A leitura do livro de memórias de Cacá Diegues, com esse sugestivo título, fez-me recordar o tempo em que convivi com ele, em minha breve temporada carioca, como vice-presidente da União Nacional dos Estudantes, anos 1961-1962. Cacá, ao lado do Betinho (Herbert José de Souza), era um dos principais assessores do Aldo Arantes, presidente da UNE, e figura de proa no Centro Popular de Cultura, o CPC, implantado na nossa gestão, juntamente com Carlos Estevam, Leon Hirszman, Armando Costa, Oduvaldo Viana Filho, Arnaldo Jabor e outros talentos.
Ao longo das mais de seiscentas páginas do livro, que venci sem cansaço, sobretudo pelo interesse na fase de literatura e política estudantil do autor, pude constatar que nossas vidas correram paralelas em seu começo. Depois, a paixão pelo cinema definiu o seu destino no Sul Maravilha, enquanto eu voltava para o Nordeste, logo abraçando o sonho de continuar nossa luta política na trincheira do desenvolvimento regional, junto à SUDENE.
Literatura e Vida
Somos ambos nordestinos, eu paraibano, ele nascido em Alagoas, embora transplantado, ainda criança, para o Rio. As estruturas familiares foram as mesmas, assim como os colégios frequentados, de ordens religiosas, e exclusivamente masculinos. Até as suas reminiscências do lar materno revelaram-se comuns às minhas: a valsa “Farolito”, a canção do jangadeiro “de olhos da cor verde do mar”, o poema de Luiz Guimarães Júnior sobre o cão “Veludo” – o mesmo argumento de poema anterior de Guerra Junqueiro, “O Gorro do Pintor”. Assim também a iniciação precoce na poesia, e o seu posterior abandono.
Começamos a publicar poemas por volta dos quinze anos. Eu, nas páginas do “Correio das Artes”, suplemento literário do jornal “A União”, de João Pessoa, ele no “Suplemento Dominical do Jornal do Brasil”, do Rio, acolhido e louvado por Mário Faustino, um grande poeta precocemente desaparecido. Por reconhecer minha inferioridade diante dos companheiros de geração (a “Geração 59”, como passou à História paraibana), logo desertei da poesia. E assim também fez ele, paralisado, como admitiu no livro, pelos elogios rasgados que lhe dedicou Mário Faustino, no SDJB. (Faustino era homossexual o que talvez possa explicar o entusiasmo pelo jovem poeta). Mas, sem intenção de deslustre para o hoje famoso cineasta, posso dizer que fez bem: o poema dele, transcrito como exemplo, à página 72 do livro, absolutamente não o recomenda. Quem duvidar pode conferir.
Política e Aventuras
Na política estudantil, Cacá foi presidente do Diretório Acadêmico de Direito e do Diretório Central dos Estudantes da UFRJ. Depois, já focado em cinema, fez eleger Aldo Arantes como seu sucessor no DCE, o que permitiu a este chegar à presidência da UNE, ficando ele dedicado ao setor de cinema do CPC. Mas o Aldo continuou a tê-lo como conselheiro. Eu passei logo do posto de vice-presidente do Diretório Acadêmico de Direito, na Universidade Federal da Paraíba, a Vice-Presidente de Intercâmbio Internacional da UNE.
Ao avaliar, hoje, os destinos dos companheiros que conviveram conosco em torno da UNE, vejo como nossos caminhos se diversificaram. Alguns mergulharam na vida profissional, outros, como Aldo, Roberto Amaral e Marco Aurélio Garcia, colegas dirigentes, sobreviveram à ditadura militar e continuaram na política, em partidos diversos. A turma de artistas teve sucesso, seja na televisão, como Flávio Migliaccio, ou no cinema e na crônica literária, como o próprio Cacá, Leon Hirszman e Jabor, sendo apenas de se lamentar o desaparecimento precoce de Vianinha, Armando Costa, meu amigo e conterrâneo Paulo Pontes, e até mesmo Leon. Poderíamos dizer que a nossa geração deu o seu recado, sem mergulhar na dissipação ou na visionariedade suicida dos bravos militantes que vieram logo depois de nós.
De todos, Cacá fala em seu livro, com simpatia e compreensão. Até mesmo dos poucos que, fugindo ao padrão acima citado, imolaram-se na luta, como Juarez Guimarães de Brito, que preferiu matar-se a ser preso e torturado, ou Glauber Rocha, que se consumiu na “piração” e na droga. Este, para mim, é difícil de perdoar. No afã de compor-se com um governo repressivo e ilegítimo, passou a tecer elogios rasgados ao General Golbery, na esperança de uma redemocratização que só viria bem depois, enquanto companheiros sofriam e morriam nas prisões. Glauber parece ter sido daqueles para quem o sucesso chega cedo demais, e tem efeito desestabilizador. Não suportou o fato de não conseguir repetir, nos seus filmes seguintes, o prematuro sucesso de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. E cedo partiu.
