Fernando Dourado

Marco Zero do Recife.

Se você se habilitou a ler esse texto de bate-pronto, ignorando que ele foi precedido aqui mesmo em “Será?” por um roteiro de aquecimento denominado “Pernambuco para principiantes“, assumo que esteja minimamente familiarizado com as vicissitudes mais gritantes do “Leão do Norte”. Vale reconhecer daí, que o texto referido não é o único parâmetro de iniciação consagrado. Melhor mesmo, e pode ser esse seu caso, é que você seja devidamente rodado no Brasil e no mundo, condição que também o habilitará a pular os prolegômenos que floreiam essa introdução verbosa. Floreios estes, aliás, que são um cacoete enraizado em Pernambuco já que, por boa educação, julgamos que significa afrontá-la passar diretamente à conversa central, sem lubrificar o encontro com um pouco de bate-papo fiado, o que os ingleses chamam de small talk.

Em favor desse argumento, é bom assinalar que andanças mundo afora podem ter lastreado o admirador de Pernambuco que mora dentro de você, sem que tal infiltração rumo à sua alma tenha sido sequer perceptível. Pois da França temos o panache e a tradição libertária. Da gente portuguesa, herdamos o gosto pela prosa rica em sinonímia exuberante. Dos espanhóis, o messianismo e a atitude quixotesca. Dos ingleses, o apreço pelos orquidários, pela bebida e convivialidade. Dos holandeses, ficou a centelha mercantil que estriba a vocação para prestar serviços. Dos judeus, como não, herdamos o apelo universalista, e dos levantinos sírio-libaneses, a mobilidade e o gosto pelo comércio. Já dos africanos nos restaram tantas características que alguns de nossos filhos mais ilustres dedicaram livros inteiros só a esse tópico dessa civilização policrômica do sul do Equador.

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Isso dito, se você singrou as mourarias ibéricas ou as extensões desérticas do norte da África, de pouco mais precisará para entender o primeiro traço cardeal que integra esse arrazoado: a renitente impontualidade de nosso povo. Pois bem, como é comum entre os filhos das areias saarianas, que atribuem o controle da passagem do tempo à divindade (dita Alá em muitos casos), em Pernambuco tampouco se prezam os relógios como instrumentos válidos de precisão e confiabilidade. Pois para seus habitantes, a observância ao horário, logo à pontualidade, decorre estritamente da labilidade dos humores do momento. Daí que relógios são peças ornamentais – mesmo os digitais do celular – e a passagem inexorável dos segundos não vergará a adicção pernambucana ao atraso, sendo o cronista Joca Souza Leão talvez o último homem a respeitar os horários avençados e a se precaver tenazmente contra imprevistos. Teria isso a ver com os tempos em que morou em Londres? É possível.

Como descrever, portanto, situações que falam por si sós em seus postulados? Ajudaria se dissesse que o atraso é considerado normal, e que a pontualidade trai certa ansiedade? E que, assim sendo, chegar atrasado é sinal da detenção de algum poder. Sim, é isso mesmo. Quem chega no horário resulta enfraquecido e padecerá de perda de imagem. Pois dará a entender que estava tão livre, tão sem programa, que se aferrou à boia de salvação que o destino lhe lançou para preencher as horas mortas. Se for mulher, pode passar de forma nada sutil a mensagem de que está demasiado ansiosa pelo encontro, o que lhe será desabonador. É como se todas elas tivessem que obedecer à excruciante etiqueta das noivas recifenses. Em boda recente, contei um atraso de nada menos do que 90 minutos, ou seja, o tempo de uma partida de futebol. Alguma desculpa? Sim, a tirania de fotógrafos e cinegrafistas, os verdadeiros donos da festa.

Melhor mesmo concluir que a impontualidade encontrará sempre o respaldo da fatalidade, traço que compartilhamos com os filhos do deserto onde tanto faz fazer uma coisa agora como depois. Os horizontes não sairão do lugar, as estrelas tampouco. Sim, não há empenho em chegar no horário. Mas as pessoas se valerão de todos os recursos para florear o atraso com desculpas simpáticas, se acaso a outra parte tiver sido exposta a uma espera excessiva. “Meu avô passou mal e tive que providenciar a internação”. Maktoub – “estava escrito”, diriam os mouros fatalistas. Ou “você nem imagina o tamanho do engarrafamento da Agamenon Magalhães”. É cultural. A noção de tempo não é linear, senão circular, ou seja, o que não fiz na hora passada, farei na seguinte sem quaisquer prejuízos. Na mesma linha, cancelam-se compromissos. “Estou com suspeita de conjuntivite”, reza a mais clássica das desculpas. Ora, quem não teme o contágio dos olhos encarnados?

