Pedidos de asilo de venezuelanos bateram recordes no início deste ano. E tudo indica que isso ainda vai piorar. Em janeiro deste ano, o número de venezuelanos que pediram asilo na Espanha chegou a quase 4.000, mais alto que o pico atingido pelos sírios em maio de 2015, no auge da crise de refugiados na Europa. Os que pedem asilo, fugindo de perseguição, são apenas uma parte desse fluxo: só no primeiro trimestre de 2016 mais de 6.500 venezuelanos mudaram para a Espanha. O quadro se replica nos Estados Unidos: atualmente vem da Venezuela o maior contingente dentre os que pedem asilo, 2.334 pessoas só no mês de dezembro de 2016, comparado com 958 um ano antes.
Quem não pode ir tão longe foge para o Brasil ou a Colômbia. E aí o número de pessoas em trânsito é muito maior e os principais problemas são outros. Segundo registros do governo brasileiro, no ano passado, pelo menos 58.000 cruzaram a fronteira em Roraima vindos da Venezuela. Há estimativas de que esse número estaria mais próximo de 80.000. A maioria veio fazer compras de itens básicos de alimentação – arroz, feijão, milho, carne enlatada, frango congelado – e artigos de higiene, até pasta dental, que escasseiam na Venezuela. Mas uma parte ficou no Brasil. Há estimativas de que em 2016 pelo menos 10.000 venezuelanos resolveram ficar. Ou foi por medo à violência, ou não quiseram voltar às filas que se formam para a compra de itens básicos racionados e vendidos apenas segundo um calendário em que sua permissão de compra depende dos números finais da sua carteira de identidade.
O êxodo incomodou o Presidente Maduro a ponto de este determinar o fechamento das fronteiras com o Brasil e a Colômbia em 12 de dezembro passado, alegando combate a máfias de contrabando. Depois de uma semana de muita confusão e protestos, em que o governo venezuelano tentou também recolher as cédulas de 100 bolívares que estariam servindo a fraudes cambiais, o Presidente Maduro voltou atrás e restabeleceu a validade da nota de 100 e reabriu a fronteira para pedestres. Somente em janeiro a fronteira voltou a ter passagem para motos, carros e caminhões.
Entre as cidades fronteiriças de Santa Elena de Uiarén e Paracaima há um fluxo de 500 pessoas por dia, em média. Roraima, a começar pela pequena Paracaima com seus onze mil habitantes, tem grande dificuldade em absorver os imigrantes e refugiados, todos aqueles venezuelanos que simplesmente decidem ficar, nas condições mais precárias, sem moradia, sem abrigo, alguns pedindo esmola e enfrentando dificuldades de relacionamento com os locais ou rejeição. O governo do Estado de Roraima estima que há uns 30.000 venezuelanos no estado, sobretudo em Paracaima e na capital Boa Vista. Alguns já vão em direção a Manaus. Nem todos são índios waraos ou trabalhadores sem qualificação. Recentemente têm sido relatados cada vez mais casos de profissionais qualificados tentando a sorte. A Associação Venezuelanos no Brasil, que funciona em Boa Vista, tem um cadastro de mais de 500 desses profissionais. Há médicos, engenheiros, contadores, advogados, em busca de oportunidades de trabalho, e têm sorte se encontram ocupação como garçom, manicure, ou caixa de supermercado em Boa Vista.
A Polícia Federal em Boa Vista está atendendo 50 imigrantes por dia, que querem obter um protocolo de solicitação de refúgio, para regularizar sua situação no Brasil, e há uma fila de espera de cerca de 4.000 agendamentos. Dependendo da fonte de informação, essa fila é o dobro. Não houve como abrigar o súbito aumento da população, mesmo com a boa vontade dos serviços de assistência social e a ajuda de voluntários, e muitos estão ao relento, dormindo na rua. Este mês o governo do estado, junto com o comando da 1ª. Brigada de Selva, o prefeito de Paracaima, e um representante da Casa Civil da Presidência, decidiram instalar um centro de acolhimento, com capacidade para receber inicialmente 200 pessoas. Parece que foi pedida a ajuda da ACNUR, a agência de refugiados da ONU, mas esta está é precisando de ajuda, assoberbada com os refugiados do Oriente Médio. Espera-se que esse Abrigo Transitório comece a funcionar em meados de julho. E que haja orçamento para tanto.
