Fernando Dourado

Restaurante em uma encruzilhada – Ticino, Suíça.

13 de março de 2019

Hoje acordei bastante mal. Ou apenas razoavelmente mal – convém relativizar para achar um meio termo, ainda que seja na linguagem. O céu estava azul, e as camélias, magnólias e castanheiras estão em plena floração lá pelas bandas do lago Maggiore. Segundo ouvi de uma velha senhora na grande praça de Locarno – uma dessas matronas espadaúdas que fazem a ordenha todo dia, e que falam italiano com um resquício de sotaque alemão: “Moro aqui desde 1942. E posso garantir que a estação está antecipada em dois meses, Signore. Em pleno março, vivemos o que sempre só se vivia em maio durante décadas”. De vez em quando, chega até o apartamento o badalar preguiçoso dos sinos. Mesmo assim, não vi maior encanto em despertar na cama baixa, o que me obrigou a fazer dez minutos de exercício para não ser surpreendido ao levantar, por dores na parte inferior da coluna, lá pela altura da cintura, como tem acontecido desde que estava em Chicago, em setembro do ano passado. Feito o simulacro de ginástica, em que tento emular os movimentos de um gato siamês no corpo de um fornido angorá, fiquei um bom tempo no banheiro lendo as notícias que chegavam do Brasil. Se no final do ano passado, eu tinha a sensação nítida de que o País vinha me fazendo um tremendo mal ao espírito e à motivação, as dúvidas agora se dissiparam de vez. Diante do arrazoado de absurdos que entrou pela tela, fui até a pequena varanda e, pela décima vez nos últimos anos, pensei no enorme equívoco que cometi ao não ter vindo morar aqui na Europa, ou mesmo na Ásia, nos tempos em que levantava da cama com a agilidade de um guepardo e nenhum músculo ou articulação incomodava. Imaginar que dentro de mais uns dias estarei de volta à terra onde, bem ou mal, eu moro, é desalentador. Vendo os picos escarpados, lembrei de uma história que li tempo desses num jornal daqui. Dois alpinistas, pai e filho, saíram para uma escalada numa manhã de sábado. O primeiro entrou em apuros quando um gancho se soltou. Sem hesitar um instante, o filho acorreu em seu socorro por sobre uma ravina profunda. Quem viu a cena de longe, diz que os dois se abraçaram no ar e caíram na greta imensa, de todo inacessível, onde dormirão para sempre. Buscar a materialidade da morte, contudo, é missão impossível. Assim, a viúva vem passando por necessidades já que, sem um laudo necrológico, não pode acessar sequer a conta bancária do esposo. O que não dizer de bens e patrimônio? Quando indaguei o por quê de tanto rigor, prática tão avessa ao bom senso num país onde a boa-fé ainda conta, a resposta foi que a morte é também uma indústria, e que muita gente forja o próprio desaparecimento para recomeçar vida nova na Tailândia ou nas Ilhas Salomão. Sumir numa ravina de mais de mil metros de profundidade torna qualquer investigação impraticável. O problema fica para a companhia de seguros. E para uma viúva desarvorada, como nem todas as viúvas. Afinal, ela também perdeu o filho.

