O mundo contemporâneo é cheio de estímulos. Que ninguém se iluda, já não somos donos da moldura em que se esvai o tempo nosso de cada dia. No mais das vezes, o caráter líquido da vida nos empurra de ralo adentro. Daí termos a sensação de estar a bordo de um caminhão cujos freios estão no limite da vida útil. Assim, dada a razão de descida, só nos resta atentar para não subir calçadas nem atropelar os passantes. Mas certo mesmo é que trafegamos sem ao menos vê-los nem lhes distinguir as feições. Sintomaticamente, é como se fossemos balizados por uma TL dos moldes do Facebook, ou seja, por uma raia única. Quanto aos passantes referidos, eles, a seu turno, permanecem indiferentes à sorte do veículo aterrador. Se colidir, ora, que se internem – ou enterrem – os passageiros e tudo seguirá como dantes.
Onde fica o espaço para a reflexão? Não fica. Numa hipótese boa, o sujeito sai da cama e ainda descola uma hora de caminhada no parque da Jaqueira ou no Ibirapuera, segundo o domicílio. Invariavelmente, enquanto faz um cafezinho de máquina para despertar de vez, já ouviu um mínimo de noticiário, verificou as ocorrências lavradas em redes sociais, teclou respostas anódinas para distribuir afagos e, enquanto caminhava, meditabundo, passou cabisbaixo por dois ou três conhecidos que mal cumprimentou pela boa razão de que precisava tomar uma posição sobre pautas políticas e organizar a cabeça à luz das manchetes matinais.
Chegando em casa, banhado de suor, é hora de uma chuveirada, da postagem de uma posição e de atender as demandas triviais da vida prática. Não há sequer como escapar porque um telefone dito inteligente – para quem? – lhe fará as vezes de secretária e confidente, e a toda hora o dirigirá para o cumprimento de uma agenda de que ele próprio o encarregou. A horizontalidade das experiências anestesia a um ponto tal que achamos ter feito alguma coisa ao recostar a cabeça no travesseiro, tomar os remédios e trocar rara palavra com quem dorme ao lado, geralmente em estado também cataléptico.
E assim se passam os dias, as semanas e os anos. Pausa mesmo só em raras férias, que dificilmente sobrevivem aos imperativos do ramerrão acima descrito, e, é claro, quando temos que velar um amigo de geração que jaz no centro de uma salinha mal iluminada, com tufos de algodão dentro das narinas e um ar de quem, apesar do vigor ostentado na semana anterior, parece mesmo que já não pertencia a esse mundo há bom tempo. Sequer o desaparecimento de grandes ícones da televisão, de cuja companhia privamos de soslaio durante certo tempo, não mais é pranteado como foram Chico Alves, Gardel ou o velho Getúlio. Morrer nunca foi negócio tão ingrato porque o encurtamento do luto é inexorável e a marcha da vida segue célere.
Mas um dia você depara com a possibilidade de colaborar com uma revista como Será?, e alguma coisa muda nesse diapasão. Foi um pouco isso o que aconteceu comigo. Colhido na Dinamarca pela brutalidade dos crimes perpetrados na redação do Charlie Hebdo, em Paris, me animei a esboçar uma reflexão mais prolongada sobre o episódio. Ora, como já vinha flertando com a revista eletrônica há algum tempo, achei que ela poderia ser o veículo certo para vocalizar a pensata. Sem grande exposição ao mundo digital, me empolguei com a acolhida que recebi da redação e, conquanto vivêssemos as desventuras da política e suas injunções econômicas, algo me disse que teríamos todos algo a ganhar se eu me tornasse um colaborador da publicação longeva, editada com visível carinho. De minha parte, a tarefa de estruturar o tempo fugiria do rama-rame diário e, a cada duas semanas, eu me obrigaria a correr numa raia própria.
