Éramos adolescentes, por volta dos quinze anos, eu e meu irmão, quando fomos convidados para um passeio de barco especial: pelos autores do convite – dois padres – e pelo destino – um convento de freiras na Baía da Traição, praia distante da nossa para ser alcançada em bote de vela. E como era de se esperar, logo aceitamos, incorporando à comitiva um colega de veraneio, o Aleksei (filho de russo), para nós simplesmente Alex.
Os promotores da expedição eram o padre Marcos Trindade, jovem sacerdote intelectualizado, recém-vindo de Roma, de tradicional família paraibana, nosso vizinho de praia, amigo, e até confessor, em verdes tempos, e o padre Alfredo Barbosa, vigário de Cabedelo, afrodescendente de grande popularidade e dinamismo, que tanto fez por sua paróquia que hoje dá nome ao hospital da cidade. A ideia da viagem havia sido dele. E o objetivo, visitar o padre Fernando Abath, parente e companheiro de Marcos em sua temporada romana, que passava uns dias de repouso no tal convento. Sobre este padre, pela beleza física de que era dotado, cabe registro de raro fervor religioso. Quando, ao andar pela cidade, defrontava-se com um grupo de mocinhas afoitas que o elogiavam, respondia apenas:
– Rezem pela minha alma!
Levantamos âncora na primeira luz da manhã, nós cinco e três tripulantes: mestre, proeiro e um auxiliar ainda garoto, cuja função quase exclusiva era molhar a vela, manejando um pequeno balde que lançava ao mar na ponta de uma corda, equilibrado na borda do convés.
Como íamos para o norte, o vento sul nos favoreceu, prenunciando, porém, na medida em que aumentava de intensidade, as agruras da volta. Em quatro horas, estávamos cruzando a barreta da Baía da Traição, com cuidado em relação à “Feiticeira”, pedra desgarrada da linha de arrecifes que oferece algum risco aos calouros da navegação por aquelas bandas. O único incidente foi o enjoo de mar do padre Marcos, saudado pelo companheiro de batina com seu inesgotável bom humor:
– Irmão, está alimentando os peixinhos?
Mas ao chegar, o mestre do bote foi logo advertindo o padre Alfredo:
– Seu vigário, a gente não pode demorar muito não. Com esse vento, a volta vai dar trabalho…
E não demoramos. Encontramos o padre Abath servido pelas freirinhas, entre emocionadas e cerimoniosas, fizemos um rápido lanche, e abrimos velas de volta ao meio-dia. Na vinda, nada houvera de mais penoso, além do enjoo do padre Marcos e a dificuldade de todos para atender ao imperativo fisiológico da micção. De pé, na borda de um barco em mar agitado, com os músculos das pernas sendo exigidos para o equilíbrio, a operação não é fácil. Quem primeiro a experimentou foi o Alex, que alertou para a dificuldade. Depois o padre Alfredo teve de encará-la, e logo confessou, bem humorado como sempre:
– Tou na mesma situação do Alex!
A solução foi recorrer ao balde de molhar a vela, e o nosso pároco, agarrado ao mastro, embaralhado às cordas, enfim aliviou-se.
A volta, porém, foi sofrida, quase dramática. Velejar com vento contrário exige o avanço em ziguezagues, no nosso caso rumando no “bordo do mar”, vela à esquerda, escota caçada, por longo trecho oceano adentro, depois virando no “bordo da terra”, vela à direita, até chegar perto da linha de arrecifes. Em seguida, nova mudança de rumo. E assim repetidas vezes.
Nas primeiras horas, o sol castigava impiedosamente: os botes veleiros de pesca não têm qualquer área coberta. E quando chegou a noite de lua nova, “mais preta que a consciência de Judas”, com o vento ainda mais forte e os respingos do mar agitado, veio o frio. Os padres acomodados como podiam, nós tentando ajudar na remoção de duas grandes pedras, de um lado para o outro do barco, para contrabalançar o empuxo da vela enfunada, a cada mudança de bordo. Só não conseguíamos ajudar na operação de molhar a vela. Faltava-nos destreza para colher rapidamente a água, com um golpe de mão, sem ter que soltar a corda do balde, ou ser arrastado para o mar.
E aconteceu que Alex, não resistindo ao frio, resolveu abrigar-se no porão, enfrentando as baratas, e chegou até a cochilar lá dentro. Mas quando “virávamos de bordo” e o mastro, sem a tensão do vento na vela, balançava e rangia, e as pedras eram arrastadas ruidosamente, acordava apavorado, aos gritos, imaginando acidente e naufrágio.
Nenhum instrumento de navegação havia. Mestre e proeiro se orientavam pelas luzes distantes das praias: o “fogo” de Lucena, o “fogo” de Formosa, de Tambaú, eram as suas referências. E mais perto do destino, a luz do farol da Pedra Seca, ainda do tempo do Império, sinalizando a entrada da barra do Sanhauá, para o porto de Cabedelo.
Noite adentro, seguíamos na penitência. Padre Marcos, deitado de costas na tampa do porão, cabeça apoiada no breviário, não se movia nem falava. Depois nos confessou que, com a cabeça dormente, sentia-se quase desenganado, sem esperança de chegar ao termo do sofrimento.
