Uma curiosidade que muitos apreciadores da chamada “música erudita” nunca pararam para pesquisar é qual a peça clássica mais ouvida desde que foi gravada pela primeira vez. Segundo o jornal inglês The Telegraph1, trata-se do coro que abre e fecha a cantata2 Carmina Burana do compositor Carl Orff (1895-1982), nascido em Munique, Alemanha. Composta para o palco, geralmente é apresentada como oratório de concerto – embora seu tema nada tenha de sagrado, como sugere seu subtítulo: Cantiones profanae.
Carmina Burana, composta em 1936, imortalizou o seu compositor, mas, na verdade, é a primeira parte de uma trilogia intitulada Trionfi, que também inclui as obras Catulli Carmina e Trionfo di Afrodite. Essas composições refletem o interesse de Orff pela poesia medieval alemã. É descrita pelo compositor como “a celebração de um triunfo do espírito humano pelo balanço holístico e sexual”. O trabalho foi baseado no verso erótico de um antigo manuscrito chamado Codex latinus monacensis, encontrado num mosteiro da Baviera em 1803.
O códice continha poemas em latim medieval, em geral, picantes, irreverentes e satíricos – exceto 47 versos, escritos em alemão popular e vestígios de francês antigo ou provençal. Há também partes “macarrônicas”, numa mistura de latim vernáculo com alemão ou francês. Um estudioso de dialetos, Johann Andreas Schmeller (1785-1852), publicou a coleção em 1847, dando-lhe o título de Carmina Burana, que, em latim, significa “Canções de Benediktbeuern” – Benediktbeuern é um município da Alemanha, no distrito bávaro de Bad Tölz-Wolfratshausen, na região administrativa de Oberbayern.
Os autores desses poemas eram os goliardos. Mas quem eram essas figuras curiosas? O renascimento urbano do século XII viu surgir à figura do intelectual, isto é, homem cujo ofício era ensinar e escrever. Esses intelectuais tinham consciência de viverem no âmbito bem diferente dos séculos passados e consideravam a si mesmo como modernos.
Entre esses homens pensantes, encontramos um grupo formado por estudantes pobres que viviam em constantes viagens de uma cidade para outra, os tais goliardos. A origem desse nome é um pouco controversa. Possivelmente deriva do francês antigo goliart. Na origem, significava “bufão”, e teria adquirindo, no século XIII, o sentido de glutão, debochado. No latim medieval goliardus teria afinal assumido o sentido de “clérigo ou estudante vadio”.
Levados por uma vida instável de experiências e curiosidades não eram bem aceitos socialmente, a comunidade urbana não via com bons olhos aquele grupo de rapazes pobres, irreverentes, rebeldes e imorais, que faziam críticas ferozes a todas as classes sociais, além de defenderem os prazeres da bebida, do amor e do jogo.
Grande parte da obra poética e musical dos goliardos é anônima, devido às complicações que poderiam ter caso fossem conhecidos. Em uma época em que o pensamento teocêntrico predominava e a hierarquia religiosa ditava as regras, esses jovens anárquicos e de espírito livre, usavam suas composições como um protesto e uma maneira de se opor ao sistema vigente. Estas composições foram reunidas nos Carmina Burana, nos quais à exaltação dos prazeres carnais se associa a crítica à Igreja medieval, que condena os costumes libertinos.
Polêmicos e ousados, os goliardos sofreram as mais diversas perseguições e condenações, e acabaram por desaparecer das culturas dos séculos seguintes, porém, deixaram seu legado: suas ideias, que reviveriam nos intelectuais do humanismo durante o Renascimento.
Apesar de moderno em algumas de suas composições, Orff soube capturar o espírito da era medieval em sua trilogia. Vinte e quatro poemas dos Carmina Burana originais foram musicalizados por Orff, e sua composição com esse mesmo título rapidamente se tornou popular. A obra estreou em junho de 1937, em Frankfurt. Orff optou por compor uma música inteiramente nova, embora no manuscrito original existissem traços musicais para alguns trechos. A estrutura conta com três solistas (uma soprano, um tenor e um barítono), dois coros (um dos quais de vozes infantis), bailarinos e uma grande orquestra.