Assim sendo, a despeito da necessidade de ser mais contido e menos caudaloso em meus textos, Será? me deu inusitada oportunidade de incursionar pelo memorialismo, reminiscências, contos curtos e quaisquer outras formas que me aprouvessem de contar uma história. A interação até então inédita com o público leitor, quase em tempo real, me motivou a dar o que tivesse de melhor nesses diferentes formatos. E assim cheguei a mais de cinquenta textos num período de 20 meses, um feito e tanto para quem só escrevia crônicas para jornais e uma ou outra reflexão para a revista Amanhã, do Rio Grande do Sul, da qual sou o decano dos articulistas.
Foi nesse contexto que, não faz muito tempo, me ocorreu a ideia de separar parte do que escrevera para Será? e lhe dar formato de livro. E, se fosse para publicá-lo, que o fizesse pelos bons ofícios de uma editora que oferecesse uma perspectiva – mínima que fosse – de me lançar em novas plataformas digitais e, eventualmente, traduzir o trabalho para outras línguas.
Então, apareceu a Chiado, a quem apresentei onze histórias que adaptei ao que me parecia ser o formato mais adequado. A entrelaçá-las, um estranho fio condutor: as almas errantes que desconhecem as fronteiras e se perguntam diuturnamente a que mundo, afinal, pertencem. Pessoas atormentadas que, como eu, partiram cedo para a descoberta de plagas distantes e cuja sede jamais foi saciada, se é que será um dia.
É dispensável dizer que muitos colaboradores de Será? teriam mais estofo do que eu para reunir um acervo e publicá-lo em forma de livro. Já nem cito nomes porque incorreria fatalmente em injustiças. Pois bem, o caminho está aberto mais do que nunca com meu modesto precedente. “Nos passos de Fiszel Czeresnia e outras estórias” é um produto genuinamente calcado nessas contribuições quinzenais que, sendo vez por outra heterodoxas, sempre receberam acolhida cúmplice e generosa do conselho editorial.
O resultado está aqui e atesta que um pouco de ousadia não faz mal a ninguém. Agradecer a Será? é, portanto, redundante já que o faço à minha maneira desde a publicação do primeiro ensaio. Espero, assim, que a este livro se sigam outros e que continuemos a desfraldar a bandeira de pluralismo, tolerância e diversidade temática que integra o estatuto de nosso agradável convívio.
Um obrigado muito especial a Teresa Sales, Sérgio Buarque, João Rego e Clemente Rosas. Foi graças à palavra amiga de cada um que ontem, 06 de outubro, esgotamos os 150 exemplares que a Livraria Cultura previra vender no lançamento do Recife. Que os próximos já programados – Paris, Lisboa e o Porto – conheçam o mesmo sucesso. Ele será o de todos nós.
Caríssimo Fernando:
Sua participação na Revista Será? nos engrandece. Desejo-lhe sucesso em Paris, Lisboa e Porto, sem esquecer que a Chiado, provavelmente, vai transformar em e-book para vender em plataformas como a Amazon.
Um forte abraço
Desde Bogotá, Colômbia.
João, querido amigo
Pode até ser meio piegas o que vou dizer. Mas a equação é simples: amor com amor se paga. De tanto ver o empenho de vocês em confeccionar uma revista caprichada, o mínimo que eu poderia fazer para testemunhar de meu agradecimento, era levantar a bandeira o mais alto que pudesse.
Sou eu a parte agradecida, sem lugar a qualquer dúvida.
Abraço e curta muito a Colômbia.
FD
Caro, Fernando Dourado Filho!
Seu texto está adorável.
A gente termina de ler querendo mais um pouquinho!
Todos os seus escritos são, de fato deliciosos e profundos. Você vai lá no fundo das raízes da vida e traz tudo o sigificado a tona para que fique visível e sr mostre a realidade nua e crua, mas de forma coerente se agressividade ou qualquer desnorteio…
Você busca no fundo de você mesmo o que há de melhor para se expressar suavemente, assim como um vinho adocicado mesmo que as uvas que o originaram não tenham sido banhadas pelo sol e que, por isso se tornaram amargas… mas ainda assim, por um processo divinamente inteligente, nos concederam um vinho memorável!
