que uma coisa vai levando a outra e o vinho da noite pede companhia. Cada um dança como pode.
Abraço,
FD
Fernando, já estava sentindo falta do seu comentário. Divertido, mas complicado. V. introduz tantas variáveis que estou sem inteligência (em mais de um sentido) pra responder Eu até tinha buscado, nos relatos e fotos sobre o congresso da CSU, da base de apoio de Angela Merkel, uma explicação para o que v. comentou anteriormente, de que estava encolhendo a enorme popularidade da “Mutti”. Eu concordo que o impulso inicial de abrir as portas aos refugiados tem mais a ver com ela ter convivido com muros, na RDA, do que com o fato de ser mulher. Ao mesmo tempo ela não é de cometer suicídio político. Vou pensar no que v. diz para o próximo artigo sobre refugiados. Aliás, v. já é culpado de eu haver escrito o obituário de Marco Antônio Coelho. Escrevi a Teresa e João Rego que a culpa era sua, pois a ideia me veio depois de ler o obituário que v. escreveu. Amanhã tenho que madrugar às 6:30h, para chegar na USP às 8:30h para um seminário sobre China. (A viagem leva mais tempo que da França à Itália!) Então, vou dormir. Duvido que vá sonhar com casalzinho de camponeses. Isso é sua maneira de alegrar o seu realismo mais duro com pitadas de ficção.
Helga
Digamos que a salada de variáveis seja intencional. Pois é exatamente o que acontece no cenário mundial. E europeu em especial. De ontem para hoje, já descobriram kosovares aqui perto, em Brescia, que conspiravam contra a vida do Papa. O metrô de Istambul já passou por um atentado. Acho graça ao ouvir Obama dizer a Erdogan “agora vamos mirar o inimigo comum”. Parece uma exortação de convenção de empresa em Las Vegas. Ele o diz com a naturalidade que um executivo cowboy diria a um vendedor de sabão em pó: “Vamos aumentar nossa presença no Carrefour”. É como se não houvesse gente com vontade própria por trás disso. Um imenso amálgama de emoções.
Quanto ao obituário de seu amigo – e, pelo visto, também amigo de Fernando e Clemente – e minha influência na motivação, tenho algo a dizer. A idade parece que pouco a pouco nos transforma todos em memorialistas, cronistas e, fatalmente, obituaristas. Na já antológica crônica de Clemente nesta Será? – “Velho, eu?” -, ele diz a certa altura: “Só há mesmo uma pena irremediável na velhice: a solidão crescente com a perda dos amigos, parentes, companheiros de geração. Falando destes últimos, irmãos de pensamento e de sonhos, que se foram, os dedos das mãos já não são suficientes para contá-los”. O que nos resta senão evocá-los e, assim, pensar também em quem já fomos?
Só para complementar, versos de Jacques Brel, apenas um pouco mais discretos do que os que galvanizaram o mundo em três vozes semana passada. É da música “Les vieux” : “Les vieux ne meurent pas, ils s’endorment un jour et dorment trop longtemps/ Ils se tiennent par la main, ils ont peur de se perdre et se perdent pourtant/ Et l’autre reste là, le meilleur ou le pire, le doux ou le sévère/ Cela n’importe pas, celui des deux qui reste se retrouve en enfer / Vous le verrez peut-être, vous la verrez parfois en pluie et en chagrin/ Traverser le présent en s’excusant déjà de n’être pas plus loin Et fuir devant vous une dernière fois la pendule d’argent / Qui ronronne au salon, qui dit oui qui dit non, qui leur dit : je t’attends / Qui ronronne au salon, qui dit oui qui dit non et puis qui nous attend”. É terrível, não? Mas de uma beleza!
Chega. Que a China continue inspirando-a.
FD
Quando a Teresa Sales me convidou para colaborar com a “Será” me deu instruções: sempre responder aos comentários e ser breve “porque coisa comprida ninguém lê”. Nessas trocas com você não tenho respeitado as instruções e ainda por cima “ramifiquei” para fora do tema do artigo que originalmente provocou os comentários. Assim, porque falei no obituário do Marco Antônio, veio o assunto do envelhecimento. Acho que nem o fato nem o tema me inspiram. Aliás, v. lembra Jacques Brel, mas não foi lá muito poético com o coitado do Jô, cada vez mais velhinho. Nesse tema, o que me preocupa são os sistemas de aposentadoria e previdência social. No Brasil, o sistema de aposentadorias, além de injusto, está com déficits cada vez maiores, e é urgente aprovar uma reforma da previdência. Quanto mais tempo uma pessoa vive, tanto mais gente morre antes dela. Estatística. Mas preocupante, mesmo, é que o atual sistema de previdência no Brasil é insustentável. É mais provável que dou outro rumo ao tema por provocação, mas sou muito “arroz com feijão” para ficar “puxando angústia” com a certeza de que todos morremos. Já as complicadas questões geopolíticas que v. lançou, vou pensar para o próximo artigo sobre refugiados.