Nesta quinta-feira, 22 de setembro, a ONU iria retomar o envio de ajuda humanitária para a Síria. Um comboio estava sendo carregado principalmente de suprimentos médicos a serem entregues em Damasco. Desesperada tentativa de manter viva a esperança de um cessar-fogo? Manter viva a esperança de que será possível levar alimentos e remédios a um milhão de sírios que, segundo o grupo SiegeWatch, vivem em áreas sitiadas em ambos os lados do conflito?
Nem bem três dias haviam passado desde que o novo cessar-fogo mediado por Washington e Moscou fora rompido, mais uma vez. Caminhões que levavam ajuda a Aleppo foram bombardeados segunda-feira, 19 de setembro, no momento em que começavam a ser descarregados. Os caminhões que pegaram fogo continham material sanitário e alimentos da UNICEF para 50 mil pessoas e nove toneladas de medicamentos e material cirúrgico. Vinte civis e voluntários do trabalho humanitário morreram nesse ataque, inclusive um responsável do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.
Depois dos caminhões destruídos, a ONU suspendeu a ajuda. Desde então os choques entre as forças de Assad e os distritos rebeldes de Aleppo escalaram em violência, com bombas e foguetes incendiários riscando os céus da cidade sem cessar. Um bombardeiro atingiu uma clínica móvel no distrito rebelde, matando quatro médicos. Nos porões dos hospitais o trabalho é de 24 horas e, com escassez de remédios e sem condições para realizar as cirurgias em todos os feridos que chegam, os médicos são obrigados a decidir quem será atendido, quem vai viver e quem vai morrer.
Em meio ao clamor dos indignados com o bombardeio dos caminhões de ajuda na principal frente do conflito, Washington e Moscou lançaram acusações mutuas. Segundo autoridades americanas, o monitoramento por radar mostrou dois aviões russos SU24 que sobrevoavam a área no momento do bombardeio, e seriam a origem dos projeteis que destruíram os caminhões. Já Moscou e o governo de Assad negam participação e um general russo duvida inclusive que tenha ocorrido um ataque aéreo, os caminhões teriam se incendiado por artilharia de grupos rebeldes. O Kremlin informou que o exército russo está investigando a ocorrência, mas um porta-voz do Ministro de Defesa da Rússia sugeriu que um drone da coalizão liderada pelos Estados Unidos fora responsável pelo ataque, pois tais drones não servem só para monitorar a situação, mas podem orientar munição situada em terra e fazer ataques precisos a objetivos no solo. O drone predador teria partido da base-aérea de Incirlik na Turquia na noite de 19 de setembro e chegado à área poucos minutos antes de o comboio pegar fogo, deixando a área 30 minutos depois.
Na reunião do Conselho de Segurança da ONU em que houve troca de acusações, enquanto Sergei Lavrov classificou o ataque ao comboio de “provocação inaceitável”, John Kerry listou as várias hipóteses russas, incluindo, irônico, a de que o caminhão explodiu por si mesmo. De qualquer modo, para restaurar a credibilidade para um cessar-fogo, os americanos consideram que é necessário deixar aterrissada toda e qualquer aeronave nas áreas contestadas para que a assistência humanitária possa se dar sem interrupções.
Esperava-se que o acordo de cessar fogo fosse um passo no sentido de uma cooperação militar russo-americana contra os jihadistas do EI que criaram raízes na Síria durante os cinco anos de guerra civil. Até a data da sua entrada em vigor, 9 de setembro, persistiram desentendimentos, pois Rússia e Estados Unidos não conseguiram concordar em um texto para ser levado aos 15 membros do Conselho de Segurança da ONU. Permaneceu um acordo bilateral de mediadores. Não durou mais que dez dias. O representante da ONU para a Síria, Steffan de Mistura, apesar de ver diminuir a confiança que diferentes grupos rebeldes parecem depositar na ONU, trata de manter a esperança de que um cessar-fogo ainda é possível. Mesmo porque não se consegue entrever a possibilidade de impor paz aos sírios pela força militar, como os que imaginam alguma todo-poderosa “intervenção militar do Ocidente”. E aqui não está pintado o quadro mais complicado: a dificuldade em separar rebeldes moderados das facções terroristas, a diferença de interesses entre os vizinhos regionais, como o Irã que tem milícias atuando na Síria, sem falar no papel dos curdos, aos quais os americanos agora querem entregar armamento, contra o parecer da Turquia, aliado dos Estados Unidos na OTAN.
Diante de todos esses movimentos do dia 19 de setembro, não é de surpreender o impacto menor da chamada “Reunião Plenária de Alto Nível da Assembleia Geral para tratar de Movimentos em Massa de Refugiados e Migrantes” realizada na sede da ONU em Nova York exatamente nesse dia. Essa reunião da ONU vinha sendo preparada desde o fim do ano passado, segundo resolução da Assembleia Geral, “para tratar de movimentos em grande escala de refugiados e migrantes”. Ainda que a ênfase em “large movements” parece ter desaparecido na tradução, é importante reter a noção de “movimentos em grande escala” ou “em massa”, pois são as novas dimensões e os impactos sociais e políticos mais amplos que levaram os estados a tratar do tema na ONU em uma reunião especial.
Ainda não se insistiu, nas negociações da ONU, na questão de modificar a Convenção de Refugiados de 1951. Mas é claro que o problema dos refugiados hoje é muito diferente daquele do imediato pós-guerra, limitado aos europeus e a um mundo com muito menos mobilidade. O Protocolo de 1967 expandiu o âmbito da Convenção para o mundo inteiro, sem modificar as regras. Hoje, pelos critérios da Convenção de 1951, mais de 60 milhões de pessoas potencialmente podem requerer status de refugiado com direito a asilo.
