João Rego

Carregamos todos, na relação com nossos líderes políticos, traços atávicos de subordinação mitológica. Capturados pelas paixões ideológicas agimos diante do fenômeno da política como primitivos colocando suas oferendas e esperanças diante dos nossos totens modernos. Idealizamos nossos líderes assim como os primitivos transferiam todas as suas angústias e explicações da realidade para os fenômenos banais da natureza. Projetamos, pela via da identificação imaginária, qualidades neles, que sabemos, jamais teremos — mas gostaríamos de ter.

Este tem sido um traço muito forte na história política da América Latina. O caso recente mais escandaloso é o da Venezuela com Hugo Chaves e seu sucessor — onde o mito não só manipula os incautos, como até acredita que tem mesmo estes poderes.

Lembro, apenas como uma pequena amostra, a comoção com a morte de Tancredo Neves e, mais recentemente, com a trágica morte de Eduardo Campos. O sofrimento da multidão diante da perda de um líder é da mesma ordem do desamparo de uma criança diante da morte de um pai poderoso e protetor.

Existe um paradoxo interessante na ideologia: quanto mais fortalecemos nossas certezas, quer seja pelo senso comum, quer seja pela investigação intelectual mais estruturada, maior a nossa cegueira para o outro – aquele que vê a mesma realidade por um enfoque ideológico diferente do nosso. A compreensão da política nunca se dá isenta de paixão, por mais cauteloso que seja o pesquisador.
O caso do PT, que surge nos estertores da ditadura de 1964, é típico. O mito de um operário que bravamente desafia o poder militar e contribui de forma efetiva para o fim do regime, tem seus efeitos na forma como os militantes e intelectuais, capturados por essa força redentora, veem o partido, sua prática e sua história. Para quem sofreu os anos de chumbo da ditadura militar, ter Lula no poder foi a materialização suprema desta redenção. Preenche um vazio de uma geração inteira tolhida em seus desejos e ideais. Para alguns, ver o seu partido sendo desconstruído, a cada passo da lava-jato, é um sentimento insuportável. O mecanismo de defesa é, portanto, com auxílio da paranoia, negar a realidade. Assim como o crente encontra na religião suporte para sua precária e efêmera existência, o militante tem em sua ideologia partidária o suporte que dá sentido à sua vida.
É possível observar duas realidades em curso que vem tecendo nossa recente história política: a primeira, a de que tudo é culpa do neoliberalismo e que só não se faz as reformas por que as forças imperialistas, que sempre exploraram as nações mais pobres, estão sistematicamente querendo detonar o projeto de redenção e libertação social da esquerda; a segunda, a do liberal que apenas vê a corrupção e incompetência. Isso sem contar o radicalismo dos movimentos mais delirantes, destruindo centros de pesquisas voltados à inovação e ao crescimento econômico —enfim, uma visão anacrônica da realidade econômica, incompatível com o capitalismo pujante da sociedade da informação. Por sorte vimos experimentando um regime de consolidação democrático, ambiente fundamental para que estas realidades antagônicas se confrontem. Sim, são inconciliáveis. Há muita certeza nos corações e mentes de todos, e como consequência, intolerância em todos os lados.
No Brasil estamos experimentando uma importante prova de realidade, onde as operações dos escândalos da Lava Jato veem desencavando o fétido e crônico esgoto do patrimonialismo de Estado e sua filha predileta, a corrupção. Os totens de muita gente estão sendo destruídos – jogados no lixo da história, como costumávamos dizer. Alguns até jogados na cadeia mesmo. Haverá choros e ranger de dentes, o que não é necessariamente ruim para o país, embora doloroso e angustiante para muitos.
No lugar de um Estado sacralizado por uma prática totêmica, primitiva e alienante, vai sobrar espaço para emergirem algumas ilhas de prática política moderna — bem menos passional, é verdade, até burocrática e entediante, mas mais eficaz e sólida.

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