Já há em Roraima um estado de emergência na saúde pública, devido à sobrecarga dos hospitais locais com o surto imigratório. E isso pode piorar depois que o Presidente Maduro demitiu sua ministra da saúde, a médica Antonieta Caporale, porque ela divulgou no início de maio um documento do Ministério da Saúde que indicou grave aumento da mortalidade infantil e materna, dos casos de malária, e o reaparecimento de enfermidades que se julgavam vencidas no país, como a difteria. O Presidente Maduro não explicou a demissão, mas sabe-se que o documento divulgado, um Boletim Semanal tradicional, estava sob embargo desde 2014, supostamente para evitar “interpretações políticas”.
Esse tipo de “argumento” se repete em outro caso em que a evidência não pode ser simplesmente embargada. A Venezuela sofreu um grande apagão em setembro de 2009, quando ficaram às escuras 10 dos 23 estados e parte de Caracas. O governo, ainda sob Chavez, explicou que o apagão se devia à grave seca, que de fato ocorria. Poucos meses depois o governo, ainda sob Chavez, modificou o processo de licitação e decretou “emergência energética”, para acelerar as licitações. Apagões continuaram no governo Maduro, agora atribuídos a sabotagem da oposição. Enquanto isso, a Suiça e os Estados Unidos estão investigando suspeitas de corrupção nos contratos públicos para a compra de equipamentos pelas estatais, em especial Corpoelec (Corporação Elétrica Nacional) e PDVSA (Petroleos de Venezuela). Tais contratos, com evidência de superfaturamento e uma quantidade surpreendente de remessas à Suíça, teriam servido para lavagem de dinheiro.
A ocultação oficial de dados vai mais longe. O declínio da economia se dá a partir de 2013, com forte desaceleração, e com grave recessão a partir de 2014. A perspectiva é de que permanecerá em recessão enquanto permanecerem as mesmas políticas públicas de intervenção na produção e na distribuição e a incerteza generalizada. Desde 2015 a Venezuela suspendeu as contas nacionais, e assim as estatísticas mais confiáveis que temos baseiam-se nas relações com outros países, como as de refugiados, de investimento direto estrangeiro, e de importações do resto do mundo. O investimento direto dos Estados Unidos na Venezuela, que vem caindo desde 2010, mais rapidamente desde 2014, passou a negativo em 2017. Essa tendência é mais geral, pois o investimento estrangeiro na Venezuela este ano parou, devido à instabilidade do sistema legal e incerteza de garantias nas disputas relativas à expropriação de ativos. As importações mundiais provenientes da Venezuela são hoje um terço do que eram em 2014, refletindo não só a queda de preço do petróleo (que representa entre 80% e 90% das exportações da Venezuela), como também a queda do volume de produção da PDVSA. E as reservas internacionais do país hoje não passam de 10 bilhões de dólares.
O colapso econômico sem precedentes do país pode ser resumido na taxa de inflação, a mais alta do mundo. O Fundo Monetário Internacional (FMI) estima uma inflação de 720% em 2017, acelerando ainda mais nos próximos anos, com o colapso do setor privado no fornecimento de itens de necessidade básica, o controle de preços e o acesso cada vez mais restrito a moeda estrangeira. Mas não há aceitação unânime da estimativa do FMI, que não tem contato oficial com o país desde 2004. As estimativas de economistas variam entre 350% e 2.200%.