Obrigada, grande escritor, Fernando Dourado Filho!
Muito sucesso com seu livro: Fiszel Czeresnia!
Abraço
Da
Poeta e escritora
Glória Peixoto
Querida Glória,
Já vi muita gente sair das páginas de Será? e se mudar de mala e cuia para o Facebook.
Mas ainda não tinha presenciado o movimento contrário, e eis que me regozija muito que você o faça. Você é uma querida amiga virtual, dotada de rara sensibilidade que vem me estimulando sobremodo a ousar cada vez mais e, segundo você, melhor.
Obrigado pelas palavras e apareça mais vezes por aqui. Ao conhecer os outros cronistas, alguns deles escritores de verdade, você terá expandido seus horizontes de Botafogo para o Recife. Garanto que vai gostar.
Beijo do amigo, FD
Fernando, querido,
Ainda não vi a cara do livro, que certamente terá um sabor diferente da leitura que tive o privilégio da primeira mão até quase outro dia. Esse potencial de nossa revista de ser gestadora de livros, como os dois de Sérgio Buarque e agora o teu, é para nós um acréscimo para nosso “aparente” desprendimento em colaborar em uma revista na qual, em vez de remuneração, pagamos para colocá-la no ar toda semana há cinco anos. Porém, malucos que escrevem, ou exercem qualquer outro metier onde a arte, a inteligência e a vaidade estão em jogo, para esses importa menos o vil metal do que o reconhecimento, o brilho. Uma leitora tua, Rosa, que conheceu e conviveu em Garanhuns com Pipe Dourado, comentava ontem comigo: como você se parece com seu tio! Mas, antes que esse simples comentário se transforme no que muitos descendentes da Casa Grande gostam de fazer no nosso provinciano Jornal do Comércio, qual seja, escrever no jornal assuntos tão pessoais que mais passariam por carta, antes que isso aconteça, fico por aqui. Não sem antes lembrar (desculpem, continuo a carta), uma conversa de fim de festa, Lavínia, você e eu, aqui em casa, nós três entre a rede e a janela da sala, vendo a apressada noite recifense chegar. Isso foi na Sexta Feira da Paixão deste ano. Falávamos sobre um livro teu aproveitando as publicações da revista. Essa ideia você já acalentava, por certo. Mas gosto de pensar que foi ali a gestação.
Minha querida Teresa,
Em primeiro lugar, folgo por sabê-la de passeio na província do açúcar. Só não a perdoaria se estivesse no Recife já no dia 06, quando do lançamento. Aliás, não perdoaria a mim mesmo por não ter cogitado da possibilidade. Diga que não estava que assim durmo tranquilo nessa Paris outonal.
Em segundo lugar, somos sim um pouco malucos. Em plena tarde parisiense, com todos os encantos das luzes de Montparnasse a cintilar, cá estou eu aqui num quarto escrevinhando coisas para municiar João Rego que, de Miami, me lembra com elegância que amanhã tem função.
Em terceiro lugar, não sei bem de onde Rosa (é a mesma que estou pensando?) tirou pelos meus textos de que me assemelho a tio Pipe. Mas a essa altura da vida é quase uma lisonja pois ele foi melhor do que eu em tudo o que fez e muito mais sábio no que deixou de fazer.
Em quarto e penúltimo, tens toda razão ao aludir à Sexta-feira Santa derradeira em que, efetivamente, se delineava um projeto na minha cabeça que, efetivamente, desde então me apressei em botar em execução. Estou contente com o resultado e amanhã Será? estará na embaixada de Paris.
Em quinto, tenho saudades de você, mas não posso negar que lhe assistia o direito de subir a montanha com Don Sebastián, figura épica de capa e espada, sem rival em nossa capitania. Espero que ainda estejas pelo Recife quando eu passar e volta para que possamos brindar a nosso livrinho.
Beijos,
FD