Nós percebemos o mundo por meio das relações afetivas parentais que nos constituíram como sujeitos. Nossa existência é marcada a afeto e sêmen por meio dessa estrutura edípica. Assim vamos seguindo a vida nos relacionando aos objetos que formam o mundo externo, aquilo que nossa consciência vê, ou pensa que vê. Não importa, a realidade é, para cada sujeito, uma única e singular expressão de como ele está inserido em seu meio — tecendo sua existência regida pelos significantes que estruturam e operam sua complexa e infinita malha de desejos.
Cessamos de existir quando cessamos de desejar, por isso a depressão é uma espécie de antivida, sustentando nossa existência em um único desejo, o desejo para a morte.
Para a psicose, a realidade é um delírio descolado do mundo. Nesse delírio, imerso em profunda angústia, o psicótico vive aprisionado, impedido de estabelecer trocas com o outro.
Não existe um sujeito isolado, nós não somos uma caixa preta com dois furinhos nos olhos para vermos o mundo. Somos, de fato, nossas relações afetivas, que nos ligam com os objetos e as ideias. O sujeito é constituído pelo outro, o inconsciente provém do outro. Professores, nossos chefes ou qualquer autoridade política são figuras substitutas das funções paternas e maternas, que nos forjaram quando ainda estávamos na pré-infância. É assim que se estabelece o poder nas sociedades: uma horda de cidadãos capturada numa malha de identificação que elege os líderes políticos, religiosos, artísticos etc, sempre projetando neles (os líderes) qualidades que gostaríamos de ter e sabemos que, em nossa mediocridade do cotidiano, jamais iremos alcançá-las. Subjacente ao Poder, opera um mecanismo de dupla articulação: a mitificação dos que detêm o poder e, por outro lado, a infantilização do cidadão que a estes delega o seu destino, a sua existência em sociedade.
O fanatismo ideológico, político, religioso, esportivo e outros são expressões máximas de um tipo de comportamento daqueles que, incapazes de pensar de forma autônoma – não tendo estabelecido uma ruptura mínima necessária com a estrutura edípica que os constituiu – entregam-se, sem o saber, na identificação com os objetos e ideias que os fascinam… os aprisionam. A dúvida, fiel companheira e instrumento vital para perscrutar a realidade, se esvai. Em seu lugar irrompe nas consciências capturadas pela certeza cega, onde o outro passa a ser uma ameaça às suas convicções, restando, portanto, apenas o ódio contra estes, um mecanismo de defesa contra uma realidade que não se ajusta a sua certeza ideológica.
Este é um comportamento atávico que nos acompanha desde tempos pré-históricos. Foi assim com os que crucificaram Jesus; foi assim com os nazistas e sua política de extermínio dos judeus e minorias; está sendo assim com o Estado Islâmico. E mesmo em uma democracia sólida como são os Estados Unidos, veem-se claramente traços deste tipo de comportamento, com a eleição do energúmeno Trump.
O Brasil não poderia ficar imune a este tipo de comportamento. Com o impeachment de Dilma e as descobertas que a Operação Lava-jato, inicialmente com o PT e sua política de Estado fundada na propina e na corrupção, os ídolos estão ruindo. Enquanto a poeira e os destroços dessa ruina não se dissiparem, a horda, quase que acometida por um surto psicótico coletivo, é incapaz de aceitar a realidade, negando-se a entender que a realidade, antes sólida, agora se desmancha no ar. Erram com seus mantras – apelo angustiante e desamparado – em busca de um novo pai, sem nenhum sinal de que este surja no horizonte da história.
Só atingiremos uma democracia estruturalmente consolidada quando tivermos maturidade para entender que não precisamos de um Pai, e sim apenas de gestores públicos que, embora no poder, são cidadãos iguais a nós.
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Sempre fui de esquerda. Vivi minha adolescência toda sob o peso da ditadura militar, e o refúgio encontrado por mim foi a leitura dos pensadores socialistas e marxistas e, na fase adulta, os pós-marxistas. A Ciência Política, a Filosofia, a Psicanálise e a Literatura foram outros veios que percorri, na ânsia de me entender e entender o outro e suas relações sociais.
Acompanhei e me emocionei com Lula, desde as greves do ABC, chute mortal que empurrou a Ditadura Militar para o abismo da História. Sobre ele, assim como muitos, depositei todas as minhas esperanças e ingênuas utopias. Foi tudo destruído pelos desvios éticos e estratégicos do PT (Mensalão, acordo com Maluf, beija-mão de Jáder Barbalho etc). E olhem que eu já havia sofrido enorme frustração com o mito Arraes, quando fui gestor público do seu governo.
Isto não é culpa nem de Lula nem de Arraes, é culpa nossa, por querer, imaginariamente, depositar no outro, no líder, desejos e esperanças vãs, muito além do que a realidade política pode nos dar em troca.
Quando vejo parentes e amigos divididos de forma radical, onde a razão e o senso de realidade são espezinhados por conta de um fenômeno político, como foi o caso do impeachment, impedindo que o diálogo, minimamente civilizado, venha à tona, preocupo-me, pois, enquanto nos digladiamos entre nós, amplos setores da Elite Política gozam com nossa alienação, aproveitando-se para continuar em suas “tenebrosas transações”.