De repente, um susto. Na turbulência trevosa do mar, um vulto – cabeça e meio corpo – emergiu, resfolegando. Mas logo o mestre explicou: era apenas uma tartaruga gigante, confundida, naquela obscuridade carregada de tensões, com algum monstro marinho desconhecido.
Quando enfim nos aproximamos da barra do Sanhauá, os dois tripulantes se desentenderam. Naquele trecho da costa, a linha de arrecifes se interrompe, mas há pedras desencontradas, e ondas quebrando em várias direções. O proeiro achava que se podia prosseguir no bordo de terra, entrando obliquamente na barra. Mas o mestre mandou virar outra vez no rumo do mar, para depois entrar mais de frente.
É fácil ser ousado, quando não se tem a responsabilidade da decisão a tomar. O mestre estava certo. Quando, afinal, entramos, com o farol à nossa esquerda, vimos uma grande onda quebrar à direita, perto do barco. Teríamos sido atingidos, como já havia ocorrido antes com vários botes de pesca, em situação semelhante.
Ao fundearmos no pequeno porto dos botes, era meia-noite. Doze horas para cumprir um percurso que, na ida, com vento favorável, nos tomara apenas quatro. Caímos logo n’água, padre Marcos desembarcou numa prancha, padre Alfredo em outra. E a viagem foi encerrada com um incidente burlesco. Vimos, de terra, quando uma onda se formava atrás da jangadinha do vigário de Cabedelo, idealizador da aventurosa expedição. Não houve tempo para aviso. A onda emborcou a prancha, e seu passageiro foi jogado ao mar, com batina e tudo. Rimos todos, descontraídos, a começar pela vítima do banho inesperado.
E este relato se encerra na linha do Dr. Pangloss: tudo está bem quando termina bem. Convivemos ainda, longamente, com o padre Marcos e seus familiares, sempre nossos vizinhos nos verões da Praia Formosa, depois bem sucedidos empresários no ramo da educação. Quanto ao padre Alfredo, no ocaso de longa e profícua dedicação à sua cidade, teve as duas pernas amputadas acima dos joelhos, por conta de um grave caso de diabetes. Levados pelo padre Marcos, fomos visitá-lo na casa paroquial de Cabedelo, onde passava quase todo o tempo deitado numa rede. Rememoramos os incidentes da viagem, e ele ria, ria… Surpreendentemente, quase absurdamente feliz.
Lindo! Pelo visto “Será?” tem mais de um “mestre da short story”. Mas para escrever isso é preciso entender do assunto “velejar”. Da minha história de medo no Kattegat o único de conduta de vela que entendi é que os três que não entendiam de nada foram orientados a sentar na beirinha como contrapeso p’ro barco não virar. Pelo visto, dessa vez, o teu mar do Nordeste não foi assim tão calmo, carinhoso, morno e azul como o do conto anterior.
É verdade, Helga. Mas o principal componente do medo é o negrume da noite. Mesmo quando há lua. O luar, para ser belo, precisa de contraponto: o perfil de um coqueiro, a silhueta de um barco ancorado, a franja de espumas na beira da praia. Em alto mar, só se vê uma mancha leitosa sobre o dorso de um grande animal resfolegante. Para ser amigo, o mar precisa do azul.
Obrigado pelo comentário. Confesso que já estava sentindo falta dele.
Prezado Clemente,
Um ponto muito sugestivo de sua bela literatura é a proximidade que você tem com a natureza. Mesmo quando ela se mostra furiosa – na água, na terra e até nas explosões de temperamento dos animais -, você a enfrenta com humildade e bravura, com respeito e altivez na medida certa. Acho que esse conjunto de aptidões é fonte de sabedoria e paz de espírito. Daí ter pensado que, no fundo, você é um camarada bastante oriental, não importa o muito que esteja impregnado de tradição greco-latina de cultura. E, antes que esqueça, de rara fidalguia em tudo o que faz.
Abraço,
Fernando
Fernando, o brilho do seu comentário está acima do meu texto. Mas, realmente, você acertou na impressão sobre este seu amigo. Sempre admirei os modos de ser, e de reagir aos tropeços da vida, dos orientais. E me esforço por alcançar o patamar de fidalguia de que você fala.
Grato pelo comentário.
Clemente
eu volto no passado instantaneamente, no decorrer da leitura de seus “causos paraibanos”, é muito bom reviver os maravilhosos tempos passados. A sua maneira de escrever resgata memorias perdidas, devido ao tempo, em mim. Posso até “sentir” o que você escreveu, continue sempre assim. um grande abraço
Obrigado, Toinho, velho companheiro de nossa pequena pátria de Praia Formosa!
É gratificante, para quem escreve, saber que está provocando tais emoções!
Mr Rosas,
tarefa árdua tecer algum comentário frente a esse ótimo texto. Com lirismo e muito bom humor você descreve bem as dificuldades, angústias e medos daqueles bem aventurados que se lançam ao mar. Além de descrever precisamente as manobras do barco e a delicada posição do mestre: tomar decisões que em diversos casos representa a condição de manter em integridade as vidas que leva a bordo.
Espero que a brisa da Praia Formosa continue lhe inspirando.
Abraços
Amigo Eurico,
Nada melhor do que merecer um comentário de quem é do mar, ainda mais do que eu: um velejador de longo curso. A brisa de Formosa estará sempre à nossa espera.
Abraço.