O Cineasta Carlos Diegues
Só vi dois filmes de Cacá, além do curta-metragem que compôs o “Cinco Vezes Favela”, lançado durante a nossa gestão na UNE. Este, “Escola de Samba Alegria de Viver”, não chamou muita atenção por estar ao lado de duas pequenas obras-primas: “Couro de Gato”, de Joaquim Pedro, e “Pedreira de São Diogo”, de Leon Hirszman. “A Grande Cidade”, o primeiro “longa” dele, e depois “Chuvas de Verão”, me agradaram bastante. “Xica da Silva”, talvez seu primeiro grande sucesso, vi parcialmente na TV, mas confesso que só recordo a cena de Zezé Mota dançando “pelada” na encarnação da personagem. Quanto a “Bye Bye
Brasil, o título me desencorajou. Como Ariano Suassuna, tenho antipatia por americanismos.
No livro, Cacá faz referência à crítica feita por um sociólogo paulista ao “Xica da Silva”, pelo fato de o filme parecer “dourar” a escravidão, ao abordar o sucesso e a ascensão de uma escrava, convertida em figura lendária da nossa História. E contra-argumenta que a intenção era apenas de demonstrar que a alegria e a felicidade eram possíveis mesmo naquelas circunstâncias. Mas me inclino a dar razão ao crítico: a escravidão é tema que não se pode abordar de forma superficial ou indulgente.
A esta altura, devo uma explicação sobre as minhas preferências em matéria de arte e literatura. Não me empolga o “épico barroco” de Glauber Rocha, na feliz expressão de Cacá Diegues. Prefiro o tratamento sóbrio de Nelson Pereira dos Santos ou Leon Hirszman. Entre Jorge Amado e Graciliano Ramos, sou mais Graciliano. Entre Vinícius e João Cabral de Melo Neto, fico com o segundo. Exuberância e exotismo não são, por si sós, signo de genialidade. E o apelo ao erótico me parece mera concessão ao grande público, receita comercial para o sucesso da obra no mercado exibidor.
Cacá Memorialista
Há duas condições que para mim valorizam as autobiografias. A primeira é que o memorialista não fale apenas de si, mas sobretudo do seu contexto, do seu momento, dos que com ele contracenaram no palco da vida. A outra é a completa sinceridade e a coragem de não omitir fatos ou circunstâncias menos nobres do seu passado. Embora sincero e modesto ao reportar sua opção pacifista e conciliatória, contrastante com a dos companheiros empenhados na luta contra a Ditadura, e seu esforço de inserção no Sistema, para realizar a sua proposta existencial de cineasta, Cacá, ao menos em um ponto, deixa a desejar na observância daquela segunda condição.
Falando de sua separação da segunda mulher, que durou apenas algumas semanas, nosso autor afirma que, ao retornar, nunca mais usou qualquer tipo de droga. Mas nada diz explicitamente sobre o que motivou o afastamento e o retorno, embora tenha admitido, em fases anteriores, ter sido usuário de cocaína. Faltou-lhe a humildade de admitir com clareza que foi certamente a droga que quase destruiu uma relação tão harmoniosa e profícua, embora só formalizada após mais de vinte anos. O fim do casamento com Nara Leão também resta inexplicado. Algum escrúpulo em atribuir culpas a uma pessoa tão querida de todos os brasileiros?
O livro de Cacá é um extraordinário depoimento, escrito com sensibilidade e competência, não apenas sobre o alvorecer, os desafios, vida, paixão, morte e ressurreição do cinema brasileiro, mas também sobre a aventura, os sonhos, os caminhos e descaminhos da nossa geração, que hoje se prepara para sair de cena. Poderia ter sido ainda melhor, na minha modesta opinião. Mas, como as memórias são declaradamente provisórias, como está escrito no posfácio do livro, ainda temos muito que esperar do seu autor, como cineasta e como memorialista. E aqui lhe deixo os meus louvores.
