Será que José Dirceu de Oliveira e Silva voltaria um dia a atravessar de carro o vale do Ribeira, aquela região feiosa do estado de São Paulo, logo depois da divisa do Paraná? Não, era quase certo que nunca mais faria o trajeto. Mesmo porque, se os planos dessem errado e ele tivesse que tomar o amargo caminho de Curitiba, provavelmente viajaria de avião, sob a escolta da Polícia Federal. É bem verdade que havia sim a possibilidade de ser alvo de algum indulto de natureza humanitária. Mas então já não estaria em boa forma física e tão lúcido quanto hoje, com o coração trepidante para rever a filha, não por coincidência batizada com o mesmo nome da rua onde, na juventude, travou batalhas lendárias e reinou soberano. Se tivesse que fazer aquele percurso por terra, seria só mesmo como corolário de confabulações de uma junta médica sinistra que o liberaria para passar os últimos meses de vida num hospital ou em casa. Com alguma sorte, nessa circunstância aziaga, ficaria alojado na residência da aprazível cidade de Vinhedo, à espera do fechar das cortinas. Melhor, portanto, varrer esses pensamentos negativos da mente. Na verdade, se tinha dificuldade de assimilar os rudimentos do raciocínio burguês, outros tantos lhe eram tão óbvios quanto é o nado para o golfinho. E um deles dizia que o tempo presente é, por definição, uma dádiva. Era recomendável viver um dia após o outro, como aprendera a fazer na cadeia ou nas outras tantas vezes que precisou se virar na pele de um personagem novo. Mais do que nunca, tudo poderia estar acontecendo pela última vez. Deveria sim respirar fundo e apreender com os olhos a riqueza de cada detalhe, como faria um cego ao recuperar a visão.
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Esse era o torvelinho de pensamentos que o embalava quando deixaram para trás Registro, cidade de mal sinada memória para os companheiros da guerrilha. Em mais um par de horas, portanto, estariam entrando em São Paulo em plena madrugada. Durante quase todo o tempo que durou a travessia, ninguém no carro se atreveu a puxar conversa, a emitir uma só palavra, embora todos ali estivessem curiosos para saber o que assaltava o espírito daquele homem que vinha de arrastados 21 meses na prisão. Mas em respeito à regra vigente desde a confraternização em torno da pizza que assinalou a soltura, toda iniciativa deveria competir a ele e só a ele. “Que silêncio é esse, gente? Vocês decidem que horas sairemos para Brasília amanhã, está bem? Minha noite de sono será curta porque ainda quero prosear um pouco com meus filhos. Aliás, essa nova amiga em volta do tornozelo não deverá ser grande problema, não se preocupem. Já tive companhias piores na vida. E muito melhores também. Importante é que chegue a Brasília amanhã, sem pressa, curtindo a paisagem do dia. Alguma novidade no noticiário?”. “O de sempre, Zé”, respondeu o amigo. “Esses caras das redes sociais deliram. Tem gente dizendo que você foi visto há pouco comendo pão de queijo na churrascaria Rodeio, de São Paulo, em pleno shopping Iguatemi. Pode uma coisa dessa? Parece alucinação coletiva. E o que não falta é comentário babaca, alegando que tua soltura foi um escárnio à justiça”. O ex-prisioneiro sorriu com o canto da boca e não resistiu a pegar o mote: “Olha que não é má ideia para amanhã comer um churrasco. Onde é que tem uma boa carne em Brasília? O Porcão ainda existe?” Aproveitando a brecha, o segundo advogado comentou: “Nem de brincadeira, hein. Mais do que nunca, a vida daqui para frente será vivida em pequeno comitê. Não perca de vista o plano maior. O mais difícil já foi feito”. Sem um laivo de sinceridade, ele assentiu: “Você está certo”.
