A atividade de consultor de empresas, com foco na conquista de incentivos fiscais para novos investimentos, tem lá seus encantos. Um deles é a oportunidade de viajar, para conhecer os empreendimentos a serem contemplados com o apoio governamental, com a nossa intermediação.
Foi assim que voltei à Amazônia, conhecida anteriormente apenas por ocasião da criação da SUDAM, em 1968. Desta vez com mais profundidade, visitando uma mina de bauxita, na cidade ribeirinha de Juruti. Para chegar lá, só de barco, a partir de Santarém, no encontro do Tapajós com o Amazonas, último ponto que pode ser alcançado por avião.
O contraste com o meio-ambiente nordestino é impactante: saímos do país da seca para o país das águas. Não há que se falar em estações rodoviárias ou ferroviárias, apenas em estações hidroviárias, de onde partem e onde aportam todos os tipos de embarcações: chatas transportando minérios e contêineres de produtos industrializados, navios de turismo, lanchas, barcos de pesca ou simples “voadeiras”. Foi de uma dessas que partimos, em lancha para 25 pessoas, numa viagem de quatro horas e meia.
Na viagem, encarando o rio Amazonas a contrafluxo, no desconforto do barulho do motor e das pancadas da lancha, e na monotonia da vastidão das águas bordadas de matas, só um incidente a merecer registro: o encontro com um cadáver flutuando. Nosso piloto apenas reduziu a velocidade para conferir, e comentou:
– Deve ser da lancha que afundou ontem por aqui.
E prosseguimos. Nada a fazer, naquele ponto remoto, e por conta de um evento relativamente comum, naquelas paragens.
No vilarejo, a sensação era de abafamento, a mata cercando tudo, as casas de paredes enxovalhadas, sem qualquer arremedo de jardins, as aves domésticas pelas ruas, na companhia de urubus. E isso me fez recordar uma composição poética de João Cabral de Melo Neto, em que o autor aborda o costume interiorano de se manter no galinheiro, de asas cortadas, um desses “bichos do cão”, feios deselegantes, sombrios: o urubu é padre, está ali para proteger a criação de penas.
No corpo da floresta, apenas duas amenidades, para mim inesperadas: os cachos de ouro das acácias amarelas, matizando a paisagem, e os cajueiros. Um destes, para nossa total incompreensão, encontramos na frente de um bar-restaurante, os frutos vermelhos enfeitando a copa e salpicando o solo, sem qualquer aproveitamento. Será que aquele povo desconhece a verdade transcendental, expressa na voz macia do cantor Agostinho dos Santos, de que o caju nasceu pra cachaça, assim como o pirão para o peixe e a mulher para o amor?
De uma coisa, no entanto, os amazônidas podem vangloriar-se: da abundância e da qualidade dos seus peixes: tambaquis, tucunarés, pirarucus, “filhotes”. Curiosamente, os filhotes de piraíba, de tão volumosos, não podem ser servidos em postas, mas aos pedaços. Nada a estranhar, quando se sabe que a piraíba pode atingir até três metros, e pesar 150 quilos. Nesse caso, um peixão de 40, 50 quilos é mesmo um filhote. Saboreados ao molho de tucupi, ou simplesmente assados na brasa, sem qualquer tempero, são deliciosos.
A registrar, como arremate, a visita a Alter do Chão, a praia fluvial mais bonita do Brasil, que fica no Tapajós, a meia hora de carro de Santarém. Na volta, tendo que dormir nesta cidade e tomar o avião para Recife às nove horas do dia seguinte, acordamos de madrugada, para não deixar de conhecer a joia do turismo paraense.
Valeu a pena. Quando, emergindo da mata, descortinamos a praia, a paisagem é deslumbrante: uma ilha de areia branquíssima, separada da margem do rio por apenas alguns metros de água facilmente vadeáveis nos meses de estiagem, algumas árvores mirradas, poucos bares cobertos de palha ao centro, barcos de pesca e de recreio, elegantes e esguios, repousando em águas tranquilas. Águas claras, que, surpreendentemente, revelam-se tépidas ao banhista, mesmo na primeira luz do dia.
Alter do Chão tem, para a floresta amazônica, o mesmo efeito que um oásis para o deserto do Sahara. Visitá-la é o bastante para nos deixar o desejo de um dia voltar.
Só precisa corrigir a legenda da foto. Alter do Chão fica no município de Santarém, no Pará e não no Amazonas.
Obrigado Iramar
Que lindo o seu texto, Clemente, realidade e poesia. E não deu medo, tanta água? Me lembrei que Thiago de Mello tem um texto curtinho, “Amazonas, pátria da água”, que começa assim: “Da altura extrema da cordilheira, onde as neves são eternas, a água se desprende e traça um risco na pele antiga da pedra: o Amazonas acaba de nascer.” E depois ele continua mostrando como a água vai se avolumando, “atravessando milhões de quilômetros quadrados de território verde”.
Medo, propriamente, não deu, amiga. Mas algo como uma estupefação. E isso me lembra uma velha crônica de Rubem Braga, em que ele diz que, ao subir na torre Eiffel e contemplar a paisagem, foi acometido de uma “meiga burrice azul”. No meu caso, seria verde e cinza.
Obrigado pelo comentário, sempre elegante.
Gostei, Clemente, não só porque é um texto de evasão, mas porque sou um escravo da alternância de paisagens. Ora, de tanto ler sobre a Paraíba e sua gente, já tinha me afeito à expectativa de lê-lo sempre com um copo ao alcance de mão, tamanha a sede que me davam as paisagens crestadas e os homens lacônicos. E, de repente, nos chega esse verde luxuriante, essa asfixia mecânica nas águas quase escuras de que nos redimem os peixes ciclópicos e suculentos. Gostei muito. O único detalhe é que, do alto de minha proverbial irresponsabilidade, teria perdido o avião para o Recife e explorado mais esse lugar que talvez nunca mais voltes a ver. Grande abraço.
Obrigado, amigo Fernando.
Breve estarei voltando a minha fonte básica de inspiração: a Paraíba e sua gente.