Na verdade, cheguei na noite de ontem aqui à região do Ticino, a cinematográfica Suíça italiana. Venho de uns dez dias consecutivos na Itália e, se não estava totalmente feliz enquanto lá, pelo menos me sentia alegre e sociável. Viajamos em quatro pessoas, e digamos que são parcerias já bem testadas, embora sujeitas a leves e divertidas intempéries. Para mim, não houve nada de novo nas paisagens. Salvo, fundamentalmente, por Bolonha, onde nunca estivera. Tanto lá quanto em Roma, Verona, Nápoles e Florença, minha preocupação cardeal foi a de evitar desgastes de convivência, primar por organizar uma logística impecável, reservar bons alojamentos a preço justo e prever ótimos restaurantes, onde comêssemos e bebêssemos muito bem à base de 40 euros por pessoa, o que é bastante razoável na Itália. Não que fizesse contas a toda hora. Mas julguei ser meu dever atentar para a preservação de um preço médio sensato, porém folgado. De Bolonha, adorei a arquitetura do centro velho. De Florença, não esquecerei a suculenta bisteca fiorentina da Trattoria Zà Zà. De Roma, ficará registrado o longo passeio a dois que começou na Via Condotti e terminou no Coliseu, num lindo entardecer de sábado. De Verona, além do Castelvecchio, simplesmente magistral à luz do entardecer, gostei muito de Sirmione, que não conhecia, no Lago di Garda. De Nápoles, curti especialmente o cigarro de haxixe que descolei num beco escuro, e que valeu à nossa mesa um verdadeiro estado de elevação espiritual, além de gargalhadas alucinadas. Daria tudo para saber a procedência de fumo tão aromático e primoroso. Tudo leva a crer que tenha chegado pelo Mediterrâneo diretamente do norte da África, ou até do Líbano. Depois todo mundo viajou de volta para o Brasil e resolvi ficar mais um pouco para me centrar na vida. Dentro de mais duas semanas, faço 61 anos. Não deve ser por outra razão que fico matutando sobre pessoas que se deram a chance de recomeçar tudo em outro lugar, ou mesmo sobre quem foi tragado por uma ravina helvética ao fazer aquilo de que mais gostava, ironicamente ao lado de quem mais amava. Seja como for, estou bem instalado, perto do centro de Locarno, onde meu amigo me franqueou sua casa de campo, uma instalação modesta para seus padrões, é verdade, mas superior a qualquer expectativa de hospedagem com que eu pudesse ter sonhado. Mais tarde vou fazer umas comprinhas e abastecer a dispensa. A todo custo, preciso evitar o tal mercado Manor cujos preços chegam a duas vezes os praticados em casas similares do resto da Europa. Ao fumar um charuto na varanda, percebi que ali jaziam 3 jornais. Um local, um italiano e um alemão. Devo agradecer a meu amigo pela cortesia pois sei que ele deve ter encomendado o mimo a um quiosque das redondezas. Para mim, contudo, não há sintoma mais agudo de um estado de alma deprimido do que guardar distância dos jornais. Mal folheei-os e logo foram para o lixo.

14 de março de 2019 

Hoje o despertar foi tão parecido com o de ontem que por um momento pensei estar revivendo uma dessas situações conhecidas. É claro que precisei fazer os pequenos exercícios recomendados pela especialista e tão logo fiquei de pé fui à cozinha, onde bebi meio litro de água diretamente da garrafa da porta. Ontem à noite tinha comprado um pedaço copioso de “arrosto di vitello al forno” com batatas coradas. Sendo o prato meio pesado, abusei do vinho tinto para digeri-lo e, de quebra, ainda tomei sorvete de frutas do bosque à hora de dormir, numa tentativa vã de escrever um artigo. Acostumar-se a dormir pesado é uma mania danosa que acomete os homens de meia-idade que vivem a maior parte do tempo sós. Numa dessas, revira os olhos no sono e não acorda nunca mais. Apesar de a Suíça ser um país onde vivem muitos velhos, minha morte seria a conversa do dia em Locarno. Ou seria isso muita pretensão? Os jornais novos estavam hoje a um metro do capacho e me pergunto se não deveria deixar uns dez francos de gorjeta para o entregador misterioso. No começo da tarde, resolvi dar um pulo em Lugano para espairecer. Se não consigo escrever, que vá esticar as pernas em paisagens conhecidas há mais de 35 anos. Não gostei da decisão. As estradas estavam muito tomadas e o modo suíço de dirigir é irritante. Se por um lado, as montanhas são imensas e imponentes, a vida nos vales é contida sob todos os aspectos. Mesmo que o Ticino goze da fama de ser a encarnação da Suíça latina aos olhos de quem vem de Zurique ou de Genebra, a verdade é que dificilmente alguém excede os 30 quilômetros no perímetro urbano. E para que se chegue a uma velocidade de três dígitos, só mesmo nos túneis belamente construídos, longe da claridade solar. No mais, o equilíbrio é frágil e tenso. Todos se respeitam com expressões impostadas e exageradas de agradecimentos e cortesia. “Obrigado muitas vezes”, é uma expressão recorrente nas quatro línguas oficiais do condomínio federativo. Cada centímetro de estacionamento tem dono e nada, virtualmente nada, é de graça. Salvo o ar…e olhe lá. Dois minutos de estacionamento para comprar um isqueiro podem ser penalizados com uma multa de 40 francos e uma notificação contundente. Fala-se baixo, sorri-se muito, dorme-se cedo e dizem que o sexo é programado de acordo com as estações e as datas familiares, todas afixadas num grande calendário na cozinha. Para que meia-dúzia de crianças atravessem a rua, devidamente paramentadas de coletes fosforescentes e escoltadas por professores vigilantes, monta-se uma semi operação de guerra e os motoristas recebem todo tipo de sinalização possível quanto aos perigos do trecho. O resultado é que mal cheguei a Lugano, resolvi voltar para tentar me concentrar em minhas tarefas antes do jantar. Falando nele, acho que vou ao hotel Dell´Angelo que tem o mérito de ter uma cozinha barata, ficar aberto até tarde e me obrigar a dar uma bela caminhada de ida e volta.