Meu caro Clemente:
É com muito prazer, a esta altura também surpresa, que leio sua resenha sobre o livro de memórias de Cacá Diegues. Esclareço a surpresa para quem acaso tenha a curiosidade de ler este comentário improvisado ainda no calor da minha leitura. Enquanto ainda lia o livro, você me telefonou propondo uma conversa livre em torno de alguns temas, já que eu o lera antes de você. Poderia explorar um pouco esse atalho ou digressão para melhor justificar o tom da sua resenha, que é antes de tudo um exercício de memória paralela. Foi pensando em tantas linhas convergentes associando sua juventude à de Cacá Diegues que imediatamente me lembrei de você enquanto lia o livro.
Voltando à nossa conversa, mais sua do que minha, quando nos despedimos você me acenou a possibilidade de escrever sobre o livro aqui na revista. Aguardei, voltamos ao assunto por telefone, mas você demorou tanto que um dia pensei: acho que ele desistiu. Felizmente não.
É claro que teria muito o que comentar acerca do livro e da sua resenha – que é antes de tudo um fascinante exercício de memória paralela,como já frisei. É também claro que você teria muito mais o que dizer sobre o livro e sobre si próprio. Falando de si, assim como ele o faz compondo seu livro, vocês falam de um tempo e de uma geração que deixou vincos profundos na nossa história política e cultural.
Prezado Clemente,
É sempre uma alegria ler um texto seu nas manhãs dos sábados. É nessa hora de quebra da inércia do fim de semana, em que ainda estamos divididos entre o conforto da cama e as tarefas mais prazerosas do mais ameno dos dias, que a leitura de um texto seu adia o dilema da escolha porque engaja pensamentos e reflexões, sem que quaisquer pressas se imponham.
Não, ainda não li o livro de Cacá. Aliás, não sabia sequer que ele tinha publicado um. Mas gostei do paralelismo de trajetória e ambientes apontados tanto por você, e mais enfaticamente realçados pelo meu xará que te escreveu acima. Meu único reparo é que, se você admite que ainda há chão a percorrer para o alagoano, por certo que o mesmo se aplica a você.
Ademais, Cacá não deve ter esgotado o filão. Isso dito, suas memórias “definitivas” podem render alegrias tanto a você quanto a seus muitos leitores. De resto, gostei de vê-lo cravar opções inequívocas entre padrões estéticos de cinema e poesia. Concordo com ambas e, na falta de seu livro, vou comprar o de Cacá.
Só para complementar: terminei de ler o panegírico “Operação Lava Jato” de Wladimir Neto (para quem acompanha o noticiário pertinente, quase não há novidades) e o sempre delicioso Gaspari que se saiu com sua “A ditadura acabada”. Mais tarde, na noite alta de Estrasburgo, ataco as reportagens de Aguinaldo Silva. Cinema pode ser a maior diversão. Mas ler é impagável.
Um abraço,
Fernando
Caros amigos,
Ver os meus textos comentados e enriquecidos por vocês é uma alegria renovada. Além do agradecimento, aqui vai um pequeno recado para cada um.
Fernando da Mota Lima: a ideia de compor o artigo como “um exercício de memória paralela” surgiu de nossa conversa, e, se resultou interessante, divido o mérito entre nós dois. Recebi a sua sugestão quase como uma encomenda. E procurei fazer o melhor, mesmo sabendo que o livro, como observa você, mereceria uma análise bem mais longa e profunda.
Fernando Dourado Filho: minha experiência de política estudantil já está em livro, lançado em 1992, ao tempo das mobilizações cívicas dos “caras pintadas”. Seu título: “PRAIA DO FLAMENGO 132 – Crônica do Movimento Estudantil nos Anos 1961-1962”. Poderia dizer que foi uma espécie de “autobiografia precoce”, ao modo do poeta Ievtushenko. Seu xará já o leu, mas você ainda não. Na primeira oportunidade que tivermos, em algum intervalo do seu permanente périplo intercontinental, lhe passarei um exemplar, pois dificilmente a obra será encontrada em livrarias, a esta altura. E torço para que esse encontro não demore.
Abraços fraternos aos dois.
Clemente
Não li o livro de Cacá Diegues, mas a resenha de Clemente Rosas me fez ter vontade de ler o livro. E lembrei do meu querido chefe na ONU, Göran Ohlin, no tempo em que comecei a ler a “The New York Review of Books” (para sempre meu modelo para resenhas). Ohlin dizia que há dois tipos de resenha: uma que nos leva a ler o livro resenhado, outra pela qual sabemos que não precisamos ler o livro resenhado.
Querida Helga,
Tomei o seu comentário como um elogio, feito de forma inteligente, como nem todos conseguem fazer.
Chamar a atenção para o livro e seus personagens era justamente a minha intenção. Que muitos o leiam, com o espírito crítico com que eu o fiz e você certamente fará.
Abraço.
Clemente