De tudo que li e pesquisei sobre este tema— minha tese de mestrado foi sobre o Sistema Partidário Brasileiro 1982/90— ficou evidente que existe um conflito estrutural na sociedade, muito superior aos conflitos ideológicos partidários. É um conflito indissolúvel e estruturante, forjado pelos interesses antagônicos entre a sociedade civil e a classe política. É nesta tensão que reside o principal desafio de uma democracia. Quanto mais depositarmos nossas esperanças em “salvadores da pátria”, e não em gestores públicos, vigiados pela nossa cidadania, mas nos aproximaremos das sociedades primitivas. O oposto é verdadeiro: quanto menos envolvermos o processo político por um afeto infantil primitivo, mais nos aproximaremos dos padrões de uma democracia moderna, estruturalmente sólida.
O PT e Lula tiveram o azar de estarem no poder na hora que uma onda histórica, capitaneada por uma nova geração de procuradores, começou, enfim, a modernizar a nossa democracia, abrindo os esgotos da corrupção e lidando com seus dejetos. Qualquer um partido que estivesse no lugar do PT sofreria este desgaste — com mais ou menos intensidade e abrangência.
Reconheço que meus escritos tem um traço de profunda mágoa com o PT – gostaria que não tivessem – e este é resultado da minha enorme decepção com o que Lula e o PT fizeram com significantes antes nobres e humanistas, como “ser de Esquerda” e “forças políticas progressistas”, hoje conspurcados pelo mar de mentira, mistificação e corrupção em que se transformou a prática política do Partido dos Trabalhadores.
Destruiu o sonho de gerações, o de termos uma sociedade mais justa e igualitária, porém, ao mesmo tempo, nos desvendou os olhos para percebermos que a política humanista, progressista e de esquerda é de tal complexidade, que nenhum partido ou ideologia pode ser único detentor de tais atributos.
P.S Temer é um governo legítimo, como é também um “legado legítimo do PT”, e, considerando a situação em que o governo Dilma deixou o país, qualquer cidadão minimamente responsável entende que todo o apoio deve ser dado a Temer, para chegarmos em 2018 com a economia organizada, as reformas estruturais aprovadas e a nação pronta para novas eleições.
João Rego é mestre em ciência política, psicanalista e consultor.
Meu caro João Rego,
Um reparo ao seu artigo. Política se faz com políticos e não com gestores públicos. Vale reler o velho Max Weber que, mais do que o velho Karl Marx, soube explicar os fundamentos da política. Gestor público é uma invenção recente, que tem resultado na eleição de “postes” em vez de políticos, como fizeram recentemente tanto Lula quanto Eduardo Campos.
Cara Teresa
Max Weber morreu em 1920, viveu em seus últimos dias após primeira guerra mundial. Marx em 1883. De lá para cá as democracias se transformaram e, com a entrada na era da informação, as relações entre sociedade civil e classe política se tornaram bem mais complexas. A ação política é marcada hoje pelo paradigma da comunicação (olha o Habermas aí.). Confesso que quando falo em gestores públicos estou idealizando uma situação, jamais poderemos prescindir dos políticos, não porque eles serão sempre vitais para a vida em sociedade, mas porque o cidadão comum jamais evoluirá a um ponto de poder prescindir deles. Todos buscam um Pai para dar suporte a sua existência. E como tem “pai” perverso!
Quando falo na componente “gestor público” é no sentido de diminuir o espaço de poder deste totem moderno, o político. Veja o exemplo da Inglaterra e outras democracias parlamentaristas, lá o político quando assume o poder troca no máximo os assessores direto. A máquina governamental é gerida por gestores públicos, os civil servants, funcionários de carreira responsáveis pela boa gestão dos recurso públicos. O político tem a responsabilidade de dar conta da sua gestão, com transparência e honestidade (sim, isso existe!). Enfim, o poder político deve ser contido dentro dos limites da gestão pública voltada para o melhor desempenho da economia e da sociedade, traduzido em qualidade de vida, não para a mistificação da política em favor de uma elite que, no caso da brasileira, carrega o pesado e nefasto DNA do patrimonialismo e da corrupção.
Um beijo e obrigado pela leitura.
É até engraçada uma defesa retórica do “político” nesta era da pós-verdade, em que políticos em geral, quase em toda parte, estão tão desmoralizados… Quem está acompanhando a política no dia a dia terá visto que é cada vez mais frequente a necessidade de “avaliar periodicamente as políticas públicas”, e não deixa-las em vigor ao sabor da preguiça ou da conveniência dos políticos. A avaliação dos resultados de políticas públicas é tarefa para “gestores”, sim. Não sei bem o que está por trás da rejeição do “gestor público”, quando é tão criticado o emperramento da máquina pública e a ineficiência na administração. Para mim, a função de gestor público é mais que necessária. Mas, pelo visto, o véu ideológico está a criar polêmicas do tipo “sexo dos anjos” na defesa do “político” ou do “gestor”. Concordo com João Rego sobre a necessidade de o gestor público tratar de conter o político, o que neste momento é bem mais importante que o político influenciar o gestor. Vide a destruição da Petrobrás e outras estatais pela interferência dos políticos…Fatos são fatos, a essa altura muito mais estridentes que a autoridade de velhos pensadores mortos, que, aliás, refletiam sobre os acontecimentos das suas próprias épocas.