Carregamos todos, na relação com nossos líderes políticos, traços atávicos de subordinação mitológica. Capturados pelas paixões ideológicas agimos diante do fenômeno da política como primitivos colocando suas oferendas e esperanças diante dos nossos totens modernos. Idealizamos nossos líderes assim como os primitivos transferiam todas as suas angústias e explicações da realidade para os fenômenos banais da natureza. Projetamos, pela via da identificação imaginária, qualidades neles, que sabemos, jamais teremos — mas gostaríamos de ter.
Este tem sido um traço muito forte na história política da América Latina. O caso recente mais escandaloso é o da Venezuela com Hugo Chaves e seu sucessor — onde o mito não só manipula os incautos, como até acredita que tem mesmo estes poderes.
Lembro, apenas como uma pequena amostra, a comoção com a morte de Tancredo Neves e, mais recentemente, com a trágica morte de Eduardo Campos. O sofrimento da multidão diante da perda de um líder é da mesma ordem do desamparo de uma criança diante da morte de um pai poderoso e protetor.
Existe um paradoxo interessante na ideologia: quanto mais fortalecemos nossas certezas, quer seja pelo senso comum, quer seja pela investigação intelectual mais estruturada, maior a nossa cegueira para o outro – aquele que vê a mesma realidade por um enfoque ideológico diferente do nosso. A compreensão da política nunca se dá isenta de paixão, por mais cauteloso que seja o pesquisador.
O caso do PT, que surge nos estertores da ditadura de 1964, é típico. O mito de um operário que bravamente desafia o poder militar e contribui de forma efetiva para o fim do regime, tem seus efeitos na forma como os militantes e intelectuais, capturados por essa força redentora, veem o partido, sua prática e sua história. Para quem sofreu os anos de chumbo da ditadura militar, ter Lula no poder foi a materialização suprema desta redenção. Preenche um vazio de uma geração inteira tolhida em seus desejos e ideais. Para alguns, ver o seu partido sendo desconstruído, a cada passo da lava-jato, é um sentimento insuportável. O mecanismo de defesa é, portanto, com auxílio da paranoia, negar a realidade. Assim como o crente encontra na religião suporte para sua precária e efêmera existência, o militante tem em sua ideologia partidária o suporte que dá sentido à sua vida.
É possível observar duas realidades em curso que vem tecendo nossa recente história política: a primeira, a de que tudo é culpa do neoliberalismo e que só não se faz as reformas por que as forças imperialistas, que sempre exploraram as nações mais pobres, estão sistematicamente querendo detonar o projeto de redenção e libertação social da esquerda; a segunda, a do liberal que apenas vê a corrupção e incompetência. Isso sem contar o radicalismo dos movimentos mais delirantes, destruindo centros de pesquisas voltados à inovação e ao crescimento econômico —enfim, uma visão anacrônica da realidade econômica, incompatível com o capitalismo pujante da sociedade da informação. Por sorte vimos experimentando um regime de consolidação democrático, ambiente fundamental para que estas realidades antagônicas se confrontem. Sim, são inconciliáveis. Há muita certeza nos corações e mentes de todos, e como consequência, intolerância em todos os lados.
No Brasil estamos experimentando uma importante prova de realidade, onde as operações dos escândalos da Lava Jato veem desencavando o fétido e crônico esgoto do patrimonialismo de Estado e sua filha predileta, a corrupção. Os totens de muita gente estão sendo destruídos – jogados no lixo da história, como costumávamos dizer. Alguns até jogados na cadeia mesmo. Haverá choros e ranger de dentes, o que não é necessariamente ruim para o país, embora doloroso e angustiante para muitos.
No lugar de um Estado sacralizado por uma prática totêmica, primitiva e alienante, vai sobrar espaço para emergirem algumas ilhas de prática política moderna — bem menos passional, é verdade, até burocrática e entediante, mas mais eficaz e sólida.
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Perfeita a análise! Penso, com pesar, em companheiros meus do movimento estudantil, que acreditaram no “petismo” e ainda permanecem agarrados nas alças do seu caixão, a caminho do Campo Santo. De minha parte, tive a sorte – ou a lucidez – de não embarcar naquela canoa…
João,
Dessa desconstrução a que te referes, vejo sem esforço o lado positivo. A tietização política estava fadada à exaustão já há bom tempo. Quem sabe dizer o nome de um político finlandês? Quem é o líder da oposição na Noruega? Quais os três líderes holandeses mais proeminentes da atualidade? E, no entanto, a vida diária nesses países espelha lisura, bem-estar e transparência.
Sua tese, a da dessacralização, cavalga um nome bom – quase eufemístico – para caracterizar a exaustão com o lado oco das palavras. Dia desses no Recife, via inserções de um minuto a cada cinco de um deputado a falar de Mandela. A legitimidade do orador com o referido era tanta quanto seria a minha em dar uma conferência sobre o sistema neurológico das tarântulas.
Chega disso. Um taxista me dizia com certo enfado que negara o aperto de mão de um senador. Não por má educação, mas por cansaço. “Circula, bicho, te conheço bem demais, me poupe, estou num mau dia, qual é o endereço mesmo?” Assim, sem rapapés, mesuras nem deferências. Em outras palavras: a sociedade sairá dessa quadra, empenhada na discussão de pautas substantivas e nada mais fora disso interessará por um bom tempo.
Pois bem, tenho um grande amigo em São Paulo, o cientista político Luiz Felipe D´Ávila – presidente do CLP – que vem desde há algum tempo levando gestores públicos para longos programas em Harvard. Anônimos prefeitos de 25 anos de trinta municípíos brasileiros detalhadamente escolhidos e estudados, e que podem ser considerados um modelo inspirador para os demais. Ele acredita muito nessa ação.
Muitos desses líderes desembarcarão com mandato no Congresso na legislatura de 2018. Nenhum teria a petulância de citar Mandela em suas falas, mas todos sabem sentar com lideranças e definir prioridades sem ferir o orçamento nem se mancomunar com gente sinistra para adulterar a merenda escolar. Felipe acredita nesse trabalho há mais de uma década. Em paralelo à Lava-Jato, daí sairá um país robusto e refratário ao raso e ao oco.
Essas forças políticas que temos hoje perderam a tração com o mundo em que vivemos, João. Poderíamos fulanizar “ad nauseam”, mas então o debate iria para a seara deles. O advento e entronização do PT foi a segunda maior catástrofe da história do Brasil depois do tráfego humano de escravos africanos – disparada a número 1. Depois veio a construção de Brasília e a Constituição de 1988.
Confio muito nessa República de Pato Branco, nesses jovens paranaenses de sotaque metalizado que, dia após dia, vão eviscerando as entranhas de um partido que nutre profundo desprezo pela democracia representativa e cujos representantes, ao comprar um jet ski, acham que adubam a revolução. Um dia podemos trazer Felipe D´Ávila para o Recife, João. Te juro que faz um bem danado ouvir-lhe a pregação otimista, estribada num processo.
Abraço,
Fernando