Em meados dos anos 70 do s?culo passado, quando o Mato Grosso ainda era um Estado ?nico – n?o existia Mato Grosso do Sul ? estive l?, diversas vezes, como rep?rter de um grupo empresarial que j? n?o existe. Encantava-me aquele mund?o l?quido e verde, escuro e misterioso, onde ainda viviam algumas tribos ind?genas pacatas mas arredias, com muita raz?o a desconfiar do homem branco. Vez por outra, descobria-se pequenos lugarejos plantados no meio da floresta, cercados por lagos, rios e cachoeiras, de ?guas t?o cristalinas o quanto foram nos primeiros momentos da cria??o.
Sentia-me bem na minha solid?o de rep?rter itinerante quando viajava pelo Mato Grosso, por Goi?s, pelo Sul do Par? ou pelas periferias do Amazonas, e todo aquele mundo verde e desconhecido tinha sobre mim uma esp?cie de feiti?o, de magia, de alumbramento ? era como se eu fosse escolhido para dar um testemunho vivo da presen?a de Deus. Vasculhei os baixios do Pantanal, viajei?em canoas guiadas por nativos nos rios amaz?nicos, participei de ca?adas noturnas de jacar?s na regi?o dos Lagos dos Reis, dormi em tendas armadas ? beira dos igarap?s, voei em Catalinas que serviam ao Correio Nacional, e cujas asas estavam remendadas com esparadrapo, almocei tucunar? rec?m-pescado e cozido em panela de barro. Na empresa onde trabalhava, talvez eu fosse o rep?rter de mais larga intimidade com aquele vasto mundo.
Deixei a empresa onde por quase seis anos dediquei suor e compromisso ? mas quando sa? levei comigo a afei??o e o carinho pelo Norte e o Centro-Oeste do Pa?s. No meu?novo emprego, os novos patr?es, cientes da intimidade que eu cultivava com aquele peda?o desconhecido do Brasil, deram-me como primeira?tarefa cobrir o lan?amento de uma a??o governamental, que atendia pelo nome de ?Projeto Aripuan??. Um projeto t?pico dos Governos Militares, da megalomania do ?Brasil Grande?,?que envolvia quatro Minist?rios e que seria tocado pela Universidade Federal do Mato Grosso. Mas, n?o se pode esconder que o projeto tamb?m impressionava pela sua abrang?ncia: fincava, em plena floresta, um campus avan?ado da UFMT e um posto de observa??o de cada Minist?rio parceiro da iniciativa. Instalavam-se no meio da floresta e l? ficavam, para estudar a biodiversidade da Regi?o, a fauna, a flora, os recursos minerais e a presen?a de tribos ind?genas n?o aculturadas. Mission?rios de v?rios credos e nacionalidades tamb?m costumavam aparecer, bem como religiosos da Igreja Cat?lica, sempre amparados pelas Prelazias que se espalhavam pela Amaz?nia. O que n?s, rep?rteres, n?o sab?amos, ? que as tropas militares e agentes do SNI tamb?m acompanhavam de perto o projeto, como se revelou muito tempo depois, em a??es reservadas que monitoravam a movimenta??o da Guerrilha do Araguaia.
Para chegar ao projeto ? eu e um n?mero reduzido de jornalistas ? sa?mos do Rio de Janeiro em avi?o de carreira e voamos at? Cuiab?. L? pernoitamos. Na manh? seguinte, deixamos Cuiab? a bordo de um avi?o H?rcules, da FAB, adaptado para o transporte de tropas, e seis horas depois descemos num campo de pouso improvisado, localizado num alto de um plat?, bem ao lado de uma cachoeira batizada de ?Salto de Dardanelos?, uma bel?ssima queda d??gua de 130 metros de altura, ornada pela presen?a quase constante de um arco-?ris.
Devo dizer que meu companheiro nessa aventura era o rep?rter fotogr?fico Claus Mayer, contratado como free-lancer para a tarefa, um alem?o grande e rosado, primo da atriz?Rommy Scheneider, ?extremamente talentoso, ganhador de v?rios pr?mios de fotografia e correspondente, no Brasil, da Ag?ncia Black Star, uma das mais prestigiadas do Mundo. Hav?amos trabalhado juntos na mesma revista a que l? em cima me referi. Claus, ap?s cumprir a nossa tarefa, pretendia permanecer por l? mais alguns dias, pois fora informado da possibilidade real de um grave conflito envolvendo posseiros e alguns enclaves ind?genas, amea?ados pelo homem branco. Ele pretendia fotografar o conflito anunciado, queria algu?m que escrevesse a hist?ria. Portanto, eu.
Sem aceitar nem rejeitar a proposta de perman?ncia do meu parceiro, desconversei, rondei a periferia, passei a conversar com um e com outro dos nativos que trabalhavam no projeto, desci o plat? at? chegar, l? em baixo, ?s margens do rio que corria manso e imperturb?vel na sua paz milenar.
Na vastid?o daquele mundo, no sil?ncio c?mplice da selva, longe da vista de tantas pessoas que comigo haviam desembarcado do H?rcules no campo improvisado de Aripuan?, vejo-me diante de dois mesti?os, mais com fei??es de ?ndio do que de brancos, ambos com um vasilhame na m?o, mais ou menos com a dimens?o de um litro cada. Pelo jeito, bastante pesados. Os dois me chamam para negociar. Querem vender o conte?do dos vasilhames. S? quando cheguei mais perto deu para perceber que estavam ali, em cada uma daquelas ?latas?, ?uns dois quilos de diamantes brutos, ?garimpados ? beira daquele rio ou ? sei l?! ? de outros pequenos riachos que cortam a imensid?o da floresta.
Evidentemente que n?o negociei, n?o comprei, n?o fiz proposta para comprar ? n?o?tinha dinheiro para tanto nem essa era a minha praia. Mas, fiquei pensando: ser? que algu?m matou ou morreu?pela posse daquelas pedras? Ser? que as autoridades brasileiras, naquela ?poca, tinham conhecimento do com?rcio pirata que se praticava com?pedras preciosas no cora??o do pa?s? E aqueles mission?rios,?t?o ?voluntariosos para deixaram o conforto de seus pa?ses? e se embrenharam na floresta escura, perigosa e desconhecida, estariam mesmo fazendo isso por amor a Deus?
Voltei de viagem com muitas d?vidas na cabe?a ? e foi a ?ltima vez em que estive no cora??o da selva amaz?nica.
Alguns?anos depois, j? no Recife, vi num jornal do Rio de Janeiro uma not?cia triste: num dia qualquer da semana, Claus Mayer, o homem que amava a floresta, triste e deprimido, saltou para a morte do pr?dio onde?morava, no pacato bairro carioca de Santa Tereza. Deixou para os que o conheceram a lembran?a do seu talento e do seu grande cora??o.
Ivanildo Sampaio
P.S Para conhecer Claus Meyer segue seu perfil
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa401/claus-meyer
Que belo relato de uma pedaço do Brasil profundo e que final mais triste!