Berlim é uma Babel moderna, acolheu desde após a Segunda Guerra Mundial milhares de imigrantes turcos. Hoje, depois de Istambul e Ancara, é a terceira maior cidade turca. Ao longo de décadas, imigrantes de várias nacionalidades se foram estabelecendo, formando um rico e diversificado mosaico cultural.
Ficamos, após muita pesquisa, em Kreuseberg, um bairro onde há a mistura de áreas hipster – jovens profissionais com alto poder aquisitivo – com áreas mais pobres, onde vivem árabes, asiáticos e africanos. Escolhemos ficar em um quarto no apartamento de um berlinense, pois assim poderíamos conviver, durante nossos seis dias lá, com pessoas, e não ver apenas museus, parques e monumentos.
A seguir seguem algumas impressões que, espero, possam dar uma amostra dessa bela cidade.
O MUSEU PERGAMON.
O clima estava ótimo, uns onze graus com sol. Chegamos ao Museu e compramos um ticket que dá acesso a todos os museus da Ilha. O Pergamon é uma coisa impressionante, pois há nele pedaços de construções das civilizações mais antigas: Babilônia, Síria, e uma série de outras culturas, que tiveram seu auge e depois foram destruídas, quase sempre pelas guerras.
Deparei-me diante de um texto que falava sobre um sítio arqueológico na Pérsia. Nele, durante décadas de trabalho, foi possível colher registros de diversas civilizações que viveram em épocas distintas, no mesmo lugar, como se o tempo tivesse condensado em camadas superpostas cidades inteiras.
Freud, em sua obra “O Mal Estar na Civilização”, para explicar o inconsciente e o papel da análise, faz uma brilhante analogia do inconsciente com as escavações arqueológicas. Como se tudo o que vivemos, desde nossa mais tenra existência, ou pré-infância, até nossa vida adulta, estivesse ali, recoberto pelas nossas impressões vividas. Só que, diferentemente dos sítios arqueológicos, que estão separados por camadas de areia sem vida, no inconsciente está tudo condensado – imagine que todos os afetos estivessem ocupando o mesmo espaço, vivos e atuantes.
O analista é uma espécie de suporte, no qual o analisando se apoia para fazer, usando as palavras como instrumento, sua escavação da alma, retirando dos escombros da sua existência suas dores e afetos, dando-lhes sentido onde antes havia apenas a dor do sintoma.
Ver estes restos de civilizações, invertendo Freud, é estar diante da incessante luta entre barbárie e civilização, que demarca o caminhar da humanidade, ao longo de sua História.
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A BEBELPLATZ
Em 10 de maio de 1933, instigados por Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, centenas de membros da Juventude Hitlerista queimaram 20.000 livros retirados à força das Universidades. Todos os autores eram, de alguma forma, contrários às ideias do Partido Nazista. Um prenúncio do que o nazismo iria causar para a humanidade: a Segunda Guerra Mundial, com milhões de mortos, sendo seis milhões executados nos fornos crematórios dos famigerados campos de concentração.
Hoje, essa praça é homenageada como símbolo universal da liberdade de expressão. Nela há escrita em uma placa de bronze a seguinte frase, logo após a queima dos livros:
“Das war ein Vorspiel nur, dort wo man Bücher verbrennt, verbrennt man am Ende auch Menschen.” No original.
“ Foi apenas um prelúdio; onde eles queimam livros, ao final queimarão também pessoas.” Heinrich Heine em sua peça “ Almansor”.
A frase escrita referia-se à queima de judeus em Granada, em 1500, pela Igreja, mas encaixou bem na fase pré-holocausto. As ideologias extremistas sempre tendem a esmagar a diversidade de pensamento. Para eles, tudo aquilo que for contrário a sua visão de mundo é uma ameaça. A democracia, ao contrário, se fortalece com a diversidade de pensamento, pois é aberta ao outro.
Vejo hoje no Brasil um perigoso pêndulo da irracionalidade: treze anos de PT, com uma visão de mundo salvífica, porém instigando o radicalismo de pensamento, e agora o outro extremo, o bolsonarismo, inspirado nas ideias do raso “Astrólogo da Virgínia”, Olavo de Carvalho.
Voltemos nosso olhar para a História, sobre eventos como o ocorrido na Bebelplatz, para valorizarmos nossa democracia.
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DANIEL, NOSSO ANFITRIÃO
Daniel é nascido na Alemanha e tem descendência em parte asiática, sua mãe, e em parte germânica, seu pai. Ele tem formação em TI, mas cansou e decidiu trabalhar como DJ. Ganha dinheiro ainda com TI, mas transcrevendo textos técnicos para uma linguagem mais acessível. O que o realiza mesmo é a sua arte.
Muito comunicativo, estava envolvido em editar 500 Gbytes de vídeo, resultado de uma viagem que fez, durante dois meses, por vários países asiáticos. O objetivo foi investigar a cultura underground desses países, filmando e entrevistando dezenas de profissionais como ele. Nossa amizade foi fluindo, dia após dia, num rico processo de conhecimento mútuo entre nós e ele. Seria impossível conhecer parte da alma alemã, especialmente de imigrantes ou filhos de pais como os dele, apenas caminhando pela cidade. Dividir um espaço físico como o dele, pequeno porém muito organizado – apesar de um hall todo pichado, expressão de inquietações sociais – é um complemento valioso da nossa experiência de turista em Berlim.
Sempre à noite, a conversa com ele nos mostrava a sutil camada da realidade de um berlinense, impossível de ser fotografada, posto que fruto de um diálogo entre pessoas abertas e dispostas a acolher e conhecer o outro.
Em umas das vezes em que perguntei sobre a Street Art em Berlim, ele fez questão de me levar até seu quarto, um bunker tecnológico, e em segundos já estava feita a pesquisa, passando para meu Whatsapp os links dos melhores pontos para visitar. Quando lhe perguntei sobre Pretzlauer Berg, o bairro mais ao norte de Berlim, respondeu:
– Ali é onda mora o inimigo, disse cortando seu gengibre e pepino, poção, segundo ele, mágica para queimar gordura, desde que não se coma nada após as oito da noite. Deixando clara a divisão social e o preconceito existente na cidade, pois Pretzlauer foi ocupada por ricos fazendeiros do Sul da Alemanha, um tipo do redneck do meio-oeste americano, branco, rude e politicamente conservador. Nas palavras de Daniel, “um bando de filhos da puta”. Certamente já sentira na pele a dor do preconceito lá.
Nos despedimos já conectados pela plataforma Medium, onde público meus textos em inglês e onde ele tem também seu perfil, com vários artigos, muito bem escritos, sobre sexualidade, música e cultura underground, a sua tribo.
No Brasil, ele sabe que tem um lar para ficar, caso o deprimente frio de Berlim no inverno atormente seu espírito.
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“Du bist ein Berliner”, parafraseando Kennedy. Boa continuação!
Abraço,
Fernando
Obrigado Fernando. Um forte abraço, agora de Praga.