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“O que eu tenho a te dizer é o seguinte, Zé. Desde que o advogado cantou que o habeas corpus seria uma barbada na tal Segunda Turma do STF, comecei a bater sistematicamente à porta de nossa rede. Em bom português, isso ignifica acionar a arraia miúda que nos é mais próxima, geralmente lotada no segundo escalão das embaixadas, e que nos transmite o clima que reina lá dentro. Sem a sinalização dela, melhor evitar abordar os diplomatas mais graduados porque a consulta pode vazar para a imprensa ou mesmo para a polícia. Como você sabe, essa gente bebe muito. É claro que essas ações não fariam muito sentido se os caras tivessem te obrigado a ficar em Vinhedo, alegando que este era teu único domicílio cadastrado. Nesse caso, a logística seria mais complicada, mas saiba que também trabalhávamos uma possibilidade a partir de Viracopos em voo de carga fretado para a África. Tínhamos ainda pensado numa escapada num jatinho amigo a partir do aeródromo de Jundiaí, direto para Santa Cruz de la Sierra. Seja como for, importante é que você já está aqui, em Brasília, e sabemos que, aconteça o que acontecer, para Curitiba você não volta mais. Só se quiser ou se o plano falhar. Veja bem, quem sou eu para te dizer isso, mas do momento que os próprios advogados asseguram que a segunda instância está perdida, eles sinalizam para quem quiser entender que a hora de lutar é agora. E lutar o que é? Sair do raio de alcance deles, evitar a masmorra e cavar uma trincheira onde for possível. Sem essa de ir cabisbaixo para o matadouro como gado de corte. E depois, você não é mais tão jovem, meu amigo. E tampouco quer se privar de acompanhar o crescimento de sua filha, não é mesmo? Vamos aos fatos, então. Vou te resumir o resultado de nossa enquete”.
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“O melhor aceno a um pedido de asilo político que tivemos até agora foi, como esperado, o da embaixada da Venezuela. O ministro-conselheiro falou a nosso emissário que até o Maduro viria te visitar aqui, embora ele também esteja numa merda federal e não seja prudente deixar Caracas nesse momento. Se sair, talvez não volte. Não sei o quanto você tem acompanhado a situação, mas eles estão à beira do precipício. Vamos, portanto, analisar melhor essa alternativa. Outro parceiro ponta firme é o Evo, apesar de eu não achá-lo dos dez mais confiáveis. Tinha essa impressão ainda quando trabalhava na presidência com o Chefe e pouco mudou. Ocorre que desde que um diplomata maluco trouxe um senador deles para cá sob a alegação de precisar protegê-lo, Morales não vê a hora de pagar Brasília na mesma moeda. Depois, pense comigo, com você lá na embaixada por tempo indeterminado, ele se cura da inveja que sente do Equador, sempre na mídia depois que albergou Assange, o australiano esquisito do tal Wikileaks que mora num quarto da embaixada há mais de quatro anos, no coração de Londres. Portanto, podemos contar com eles. Já Cuba não se comprometeu com nada, mas sei que não nos faltaria. Enfim, vou deixar que você descanse, que vá namorar e ficar com sua filha. Já falei com nosso pessoal da pesada e se os mesmos carinhas de ontem insistirem em vir fazer balbúrdia nesse endereço, a gente vai rebater com a militância. Agora fique tranquilo. Por uma rara vez temos o tempo em nosso favor e o foco está em Curitiba. Todos os detalhes da operação estão sendo estudados e temos dois consultores que vieram de longe para nos dar uma mão. Cortesia dos angolanos, é bom dizer. Até o fim da semana, eu volto aqui. Como você gosta de dizer, a luta está só começando. Vamos deixá-los de cara mexendo, isso sim. Ah, o Chefe mandou aquele abraço. E te gravou uma mensagem de áudio. Ânimo, cara. Mas não abuse nas declarações por enquanto. Aquela de beijar o solo mineiro, o solo da liberdade, foi até bonita. Mas não é prudente botar as mangas de fora. A hora para isso vai chegar. Vamos ouvir o que o Chefe te mandou?”.