Já passava das seis horas da tarde quando consegui me concentrar no registro de meus dias – já é alguma coisa -, depois de tentar, em vão, interiorizar o momento brasileiro. Um dos motivos de eu estar enfrentando uma enorme penúria de inspiração se prende sem dúvida à falta de conexão emocional com o Brasil, muito mais do que com a defecção de minha agente literária portuguesa que, sem que nem mais, resolveu mudar de profissão. Em que consiste essa falta de conexão com a Pátria-Mãe-Gentil? Ela decorre, em primeiro lugar, do ridículo das trapalhadas da família presidencial. Não se pode perdoar o PT por nos ter deixado esse legado deplorável. Segundo, por umas tantas histórias que perpassam o ideário de uma parte do País e que não me sensibilizam além da conta, como seria lícito esperar em outros tempos. Posso ser mais objetivo: a morte da vereadora Marielle é por certo odiosa, e é preciso que se dissipe essa sombra que paira sobre os mandantes e executores. Mas vejo uma mitificação em torno da moça que me irrita. Ela, coitada, as tais Anitta e Marquezine, as três me parecem encarnar um Brasil que não é aquele de que sempre gostei. Chega de rabugice. Vou sair logo mais para jantar. Cai uma chuva fina e acho que ela vai destruir a vegetação de pétalas exuberantes antes do amanhecer. A temperatura é de 7 graus, a sensação térmica de 3 e neva nas montanhas ao lado, acima de 1200 metros. Dentro de mais uma semana, estarei em São Paulo e talvez olhe para trás e lamente que estivesse tão nauseabundo nesses dias que antecedem a volta. Vou ao Recife para festejar meu aniversário no dia 29? Certamente. Ficar em São Paulo seria afrontar os que me querem bem em Pernambuco, e, sobretudo, de me privar do prazer de recebê-los em torno de uma travessa de bacalhau. Por outro lado, é em São Paulo que devo deitar âncora se quero achar um rumo para os próximos meses, para não dizer anos. Já não há muitas cartadas profissionais a dar e a cidade é inóspita, impessoal, cara e poluída. Posso amá-la, como de fato acontece, mas se não me acercar de alguns cuidados, a poluição vai simplesmente me matar. Ao cabo de 3 dias em casa, já começo a tossir e a poeira dos livros agrava o quadro de quem já tem asma brônquica por conta de ter tomado betabloqueador durante anos. Mas se não reunir as condições de vida – materiais e imateriais – para viver muito bem, melhor abdicar e ir para algum lugar onde a luta pela vida seja menos renhida. Quem sabe aqui por perto, do outro lado da fronteira italiana, pelas bandas de Como? E por que não em Garanhuns, meu fetiche eterno? O jantar no Dell´Angelo consistiu em uma cumbuca de sopa de aspargos seguida por um ossobuco com arroz de açafrão. Tomei um quarto de vinho tinto e resisti à sobremesa pensando nos morangos frescos que tenho em casa. Cheguei aqui com bastante frio, mas o calor do quarto me aconchegou a um ponto tal que quase me senti feliz. Fiquei no quase, como em (quase) tudo ultimamente.

