Na minha infância, além dos grupos escolares públicos, de bom nível, não havia colégios particulares para o ensino das primeiras letras. Somente professoras. Solteironas ou casadas (e, às vezes, arrimo dos maridos), seus estabelecimentos eram vistos como as escolas de Dona Natércia, de Dona Alice, de Dona Maria José e outras, sempre lembradas, por razões diversas, pelos que as conheceram.
O Grupo Escolar Epitácio Pessoa ficava perto de nossa casa, e por lá passamos os cinco irmãos, na fase de pré-alfabetização e de alfabetização. Mas apenas minha irmã mais velha e o irmão caçula tiveram lá participações notórias, graças à dedicação de uma pessoa especial: Adamantina Neves.
Dona Adamantina não se limitava a ensinar letras e números. Organizava encenações, despertava talentos nas crianças sob sua guarda. Seu mister abrangia a concepção dos espetáculos, a coreografia, as falas, a direção artística e tudo o mais. No caso de minha irmã, lembro de duas apresentações. Uma em que as meninas figuravam as praias paraibanas, cada uma cantando as belezas de sua representada (no caso de Liana, obviamente, a nossa Praia Formosa). Outra, uma espécie de auto de Natal, em que ela fazia o papel de uma cigana.
Quanto ao irmão caçula, franzino, cabelos claros, coube, noutra ocasião, o papel de confeiteiro. De aventalzinho branco, com aquele gorro alto dos chefes de cozinha, cantava:
Sou confeiteiro
Afamado e bem dengoso
Meu trabalho é gostoso
Não preciso de dinheiro
Faço balas saborosas
Docinhas, deliciosas
Eu as dou ao mundo inteiro
Vou trocando por carinho
Essas balas delicadas
Eu oferto aos brotinhos
Que são minhas namoradas
Minhas balas doidivanas
Das campinas têm a cor
Nelas as balzaquianas
Vão encontrando o amor
Talvez a boa lembrança que tenho dessa canção inocente se deva a uma mesquinharia que fizemos, eu e o mano Nelson, com nosso pequeno Mateus. Por isso, quero aqui exorcizá-la.
No trecho em que o confeiteiro falava em “dar suas balas ao mundo inteiro”, ele devia meter a mãozinha numa mochila e atirar os bombons sobre a plateia, de umas quarenta ou cinquenta crianças. Sabedores disso, nós o intimamos, quase sob ameaças, a jogar os confeitos na nossa direção. Resultado: tal foi a preocupação do jovem ator que ele quase esquece letra e música da estrofe indicada. E após o espetáculo, sua primeira atitude foi procurar saber se havíamos sido bem contemplados na distribuição das balas.
Dona Adamantina foi das professoras de melhor conceito naquele tempo, e muitos lhe devem as luzes do saber. Certamente já não vive, pois mesmo a sua cigana e o seu confeiteiro não estão mais conosco. Este, ceifado a bordo de um avião por uma embolia pulmonar, quando voltava de seminário sobre ciência do solo, sua especialidade agronômica. Como os bons solos agrícolas são os que produzem ingredientes para os confeitos, podemos conjeturar que seu futuro foi, de alguma forma, compatível com o personagem interpretado.
Quanto à cigana, honrou apenas as excelências do mar tranquilo de Formosa, como nadadora “master” de qualidade, vencida, enfim, por um AVC, em pleno abraçar das águas. Mas quis o destino que ainda tivesse tempo de reencontrar, muitos anos depois, Adamantina, que havia então assumido, na vida real, o papel antes atribuído à sua aluna. Aposentada com míseros proventos de professora, e recolhida a um bairro modesto da cidade, passou a dar cartas e dizer a sorte aos inquietos e carentes de conforto. Sua imaginação brilhante e seu carisma a ajudaram nessa nova missão, menos nobre, por certo, mas sempre caridosa e consoladora.
Clemente, o seu texto é nos faz andar pelos caminhos da alegria e da dor, desperta sorrisos e lágrimas, confronta o universal com o pessoal. É a vida verdadeira, feita de sentimentos reais, que se apresenta nas palavras que nos tocam cabeça e coração.
Que límpido contador de histórias é Clemente. Nem uma palavra demais, nem uma palavra de menos.
Clemente, deliciosas essas suas recordações. Essa e as anteriores. Os nomes dos personagens, alguns antigos parecem ficção. Adamantina! Hoje, dificilmente se põe numa recém-nascida um nome assim. Minha professora de primeiras letras se chamava Gerusa. Dona Gerusa, naquele tempo, começo dos 50, não tinha isso de tia. Continue. Toda sexta, abro a Revista, à procura de um novo capítulo. Abraço
Obrigado, amiga e amigos. Seus comentários me dão coragem de prosseguir com os meus causos. E espero continuar correspondendo às suas expectativas.
Clemente,
A essa altura já tens material farto e bom para uma coletânea. Ora, a vida precisa de certos ritos. Por que não abraçar o atrevimento de alguns e lançar um livro antes do fim do ano? Já pensou a delícia de ter essas histórias numa prateleira? Sei que você já tem livros publicados (está até me devendo um), mas os causos estão clamando por uma lombada que os deixe de pé, fora do ciberespaço. Abraço.
Gostaria de faxer umpequeno documentário com Seu texto, se me permitir.
Não faço ideia do que poderá ser isso, mas concordo em princípio.
A propósito, e seguindo tardiamente o conselho de Fernando Dourado, venho de publicar o livro “Sonata de Outono – Perfis, Causos, Memórias, Crônicas, Artigos, Ensaios”, que traz, nas páginas 103 a 105, o caso de D. Adamantina Neves.
Para contato direto comigo, meu e-mail é [email protected].