As estimativas de crescimento econômico para 2017 igualmente variam, de 1% positivo a 7% negativo. O FMI prevê para este ano uma contração do PIB superior a 7%. O PIB da Venezuela é hoje apenas dois terços do que era em 2013 – uma das maiores perdas econômicas de um país desde a II Guerra Mundial. A taxa de câmbio no mercado negro não deixa de refletir o absurdo da situação econômica do país: no primeiro dia do ano de 2014 era 64 bolívares por dólar, dois anos depois já era 833 bolívares por dólar. Em 1º de janeiro de 2017 essa taxa foi 3.165 bolívares, e no fim de junho, 8.300. Enquanto isso as duas taxas de câmbio oficiais eram 10 e 700 bolívares. O Presidente Maduro anunciou em março mudanças no câmbio oficial, mas parece que ninguém tomou conhecimento. (https://dolartoday.com publica estimativas diárias, além de outras notícias do cotidiano da Venezuela)
A economia venezuelana beira a catástrofe. E tão cedo não pode esperar ajuda da política. A insatisfação cada vez maior da população é explicável e refletiu-se nos ganhos eleitorais da oposição (e no aumento do número dos que “votam com os pés”, vão embora). Mas a narrativa chavista não mudou e tratou de prevalecer mediante a prisão de políticos de oposição, manobras de redefinição dos distritos eleitorais às vésperas das últimas eleições, rejeição da presença de observadores internacionais, ataques à imprensa, tentativa de anular os poderes da Assembleia Nacional, controlada pela oposição. O Presidente Maduro, ao se defender contra o Mercosul que decidia cumprir a cláusula democrática do tratado e suspender a Venezuela, declarou que seu país é “uma clara democracia participativa, protagonística e que garante os direitos humanos”.
Com toda a onda de protestos e manifestações, em que já morreram 101 pessoas nos últimos meses (segundo o Observatório Venezuelano de Direitos Sociais), o discurso oficial continua sendo o de que a insatisfação é dos ricos, dos setores privilegiados da sociedade, e de que o governo, apesar das dificuldades no manejo da economia, devido a queda de preços do petróleo, continua merecedor da confiança dos “movimentos sociais”. No caso do regime bolivariano, são os chamados “colectivos”, gangues informais que garantem a submissão ao governo em cada bairro. Entre os governistas apenas começam a aparecer agora sinais de alguma divergência.
O último episódio de violência em Caracas ainda está sendo discutido, com diferentes interpretações. Pelo menos ninguém ficou ferido. Um detetive e piloto do CICPC (Cuerpo de Investigaciones Científicas, Penales y Criminalísticas) teria sequestrado um helicóptero e, depois de fazer uma proclamação pela derrubada do governo no Instagram, sobrevoou o Tribunal Superior de Justiça, onde deixou cair granadas, de depois atirou contra o Ministério do Interior. O helicóptero fotografado tinha as iniciais CICPC. O piloto, que seria Oscar Pérez, já foi o astro de um filme de ação e já tinha postado vídeos no Instagram como mergulhador, voluntário na distribuição de remédios, e perito atirador. Depois do seu ato heroico, o misterioso policial sumiu e continua desaparecido. Curiosamente a Força Aérea da Venezuela, apesar de seu novo sistema de defesa aérea fornecido pelos russos, nunca se mobilizou enquanto o helicóptero sobrevoava prédios oficiais.
O Presidente Maduro foi à televisão estatal chamou o sobrevoo de “ataque terrorista” e “golpe” e disse que já havia advertido sobre esse tipo de escalação da violência. Porém mais de um analista sugere que essa foi uma farsa montada pelo governo. Segundo John Paul Rathbone, correspondente do Financial Times em Buenos Aires, “a Venezuela está invertendo a ordem usual. A história lá acontece primeiro como farsa, e depois como tragédia.”
Fato é que Maduro está usando o sobrevoo como pretexto para aumentar a repressão. No mesmo dia a Assembleia Nacional, o único dos poderes não controlado por Maduro, foi invadida pela Guarda Nacional. E a chefe do Ministério Público, Luisa Ortega, que criticou Maduro ao dizer que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça contra a Assembleia Nacional significava uma “ruptura da ordem constitucional”, teve sua conta bancária bloqueada e foi proibida de deixar o país. E assim está evoluindo a farsa tornada tragédia. A violência vai aumentar. O que é que a comunidade internacional pode fazer para interromper a tragédia?
Está ao lado do Povo Venezuelano e estabelecer um canal de diálogo imediatamente pela OEA.
