22 de fevereiro de 2018
Crônica é sub-leve, nuvens passageiras. Romance tem mais sustança. Os alicerces ficaram, contudo, enterrados por muitos anos, décadas. Conto agora ao leitor algum deles.
No último mês da gravidez de Pedro, fui intimada pela ginecologista obstetra, Lana Maria de Aguiar, a ficar em repouso absoluto. Levantava da cama uma vez por dia, quando aparecia a necessidade do número dois, e aproveitava para tomar banho. Todo o resto, na cama. Enfermeira foi contratada. Isabel. Uma preta baiana de cabelos black-power e fala de Billy Holiday. Quando meu filho nasceu, ela dizia, com seu sorriso de negra de dentes brancos, Desse eu cuidei desde a barriga.
O tempo de recolhimento pré-parto não alcançou um mês. Mãe de segunda viagem, soube com tranquilidade a hora em que o rebento resolveu sair ao mundo. Foi somente então que interrompi a leitura, felizmente já tendo chegado ao ponto final, do longo relato de Riobaldo a João Guimarães Rosa. Houve, naturalmente, interrupções à leitura. Miguel chegava da escola, almoçava com Isabel e depois, enquanto eu comia minha refeição na cama, trazia seus legos e livrinhos, ficava comigo horas. Eu dormia mais do que o costumeiro, e, às vezes, acordava da sesta com ele ainda brincando no segundo espaço da cama de casal.
Sobrava-me tempo. Um tempo precioso, só para mim. Foi minha terceira tentativa de penetrar nos Grandes Sertões. Sequer sabia que Diadorim era mulher. Foram muitas emoções, diria Roberto Carlos. Pergunto-me ainda hoje como meu filho sentiu as minhas emoções. Carreguei-o comigo, feito índia, dentro da barriga, na pesquisa de campo decisiva para a tese de doutorado. Com um jovem técnico que também dirigia o carro da Emater à minha disposição, percorri Agrestes Setentrionais de Pernambuco. Já não sofria os enjoos da gravidez, mas o estômago estava sensível. Em cada casa, era recebida com os agrados da roça. Vi o mesmo em Minas Gerais, lugar de produção familiar. A vida corre devagar na roça. À tardinha, boquinha da noite, uma quitanda. Lá. Aqui, quase a mesma coisa recebe nome mais frugal, tomar um café.
Nessa pesquisa, fui recebida com mais diligência ainda. Tratava-se de uma mulher buchuda. E lá vinha o oferecimento do cafezinho. Era tempo de umbu, uma frutinha besta, verde em verde e de fina película amarelada em maduro. Pensei rápido, logo na primeira casa, Café não posso tomar que dá queimor na barriga. Mas se tiver imbuzada, aceito. Quantas entrevistas por dia, quantas imbuzadas. Numas férias na praia de Pau Amarelo, litoral norte de Pernambuco, pois não é que o menino, paulistano, avançou numa tigela de umbu na primeira vez que os viu? Comeu de se fartar.
Se começou a gostar de umbu na minha barriga, como terá sentido a emoção de penetrar nos sertões de Guimarães Rosa?
Miguel e Pedro, juntamente com a babá, haviam sido despachados para a mesma praia de Pau Amarelo. Depois fariam uma escala na praia de Itapoã, na Bahia. Ma belle soeur, em conversas por telefone, Onde anda a tese? Ainda falta a conclusão. Deixa os meninos mais quinze dias aqui.
Pelo meio da redação da tese, já embalada na carreira contra o tempo, não resisti a uma paradinha. Voltei ao princípio, ao verbo. Estava ali a riqueza: as fitas gravadas. Ouvi novamente. Desprezei a transcrição e fiz de novo eu mesma. Inventei uma pontuação que fosse o mais próximo possível à entonação da voz dos entrevistados. E cheguei a uma cerca, distante, muito distante ainda, dos Sertões do mestre. Reproduzi toscamente em quatro historinhas que entremeiam os capítulos finais da tese, tal um artesanato dos falares agrestinos.
Meu orientador na USP, Juarez Rubens Brandão Lopes, era mineiro. Professor, disse-lhe quando entreguei a primeira história, pensei em colocá-la, como fosse uma fotografia, para ilustrar o capítulo. Insegura, estava disposta a aceitar sua recusa.
Homem de muita timidez, vi um sorriso de aprovação quando me devolveu o texto lido. Dei para Dulce (sua mulher) e Maurício (seu filho) lerem. Isso é Guimarães Rosa. Era? O professor espiara lá longe a cerca vizinha. Animou-me a escrever as outras.
Precisava batizar a criança. Esse sempre foi um problema na minha vida, desde o meu batismo, com três possibilidades de nomes, até cada um de meus livros. Lembro a dissertação de mestrado. Novamente os prazos. Naquele tempo, não comprara ainda a Olivetti Praxis. Um datilógrafo passava a limpo o texto escrito à mão. E quando já ia para a gráfica, perguntou, E o título?
Ligo para o Cebrap. Juarez convoca Chico de Oliveira, resume para ele o conteúdo. Eu no outro lado da linha esperando, ouvindo a conversa. E Chico batizou: Cassacos e Corumbas. Assim? Sim. Pode botar um sobrenome acadêmico qualquer.
Estamos no auditório do Cebrap. Sendo no porão da casa, sempre me lembrou um convento. Espero enquanto Francisco de Oliveira lê as quatro historinhas. Da tese mesmo, ele sabia por alto. Vejo-o rindo, sério. Ao final, sem titubear, nomeou: “Eu mesmo, dona moça”.
Mas Chico, isso não é nome de tese. Então bote qualquer outro, que serve.
Hoje me pergunto, Por que, naquele momento, em que dois caminhos se apresentaram à minha frente, não tomei o do devaneio, da literatura?
A vida não tem marcha à ré.
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