“Você ouviu teu menino, Nuca?” Nuca Sarmento sorri com uma felicidade que se espelha por todo rosto. Nada diz, deixando-se apenas abraçar fortemente pelo amigo. A mesa onde estão todos da família, em solidariedade aos fumantes do grupo, é na calçada do Bar Retalhos, onde acontece a confraternização de final de ano dos garçons, donos, freqüentadores mais assíduos e, naturalmente, os músicos dos finais de semana.
A mesa deles já se juntou à de Sílvio Batusanschi, para onde eu me dirijo logo que chego, depois de ter perdido a feijoada, porém a tempo para o melhor da música: o dueto totalmente de improviso (qual Jam Session das melhores que já vi em Greenwich Village, New York) entre nada menos que Beto do Bandolim e Vinícius Sarmento ao violão. Mal ouço os primeiros acordes, abandono a mesa da calçada e entro na sala onde os músicos tocam, como de costume, de costas para as duas janelas da casa por onde entra a brisa da rua da Aurora.
As mesas de dentro, não mais que dez ou doze, ficam como podem nas duas pequenas salas da casa, adaptadas para as funções a que se destinam: comida a quilo no almoço; bar com música das melhores nas noites de sexta e sábado. Não conheço os que estão na mesa onde tem disponível uma cadeira em bom lugar. Mas aquele dia é de confraternização e com sorriso me acolhem. Como costumo fazer quando vou aos sábados para assistir ao Choro Miúdo de Bozó, abstraí o barulho das conversas para me concentrar só na música.
Começo a perceber uma corrente de energia que fosse como que fluindo da música, da conversa daqueles dois instrumentos, para os animados e distraídos conversadores das mesas. E aí acontece o milagre, nessa nossa cultura brasileira barulhenta: o reconhecimento do quão pouco podemos dizer que possa ser melhor do que a música (somente na casa noturna de Seu Jorge, no Rosarinho, esse princípio é seguido à risca, pois ali não se conversa enquanto os músicos tocam). Com pouco, como acontece nos instantes mágicos da música, todas as mesas estavam em completo silêncio. Momento de êxtase. Muito melhor quando compartilhado.
Demora um tempo para se sair do clima de exaltação que sucede aos aplausos finais. Sim, porque, tal como numa Jam Session, houve muitos outros momentos de aplausos, ao improviso de um ou outro dos instrumentos, o que rebatia de volta com mais música e mais improviso. Desfeito o dueto, Vinícius vai se juntar aos seus que estavam na mesa do lado de fora. O primeiro abraço vai para a avó materna. Matriarca da família, “Bebel do Côco”, como ainda é carinhosamente chamada, é uma mulher cheia de vida e de alegria.
Nuca Sarmento, seu pai, é músico (violão) e compositor. Bozó, seu tio, também músico (violão de sete cordas), é maestro e professor do Conservatório. Bozó e seu time de alunos do Conservatório foi quem começou a tradição do chorinho nesse bar (ah, nossas “tradições” brasileiras! a desse bar tem três ou quatro anos?).
Vinícius Sarmento completa 21 anos em 11 de janeiro desse ano de 2013. Eu converso com Nuca, dessas conversas boas de mesa de bar, e ainda dá pra saber que esse menino estava destinado para a música: quando bebê, botava a cabecinha no buraco do violão procurando um som. Encontrou em casa e parece que está indo mais longe. Reporto somente o que eu tive o privilégio de assistir ao vivo. Quando Yamandu Costa veio fazer uma apresentação de sua música no Teatro de Santa Isabel em 2012, foi a Vinícius Sarmento que ele convidou para uma parte da apresentação com ele, dizendo-o o mais promissor violonista brasileiro. O reconhecimento veio outro dia novamente, na homenagem a Henrique Annes no teatro do Salesiano no sábado 5 de janeiro desse ano de 2013, quando, dentre tantas estrelas de primeira grandeza da música instrumental brasileira, lá estava Vinícius, com a ousadia de tocar uma composição própria sua: um chorinho.
Que viva o chorinho, o nosso mais genuíno gênero da tradição musical brasileira. O chorinho vai se renovando não só pelo violão de Vinícius. Também pelo cavaquinho de João Paulo, pela flauta, clarinete e sax de Alexandre, pelo pandeiro de João Victor, os jovens alunos de Bozó que, com ele ao violão de sete cordas, compõem o Choro Miúdo.
Quero parabenizar a Revista e em especial a crônica de Teresa Sales, que retratou de forma real e ao mesmo tempo poética o que aconteceu no Retalhos. A sensibilidade de Teresa para captar o clima do que ali se passa agradou a todos que são frequentadores assíduos do Retalhos e que leram esta crônica.
Tereza, uma delícia seu texto. Só faltou comentar que a predestinação de Vinícius vem desde o nome (uma homenagem do meu amigo Nuca ao grande poeta), passando pelo padrinho dele, ninguém menos do que o saudoso Raphael Rabello. Estou em débito com toda a família Sarmento por não ter ido ainda no Retalhos, mas irei sanar essa “falha” em breve.
Cada vez melhor!! Se a primeira crônica sobre o retalho já foi supimpa, esta segunda crônica está ainda melhor. Mais completa, mais afetiva, mais emocionante. Bravo Teresa, fiquei com gosto de “quero mais”… Escreva muito!!!