Não tratei da Organização dos Estados Americanos (OEA) porque o artigo já estava comprido. De qualquer modo de lá está difícil sair algo, não conseguiu os 2/3 necessários para aprovar uma resolução condenando a Venezuela, pois isso foi impedido por alguns países caribenhos e pequenos países com governos de tendência bolivariana que receberam petróleo subsidiado da Venezuela no tempo do preço alto em que podia se dar ao luxo da solidariedade. Além disso, o Ministro das Relações Exteriores venzuelano, Delcy Rodriguez, deixou a reunião da OEA antes da votação dizendo que qualquer que fosse o resultado ele não seria reconhecido pela Venezuela.
Em tempo: chamo a atenção da moderação para que considere que o comentário da pessoa que mencionou a OEA é inconstitucional, pois a Constituição brasileira permite a liberdade de opinião desde que não seja em anonimato.
Como anonimato? Não entendi. Ou o cidadão não se chama Helder Almeida?
Inicialmente apareceu só Helder. Daí meu comentário. O sobrenome foi colocado junto com a aceitação do meu comentário sobre a OEA.
Helga,
Você nos apresentou um paper de trabalho. Estava matando as saudades dos velhos tempos? De tão escorreito e claro dá até certa sobriedade a essa catástrofe que corrói por dentro um país que já foi rico. É o lado anestésico da tecnocracia que tem esse condão. Outro dado: entre portugueses (há muitos lá) e não lusos, Portugal recebeu U$5,5 bi nesses últimos meses, o que é uma sangria colossal. Imagine-se o resto do rombo e os demais destinos. Os caras acabaram com a PDVSA. Enfim, Caco Barcelos mostrou tudo na fronteira. Inclusive as aberrações humanitárias que se contam às centenas, o que vale para contratação (sic) de mão de obra escrava. Um dia te conto como é que conheci aquilo lá.
Fernando
Procurei mostrar fatos que estão na base da revolta crescente contra Maduro. Tua reclamação, Fernando, me fez lembrar observação do meu ex-colega de ONU e amigo querido, Diogo Adolfo Nunes de Gaspar, a texto que lá tive que escrever, sobre subemprego: “falta indignação.” Quero listar motivos da indignação contra a ditadura na Venezuela. Não entendi essas remessas da Venezuela para Portugal: seriam de antigos imigrantes portugueses na Venezuela? As cifras que dei sobre refugiados e emigração são oficiais, não incluem tentativas de entrar ilegalmente nos EUA, como Caco Barcellos parece incluir. Teu relato me interessa: espero que esse frio danado que corre o Brasil, ainda que não produza banquisa no Capiberibe, te traga de volta à pátria.
Não entendo de política nacional muito menos da internacional, mas vejo com muita preocupação o desenrolar dos acontecimentos na Venezuela. Estive por duas vezes em Boa Vista e os colegas de trabalho, do TCE de Roraima, à época, iam fazer compras no país vizinho. Na minha opinião, foi esse crescimento baseado em parâmetros “ocos” da economia que junto com a democracia “à lá Chavez” levou a Venezuela até esta situação. E continuo torcendo para que o nosso Brasil não siga o mesmo caminho. Quanto aos imigrantes, coitados deles, e dos estados do Norte já tão sem perspectivas para os nativos. Uma situação triste e complexa que só tende a piorar.
Depois dos chamados “choques do petróleo”, o primeiro no inicio dos 1970s e o segundo no fim dos 1970s, a Venezuela chegou a ter o PIB per capita mais alto da América Latina, e os turistas venezuelanos que andavam pela Europa eram conhecidos como grandes gastadores. Concordo com v. , Elizabeth, que foi uma riqueza “oca”, pois só pensaram no curto prazo. É verdade que preocupa a entrada descontrolada de pessoas fugindo da Venezuela, ainda mais em estado fronteiriço mais pobre. Pois até a Alemanha, rica, sempre fez cálculos sobre como a acolhida aos refugiados impactava o orçamento.
Excelente artigo, claro, objetivo, dá as informações necessárias para que se possa entender melhor o que está se passando na Venezuela.
Viva, Carmen Lícia Palazzo, que ótimo ver você comentando na “Será?”
Obrigada. E bem vinda também quando for para criticar.