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“Zé, Bem-vindo ao mundo dos vivos, meu irmão. O que passou, passou. Como lutamos o bom combate, ainda vamos todos sair dessa encrenca de cabeça erguida por mais que as próximas semanas possam ser nossa verdadeira prova de fogo. Soube de teu plano e conte com meu apoio. Acho que você está certo. Considere os amigos da América Central, se é que já não pensou neles. E os da África também. Se tudo correr bem mais adiante, esteja certo de que eu o tiro da embaixada que for e, com um pouco de sorte, ainda vamos trabalhar lado a lado com os companheiros que foram caindo em combate. Se tivermos que errar, cometeremos erros novos, não os antigos. Tanto quanto você, aprendi um bocado, mas nada me tira da cabeça que esses caras que hoje arrancam suspiro de donzela nas redes sociais são uns deslumbrados que de política entendem tanto quanto eu entendo de conserto de trator. Quem melhor disse foi o ministro do Supremo: a república de Curitiba é formada por gente a quem falta a experiência jurídica para saber fazer bem feito, com respeito ao passado alheio e um mínimo de critério. Como você vai ver por esses dias, a capacidade de mobilização da militância é grande e eu quero que você dirija a ela uma palavrinha quando puder. 2018 vem aí e só temos que aguentar até lá. 2019 é nosso, se não me arranjarem encrenca maior no dia 10 de maio, quando vão querer me pegar pelos colhões. Você vai achar a fórmula de empolgar o partido discretamente. Abra o seu coração com o baixinho que me deu a ideia de te gravar essa saudação e diga a ele em primeira mão como vão os bastidores lá de Curitiba. Qual é o teu sentimento do pessoal, entende? Minha decepção toda é com essa gente que aguentou de bico calado até agora e, depois de vencido o mais difícil, começou a bater com a língua nos dentes. Qual é a deles? Bom, isso pode esperar. Vá descansar e não me deixe saber de seus planos só pelo jornal. Ainda tenho uma agenda boa e consigo abrir muitas portas. O Mujica te deixou um abraço e disse que está torcendo por você. Conte comigo”.
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“Muito bem, pessoal, vou passar para vocês os elementos que colhi dos tais especialistas nesse tipo de operação. A boa nova é que eles concordam em quase todos os pontos embora escutem mais do que falem, o que é do ofício. Especialmente o suíço que é fechado como uma concha e só responde ao que a gente pergunta, mesmo assim em uma sílaba. Já o israelense é mais soltinho, galhofeiro mesmo certas horas, o que traz alguma descontração ao ambiente. O suíço esteve por trás da fuga dos americanos que tinham ficado em Teerã, depois da invasão da embaixada. Portanto, sabe das coisas e tem nervos de aço. Já o tal Uri colecionou uma ou duas trapalhadas na Jordânia e na Noruega, mas a gente faz de conta que não sabe do detalhe para não colocá-lo na defensiva. Pois bem, qual é o ponto de convergência de todo mundo? Que a embaixada escolhida tem que ser a de um país simpático ao que representamos. É um bom começo e isso já nos dá dez alternativas. Em segundo, que seja a embaixada de um governo onde o poder esteja consolidado. Onde o Zé não tenha, portanto, um horizonte de penúria, má vontade ou suscetibilidade a pressões em caso de mudança de comando no país de origem. Isso já elimina duas das dez alternativas iniciais, o que é uma pena porque ele ama Cuba e está muito a gosto com os venezuelanos. O terceiro ponto é que as instalações se prestem plenamente a ser uma verdadeira residência. Não basta que veja o Lago Sul, por exemplo. Tem que ter o padrão de excelência do endereço, se for o caso. Como o asilo pode durar muitos anos, é fundamental que seja uma casa de ambiente múltiplos, inclusive com sala de reunião e um pequeno auditório para pronunciamentos e coletivas de imprensa. O israelense se passou por jornalista e cavou uma entrevista com o Assange, em Londres, que mora na embaixada do Equador. Fez isso para sentir o ambiente. Ele disse que o cara só aguenta aquele espaço porque já é louco. Outra pessoa teria pirado. Isso também limita nosso universo e reduz as boas alternativas a quatro porque nem todas as embaixadas de Brasília são confortáveis. Vamos fazer uma pausa para um cafezinho?”.