Carmina Burana é emoldurada por um símbolo da Antiguidade: a roda da fortuna, eternamente girando, trazendo alternadamente boa e má sorte. É uma parábola da vida humana exposta a constante mudança, estruturada em prólogo e duas partes. No prólogo, há uma invocação à deusa Fortuna na qual desfilam vários personagens emblemáticos do destino de cada indivíduo. O movimento de abertura, que tem sido utilizado em filmes e eventos com dezenas de gravações, pode ser assistido no vídeo a seguir com Sir Simon Rattle regendo a Orquestra Filarmônica de Berlim:
https://www.youtube.com/watch?v=0bfK_okpyos
O texto cantado pelo coro diz o seguinte:
O Fortuna, | Ó, Sorte, |
Velut Luna | És como a Lua |
Statu variabilis, | Mutável, |
Semper crescis | Sempre aumentas |
Aut decrescis; | Ou diminuis; |
Vita detestabilis | A detestável vida |
Nunc obdurat | Ora oprime |
Et tunc curat | E ora cura |
Ludo mentis aciem, | Para brincar com a mente; |
Egestatem, | Miséria, |
Potestatem | Poder, |
Dissolvit ut glaciem. | Ela os funde como gelo. |
Sors immanis | Sorte imensa |
Et inanis, | E vazia, |
Rota tu volubilis | Tu, roda volúvel |
Status malus, | És má, |
Vana salus | Vã é a felicidade |
Semper dissolubilis, | Sempre dissolúvel, |
Obumbrata | Nebulosa |
Et velata | E velada |
Michi quoque niteris; | Também a mim contagias; |
Nunc per ludum | Agora por brincadeira |
Dorsum nudum | O dorso nu |
Fero tui sceleris. | Entrego à tua perversidade. |
Sors salutis | A sorte na saúde |
Et virtutis | E virtude |
Michi nunc contraria | Agora me é contrária. |
Est affectus | Dá |
Et defectus | E tira |
Semper in angaria. | Mantendo sempre escravizado |
Hac in hora | Nesta hora |
Sine mora | Sem demora |
Corde pulsum tangite; | Tange a corda vibrante; |
Quod per sortem | Porque a sorte |
Sternit fortem, | Abate o forte, |
Mecum omnes plangite! | Chorai todos comigo! |
Na primeira parte, celebra-se o encontro do Homem com a Natureza, particularmente o despertar da Primavera – “Veris laeta facies” (A alegria da primavera). Na segunda parte, “In taberna”, preponderam os cantos goliardescos que celebram as maravilhas do vinho e do amor (“Amor volat undique”), culminando com o coro de glorificação da bela jovem (”Ave, formosissima”). Mas antes, a soprano passa por sua prova de fogo na peça, uma das maiores do repertório para essa voz: o superagudo do “Dulcissime, totam tibi subdo me” (Dulcíssimo, dou-me toda a ti), que podemos assistir no vídeo abaixo com a grande soprano norte-americana Kathleen Battle. Ao final, repete-se o coro de invocação à Fortuna (“O Fortuna, velut luna”), indicado acima.
Com o sucesso de Carmina Burana, Orff abandonou todos os seus trabalhos anteriores, exceto Catulli Carmina e Entrata, uma orquestração da peça The Bells, do compositor inglês William Byrd (1539-1623). Seu último trabalho, De temporum fine comoedia (Uma peça para o final dos tempos), teve sua apresentação no festival de música de Salzburgo em 20 de agosto de 1973, executada pelo célebre regente austríaco Herbert von Karajan (1908-1989) com a Orquestra Sinfônica e Coro de Colônia.
Ao longo de sua vida, Orff trabalhou bastante com crianças, usando a música como uma ferramenta educacional, sendo a melodia e o ritmo tratados através de palavras. Nos círculos pedagógicos, Orff é lembrado por essa nova abordagem da educação musical, desenvolvida junto com Gunild Keetman (1904-1990) e consubstanciada no seu método Orff-Schulwerk (1930-35). Sua simples instrumentação permite que mesmo crianças não iniciadas possam executar peças musicais com facilidade.
Carl Orff é um caso único na história da música germânica: músico autodidata e que chegou tardiamente à composição, saltou por cima de toda a história da ópera para imaginar uma nova representação a partir do espírito do teatro antigo. Quem desejar assistir a um vídeo integral de sua obra-prima, recomendo essa apresentação legendada em português do Coro da Capela Real de Copenhague com a Orquestra Sinfônica Nacional Dinamarquesa dirigidos pelo regente espanhol Rafael Frühbeck de Burgos (1933-2014):
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1 Vide matéria disponível em: https://www.telegraph.co.uk/culture/tvandradio/x-factor/6899414/X-Factor-theme-tune-O-Fortuna-most-widely-heard-classical-track.html.
2 Cantata (do italiano “cantata”, particípio passado substantivado de “cantare”) é um tipo de composição vocal, para uma ou mais vozes, com acompanhamento instrumental, às vezes também com coro, de inspiração religiosa ou profana, contendo normalmente mais de um movimento e cujo texto, em vez de ser historiado, descrevendo um fato dramático qualquer, é lírico, descrevendo uma situação psicológica.
Parabéns pelo ótimo texto, explicando a origem e natureza dessa obra maravilhosa do maestro Carl Orff. É a melhor e mais completa matéria que já li sobre essa cantata. Meus parabéns mais uma vez!!