Como lidar com isso dentro do espírito da Carta das Nações Unidos, que é o de compartilhar responsabilidade e de respeito aos direitos humanos fundamentais? A “Declaração de Nova York para Refugiados e Migrantes”, negociada por meses entre 193 países-membros da Organização das Nações Unidas e aprovada em 19 de setembro de 2016, pelo menos chama a atenção para a questão. Por ora, pouco oferece de prático. Como é normal na ONU, é o consenso de todos os países, cada qual introduzindo suas percepções, que são discutidas vírgula a vírgula, até se chegar a uma “linguagem de consenso” – ou, de um ponto de vista menos generoso, até se chegar a um grau suficiente de ofuscação linguística para que cada representante nacional interprete o texto como lhe aprouver. O texto da Declaração de Nova York, 25 páginas de letra miúda, pode ser acessado em www.unhcr.org. Uma imensa declaração de princípios e de boas intenções, que incorpora o Protocolo de 1967 da Convenção sobre Refugiados, e acrescenta quase todos os problemas correlatos entre o céu e a terra, até os refugiados futuros devido à mudança climática.
Trata de migrantes e refugiados em conjunto, às vezes na mesma frase, às vezes em compactos separados: “Consideramos hoje qual a melhor resposta da comunidade internacional ao crescente fenômeno global de movimentos em massa de refugiados e migrantes”. A distinção que foi retida é que “migrantes se movem em sua maior parte sem incidente”. “Deslocamento forçado e migração irregular em movimentos em larga escala, por outro lado, com frequência apresentam desafios complexos”. A Declaração de Nova York parece fugir de uma distinção nítida entre refugiado e migrante, que está explicitada com muita clareza na Convenção de Refugiados e no Protocolo de 1967. Coloca muita ênfase na escala. E aí se lê, ainda na primeira página: “Em 2015 o número de migrantes era superior a 244 milhões, crescendo em ritmo superior ao da população mundial. Contudo, há cerca de 65 milhões de pessoas deslocadas de maneira forçada, incluindo mais de 21 milhões de refugiados, 3 milhões de pessoas requerendo asilo e mais de 40 milhões de pessoas deslocadas internamente.” Avassalador! Não vejo como tratar de maneira prática das duas categorias em conjunto, com compromissos concretos, compromissos que a Declaração, aliás, não contem. Os 21 milhões deixaram seus países devido a guerra e perseguição. É em relação a esses que fracassou um acordo global de realocação, é neste caso que há países que se recusam a aceitar um número de pessoas pré-estabelecido em acordos, é para esses que ainda perduram situações que podem ser chamadas de “depósitos” de pessoas a espera de registro e de destino. São esses cuja chegada em massa a países europeus trouxe à tona muitas manifestações de solidariedade e compaixão, mas também as respostas de discriminação racial, de xenofobia e de intolerância que a Declaração de Nova York deplora com toda veemência.
Como compromisso político, a declaração da ONU, mesmo que longa, repetitiva e sem repercussão imediata, tem importância. Contribui para mobilizar outros organismos internacionais e dá ânimo ao imenso número de organizações de voluntários que se dedicam ao trabalho de resgate e integração de refugiados nas sociedades que os acolhem. No mínimo, significa mais apoio e recursos para o trabalho do Alto Comissariados das Nações Unidas para Refugiados, a ACNUR. Filippo Grandi, o Alto Comissário para Refugiados, saudou a reunião de alto nível de 19 de setembro, ainda que não deixasse de observar: “É importante que falemos de refugiados bem como de migrantes. Há muitas características comuns cujo tratamento depende de esforços conjuntos. Mas refugiados têm – e precisam manter – status distinto, porque conflito e perseguição significa que eles não podem voltar para seus países.”
Parabéns pelo artigo. O que me comove ainda mais, em primeiro por ver a foto no início do artigo, é o de saber que os países dito civilizados em muito contribuíram para com essas tragédias, dividindo países e povos a seu bel prazer e interesses.Até hoje pouco se diz da influência da Inglaterra, França, Portugal, Espanha, Alemanha, Estados Unidos em acordos espúrios que somente enxergavam interesses. A África foi uma das mais prejudicadas, com a criação de países com tribos rivais a centenas de anos.
Acho que fora do Brasil, ao menos em inglês, existem mais estudos históricos sobre a responsabilidade e a intervenção (e deliberadamente não uso a palavra “culpa”) das potências coloniais (sobretudo Inglaterra e França) e dos Estados Unidos. Mas mesmo quando se reconhece essa responsabilidade, não é fácil decidir o que deve ser feito. Hoje, que tipo de intervenção se justifica e tem chance de êxito? Por exemplo, como impedir que a Arábia Saudita, rica, continue destruindo o Yemen, pobre – inclusive com armas compradas da Inglaterra? Quais intervenções militares, feitas sem apoio da ONU, tiveram êxito? Alguém lembra de alguma? Aprovada e com envolvimento da ONU só lembro da retomada do Kuwait invadido pelo Iraq. Pena que a intervenção, no caso, não parou ali, pois, a posteriori, a intervenção no Iraque, mais tarde, supostamente para afastar um ditador sanguinário, é considerada um fracasso, um exemplo da famosa “emenda pior que o soneto”.