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“Retomemos, pessoal. Sob o ponto de vista legal, não há com o que nos preocuparmos mesmo porque ninguém seria pego de surpresa, e essas quatro alternativas tidas como ideais foram bem estudadas pelo núcleo jurídico e internacional. Vamos agora ao ponto de divergência entre os consultores. É bom conhecê-lo, mas desde já sabemos que não serão esses caras que ditarão o timing da ação mesmo porque ela tem que estar ligada ao cronograma político. E ninguém entre nós é mais animal político do que o principal interessado. Vamos lá: ambos concordam que o efeito surpresa fará toda a diferença e que esse fator tem que estar de nosso lado. Para tanto, o suíço é da tese de que poderíamos pedir asilo já, de imediato, no calor do interrogatório do Chefe em Curitiba, quando todo mundo imagina que o Zé só esteja pensando em comer um tutu à mineira com lombo de porco, e ficar com a Maria Antônia. Quanto mais o tempo passar e quanto mais a imprensa começar a especular a respeito de o Zé se entocar numa embaixada – o que não aconteceu até agora por pura sorte -, mais eles podem destacar uns homens extras para acompanhar nossos movimentos, e dar o alarme diante de qualquer articulação suspeita. Isso nos inibiria a ação. E o serviço precisa ser limpo, sem violência, para não perdermos a parte da opinião pública que está de nosso lado. Queremos apresentar o fato consumado e, uma vez a salvo, partir para uma estratégia de denúncia ao mundo. Mas vamos por partes, não quero queimar as etapas. Já o israelense acha que o fundamental é que a embaixada esteja literalmente com as portas abertas à hora combinada e que um motorista bem treinado em direção defensiva irrompa com coragem, a bordo de um carro blindado que possa atingir numa reta até 160 Km por hora, o que não é comum, já que a blindagem amarra o veículo. No mais, nosso pessoal distrairia a polícia do Distrito Federal momentos antes da ação. Isso, convenhamos, sabemos fazer bem. Enfim, a decisão será nossa. Ou dele. Mas esses são os parâmetros. Entendidos?”
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Tudo indicava que aquela seria só mais uma sexta-feira de modorra na capital. Brasília amanhecera fresca, sob neblina, e muita gente saiu de casa com um agasalho leve. Os pontos costumeiros de engarrafamento continuavam estarrecendo os candangos da velha guarda, ainda saudosos dos tempos em que era um verdadeiro prazer circular pela cidade. O relógio marcava onze horas da manhã quando Doralice Canto, servidora do senado, percebeu algo estranho no ônibus que parou em plena W3 Norte. Indiferente ao buzinaço que desencadeou, o motorista saltou com as mãos na nuca e, tão logo se viu fora do alcance dos bandidos, correu pelo gramado da quadra, pedindo aos passantes um telefone, já que deixara cair o seu depois de levar uma coronhada que lhe abrira o supercílio. “Eles são três, estão bem armados. O mais velho assumiu o volante e os outros estão aterrorizando os passageiros. Não é um assalto comum, posso garantir”. No mesmo instante, imensos rolos de fumaça subiram bem do meio de cada uma das duas pontes principais que ligam o Lago Sul ao Plano Piloto. Alguém ateara fogo a pneus de trator. No aeroporto, um volume foi abandonado na floricultura e a segurança entrou em alerta depois que vários telefonemas asseveraram que continha uma bomba. Vinte minutos depois, as decolagens foram suspensas e se evacuou o terminal, com instruções para que o tráfego aéreo fosse desviado para Goiânia e Anápolis. Ao lado da torre de televisão, um caminhão irrompeu num posto de gasolina, arremetendo contra o lava-jato, de onde o motorista se evadiu de carona com cúmplices que o esperavam. Da praça dos Três Poderes, um atirador disparou balas de fuzil na direção do Palácio de Planalto, estilhaçando as vidraças. Mais adiante, um carro atropelou o pequeno comando que tentou interceptá-lo na altura da antiga rodoviária. Já na L2 Sul, os agentes Sato e Patrício trafegavam num veículo prata de vidros escuros, acompanhando à distância o utilitário de grande porte que conduzia o homem que lhes competia observar desde o último fim de semana, quando tinham recebido instruções lacônicas porém precisas de que deveriam informar a central de qualquer movimentação suspeita do passageiro ilustre. Nem bem tinham se espantado com os rolos de fumaça, foram informados de que deveriam se apresentar no aeroporto de imediato e abandonar temporariamente o trabalho de monitoramento. Este continuaria a ser feito eletronicamente. Mal contornaram, lá pela altura do grande colégio, Patrício ainda viu pelo retrovisor quando, contrariando o que eles achavam ser os planos previstos de itinerário, segundo as escutas, o motorista do veículo perseguido embicou para a direita, sumindo do ângulo de visão da dupla, e disparando na direção do lago. Os telefones então começaram a tocar e o serviço de rádio ficou estridente, tantas eram as prioridades que pareciam saltar da tela. O que estava acontecendo?