15 de março de 2019

Dormi pessimamente de ontem para hoje. Não são sequer sete horas da manhã e já estou de pé, prescrutando em vão as duas grandes montanhas que ficam à esquerda do terraço. A neblina ainda não se dissipou e parece que as encostas estão mais nevadas do que estavam ontem. A meteorologia fala da persistência da chuva fina e até da possibilidade de algum deslizamento de terra nos flancos. Se há uma Defesa Civil em que confio, é na daqui. E, é óbvio, na de Israel. Mas aprendi cedo que com a natureza não se brinca. Na última parte do sono, sonhei bastante. Ora conversava com meu falecido pai, ora fazia uma viagem de barco bastante inverossímil pois navegávamos no asfalto. O que importa? Estou com os sentimentos desbalanceados. As emoções fortes de setembro para cá foram certamente maiores do que os magros dissabores, muito embora eu tenha ficado para trás com relação a algumas metas previamente estabelecidas. Não posso me queixar do que vivi nos últimos meses, mas certo é que a situação do Brasil ainda é de desequilíbrio e as propostas de trabalho precisam vingar para que o cotidiano ganhe aderência e liquidez. O pior não chega a ser não estar com dinheiro sobrando, mesmo porque sei que tampouco ele faltará para o fundamental. O ruim mesmo é ter cara de rico e ser alvo, a todo instante, de candentes pedidos de ajuda. Ora, quem me vê de fora, jura que tenho uma vida até muito abastada. Afinal, como explicar os constantes deslocamentos pelo mundo? Sei que seria derrisório tentar convencer quem quer que fosse que resulta muito mais caro para mim ficar no Brasil do que na Europa, por exemplo. O melhor mesmo é irrigar o caixa e correr atrás das receitas. Tenho certeza de que esses problemas nada são se comparados com a lamentável defecção da agente portuguesa que me fez perder seis preciosíssimos meses por conta de uma expectativa a que ela sequer deu encaminhamento. Mesmo assim, eles chegam em mau momento porque até serem resolvidos, tudo fica para depois: check up, novos escritos, ritos de família e até as viagens pessoais, aquelas que mais me encantam. O que também não vem ajudando nada é ver amigos seriamente doentes. Logo que cheguei à Europa, pouco mais de duas semanas atrás, estive com meu amigo de negócios R., de quem muito gosto há exatos 34 anos. Depois de vir enfrentando um câncer já há 6, confessou que está ficando de saco cheio com os rigores do tratamento. “Os médicos dizem que talvez não morra do câncer, mas com ele. O que eles não dizem é que o tratamento tem efeitos colaterais horríveis. Já aguentei mais de 30 quimioterapias. Se houvesse milhagem no sofrimento, eu teria o cartão máximo da maior categoria. Chega”. Confesso que isso também me abalou.

Muito bem, agora são quase 8 horas aqui, portanto quase 4 no Recife. Improvisei um café da manhã de pão com mortadela italiana e chá de menta. Combina? De maravilha, ora essa. João Rego me liberou para mandar meu texto até a madrugada do Recife, o que vale dizer até este horário. O “Jornal do Commercio” já está nas bancas e tem por destaque a privatização do aeroporto do Recife. Eis uma perspectiva concreta de termos todas as escadas rolantes em funcionamento ao mesmo tempo, o que nunca aconteceu até agora, pelo menos que eu tenha visto. Pensando bem, não deixa de ser um tremendo despautério que tente ocupar as páginas de Será? com literatura, e termine por mandar um cartapácio desses que sequer jornalismo consegue ser, apenas memorialismo lavrado a quente e de valor muito duvidoso para o leitor. Ocorre que fazer a tal literatura é um exercício estranho. Requer recuo, temperança, paciência e aplicação. Prefiro escrever meus alfarrábios nesta linha, e seja o que Deus quiser. Se me preocupo em escrever o que eventualmente possa vir a ser classificado como literatura, sobrevém aquela mesma sensação apatetada que tínhamos na adolescência ao abordar uma mulher muito cobiçada. Com todas as outras, a conversa fluía solta e sem cerimônias. Você era engraçado, tinha presença de espírito e elas ficavam encantadas com tanta espontaneidade e irreverência. Já quando chegava a hora de abordar aquela por quem se tinha uma paixonite indisfarçável, as palavras não saíam, as respostas eram ridículas e ela se sentia diante de um imbecil juramentado. Assim sou eu com a literatura. Posso até cometê-la, aqui acolá, mas desde que não tenha a intencionalidade de fazê-lo. Se tiver, é fatal que vá me sentir tão falso quanto uma cédula de 3 reais. Abri a veneziana. Agora a claridade se impôs de verdade e vejo que os cumes estão coroados de neve. Uma rápida incursão no Twitter atesta que um maluco entrou numa mesquita na Nova Zelândia e fez uma lambança. Simulando um cálculo sumário, sendo lá já noite alta da sexta-feira, a intenção era mesmo a de pegar o templo abarrotado de fiéis. Ainda não sei o que farei de meu dia aqui, mas se impõe ignorar a chuva e dar uma caminhada até Ascona, lá onde fica a estátua de uma mulher à beira do lago. Vou tentar passar os próximos dias à base de salada, sopa e nada de carboidratos. O organismo está mesmo precisando de um descanso depois da boa mesa italiana. Poderia ter falado mais, muito mais, sobre a Itália aqui nestes apontamentos. Digamos que seja um caso de amor incurável, uma celebração que me faz bem à alma. Desde que a conheço, lá se vão mais de 40 anos, a Itália está para quebrar. A despeito da incredulidade geral, ela segue viva. Pensando bem, será que isso me lembra alguém?