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“O que eu posso dizer é que nossa embaixada acolheu o Sr. Dirceu segundo as normas que regem esse tipo de pedido em todo o mundo onde prevalece o estado de direito. Ademais, reitero que está descartada qualquer possibilidade de colaboração de nosso quadro interno de pessoal, conforme vem sendo insinuado pela imprensa. Nosso staff ficou muito surpreso com o acontecido, inclusive pela forma como isso se deu. Não é todo dia que um carro arremete contra um portão fechado. O fato de este estar destravado escapa à nossa compreensão, mas estamos investigando. Seja como for, nossa chancelaria está em contato com o Ministério da Justiça e o Itamaraty, e não há evidências de que tenhamos um desfecho imediato para essa situação. De nossa parte, a concessão do asilo não representa um desrespeito ao Brasil, à opinião pública e muito menos ao governo brasileiro. Quanto ao asilado, um mês depois de sua chegada, posso assegurar que se encontra em bom estado de saúde e recebe regularmente a família. Como embaixador, não posso me furtar a vê-lo periodicamente já que nossas instalações são também de moradia, ou seja, a residência oficial está a cem metros do complexo das salas de trabalho. Isso é tudo o que tenho a dizer. O único detalhe que posso acrescentar é que incorporei novos hábitos à minha rotina. Conquanto bebidas à base de rum não integrem sequer vagamente a cultura de meu país, o Sr. Dirceu me apresentou o mojito e confesso que me agradou bastante. É bem refrescante nesses meses de baixa umidade do ar. Das vezes que nos encontramos, tornou-se praxe tomarmos uma dose cada um, como manda a prática que pauta o convívio de dois cavalheiros. Lamentamos que nosso consulado no Rio de Janeiro tenha sido alvo de vandalismo por conta de pessoas que se declaram inconformadas com nossa atitude. Não queremos ser vistos como algozes ou como heróis. São muitos os precedentes no mundo de situações semelhantes. Logo não estamos inventando nada. Recebemos do Presidente Temer a sinalização clara de que as relações de amizade entre nossos países não se ressentirão desse episódio, dure ele o tempo que durar. Muito obrigado”.
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No dia em que você ler essas anotações, minha filha, quando a maturidade permitir que você aquilate o que foi maio de 2017, queria que você soubesse que cheguei a Brasília ainda em dúvida se deveria ou não pedir asilo político numa embaixada. Na verdade, só pensava em te ver e escutei com alguma indiferença as alternativas que me trouxeram. Mas essa dúvida logo se dissipou. Mais precisamente, evaporou-se quando assisti pela televisão ao interrogatório de Lula. Familiar com aquele ambiente, fechava os olhos e escutava a voz monocórdia do juiz e o tom nervoso do promotor. Naquela noite, não consegui dormir. E cresceu dentro de mim a convicção de que as coisas não terminariam nada bem. E que seria atentar contra você, me deixar levar de volta para o Paraná, como se seu pai fosse um cordeirinho. Minha última temporada prisional não foi das piores. A gente se acostuma a tudo, até a distribuir e recolher livros entre os detentos. Mas aqui é melhor. Da sacada do alojamento em que passo as tardes escrevendo, vejo o perfil de alguns dos principais prédios públicos de Brasília. A essa altura, meu coração já não bate acelerado por nenhum dos grandes endereços onde estive lotado, do alto de tanto poder. Para mim o poder maior é o de te ver para te ajudar a minimizar o atordoamento natural de quem não pôde ter uma infância como a de todo mundo porque lhe coube um pai caído em desgraça, numa quadra amarga da história de nosso povo. De resto, tudo o mais que me cerca tem ar de certa familiaridade. Na verdade, é como se já tivesse vivido uma situação parecida outras vezes, o que não está tão longe da verdade. A única diferença com respeito a tantos outros períodos de provação é que agora, em tese, poderia ceder à vontade de sair de carro em plena madrugada e dar ruma volta pela cidade. Já fiz isso na moto do adido militar uma noite, mas foi um passeio tenso e, a certa altura, tivemos a sensação de estar sendo seguidos. No instante em que te escrevo esse diário e que as causas populares sofrem um revés atrás do outro, vejo o sol sumir. Logo mais, o embaixador vai chegar aqui e tomaremos um drinque. Então discutiremos o noticiário do Brasil e do mundo. Gentil, ele me perguntará sobre você. Dia desses insinuou que você um dia pode ir estudar no país dele, o que não é má ideia. Mas por enquanto prefiro que você fique mesmo por aqui para que possamos nos ver. Por hoje é tudo, agora vou preparar um mojito. O embaixador gosta muito desse ritual e os visitantes têm que ser agradecidos à hospitalidade.
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Um tremendo suspense, e fácil de ler. Se non è vero, è bene trovato. Lendo, fiquei pensando se “Será?” e Fernando Dourado têm bons advogados, especializados em calúnia e difamação. Com a judicialização por todo canto…
Essa semana vi um editor brasileiro dizer no programa de entrevista de Pedro Bial que o Brasil tem baixa tolerância para o exercício ficcional de forma geral. Dizia isso em defesa de um livro cujo autor teria usado o pseudônimo de Eduardo Cunha, o que terminou causando celeumas judiciais, no bojo do fenômeno a que você alude. O cenário descrito aqui é deliberadamente ficcional muito embora esteja calcado em personagens reais, o que dá alguma tangibilidade ao exercício literário. Não difama ninguém, apenas tenta urdir uma trama que, ao final, compense a paciência do leitor. Já me basta que você (aparentemente) tenha gostado.
Faz sentido a sua preocupação, Helga. Mas o autor do texto foi muito hábil, extremamente engenhoso na trama. Não será fácil configurar nela o “animus caluniandi” ou “difamandi”, condição necessária para uma ação penal por crime contra a honra.
E ganhamos mais uma obra prima do nosso mestre da “short story”.
Problema resolvido, então, Helga. Nas mãos de Dr. Clemente posso dormir mais tranquilo e a Será? também. De resto, onde estaria a difamação? Onde se esconde a calúnia, senão na descrição de uma circunstância amarga para todas as partes envolvidas? E olhe que ainda saí com um galardão.
Seja como for, o mundo de um ficcionista (mesmo que ele seja ruim como escritor)é feito da colagem de pequenas peças que a todo momento transitam do tabuleiro da realidade tangível rumo ao mundo do podia ser, como seria, por que sim, por que não, quão forte é o talvez?
Ficcionista, quando muito, deveria merecer manicômio, não processo judicial. Seu direito de ir e vir nas conjecturas que o embalam equivale quase à liberdade de trânsito das pessoas. No mais, sabemos do acerto do velho mantra: a realidade vai sempre superar a ficção. É inapelável.
Ficção ou premonição? Vôte! ISOLA, PÉ DE PATO, MANGALÕ TRÊS VEIZ.
Por enquanto, só ficção. Mas do jeito que as coisas andam, acho que ele vai abdicar de qualquer plano e concluir que em Curitiba respirará ares mais previsíveis. Por paroxismo, vai chegar à conclusão de que a barbárie reina aqui fora. E como o personagem de “O deserto dos tártaros”, vai preferir a previsibilidade do regulamento da fortaleza às alegadas delícias da vida mundana. Sei não, David. Não tardaremos a testar os limites tênues da realidade e da ficção. Abraço