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Está claro que esse traço nos remete quase imediatamente ao segundo. Em reforço à tese insinuada na abertura, a objetividade é um viés associado à rispidez, portanto pouco cordial. Sendo assim, não é raro que uma conversa comece com uma grande contextualização. À aposição de uma grande moldura, não escapam sequer os médicos. Sei de um deles para quem não há consulta que se preze sem que ele próprio faça fartas incursões à sabedoria dos gregos, às luzes que vêm do Oriente e aos rudimentos surpreendentes da medicina exercida nos tempos dos faraós. Percorremos facilmente quarenta séculos até chegarmos ao momento de verificar a pressão arterial, falar daquela lombalgia que teima em visitar-nos e que, em última instância, originou a marcação da consulta. Daí se infere como as conversas podem se estender em domínios menos austeros do que os de um consultório.

À guisa de ilustração, e bem a propósito, ocorre a este escriba trazer à baila recente almoço com um amigo numa agradável churrascaria da zona sul do Recife. Agastado com as respostas monossilábicas que vinha recebendo de um parceiro comercial abusado e de maus bofes, não por acaso paulistano, o pernambucano não hesitou em recapitular em voz alta, de olho no visor do telefone, o longo arrazoado que vinha lhe escrevendo ultimamente em que reiterava propósitos de amizade, manifestações de respeito, votos de pronto restabelecimento e alvíssaras aos bons ventos que haveriam de lhes render bons negócios. Um califa letrado não teria feito melhor. A cada três missivas, o bandeirante enfatuado respondia com um “vou pensar”. Desesperado com o pouco alcance de uma prosa gongórica como atalho para o coração do associado, escreveu-lhe nova carta de 30 laudas e, vendo na indiferença um sintoma de desalento, foi visitar o cidadão diretamente.

Assim sendo, são temerárias até perguntas sociais sobre a saúde de uma tia, por exemplo. No mais das vezes, a outra parte desfiará um rosário sem fim sobre as causas da moléstia traiçoeira, recheará o quadro com pitadas de diagnóstico de própria lavra, para concluir que não houve nenhuma mudança de quadro desde a última vez que a pergunta foi formulada. Daí não surpreender que os pernambucanos enovelem um tema no outro e, mesmo que nada estejam bebendo, percam por completo o fio da meada, tantos foram os parênteses abertos para abrigar pequenas histórias tributárias da principal. Em tempos de demências tenebrosas, travestidas de intricada sintomatologia, permanece um mistério saber se esse tour de force exercita os meandros mnemônicos do indivíduo ou se, pelo contrário, podem levá-lo ao mais completo esgotamento. A ciência um dia o dirá.

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Não sei se é também por conta de todo o acima ou se não, ao visitante, por experiente que seja, não passará despercebido que os pernambucanos em geral têm verdadeira devoção ao uísque escocês e um nativo de Glasgow que, desavisado, desembarcasse no Recife, constataria que tal apreço supera em muitos degraus tudo o que tenha visto no silêncio solene das destilarias da pequena Ballantine. Bebida obrigatória em todo evento digno do nome, não se dispensam uns goles sequer em velórios, sendo ele recomendável para destravar as artérias dos enlutados e lhes fazer chorar as lágrimas derradeiras pelo falecido. É comum que seja objeto de promoções agressivas em restaurantes e que os cidadãos tenham garrafas rotuladas em seu nome em até seis estabelecimentos diferentes simultaneamente. Diz-se que o Recife talvez tenha o maior consumo mundial per capita, motivo de grande orgulho.

Se foge a nosso propósito e conhecimento decodificar a etiologia do fenômeno, é importante enfatizar que em Pernambuco uísque é bebida para antes, durante e depois. Isso quando o almoço planejado não se resume tão somente ao antes e ao depois, com o fim do durante. Mas eis o que pede uma explicação. Embalados pelos goles iniciais, os recifenses perdem a fome e resolvem eles mesmos fazer uma releitura do cardápio. Mandam então colocar a carne de sol ou o chambaril num prato no meio da mesa, distribuem garfos, e transformam qualquer peça de resistência em “tira-gosto”, não importando que seja uma esmerada criação culinária. O prato será mero coadjuvante de sua excelência, a bebida. Assim sendo, um almoço pode perfeitamente começar às duas da tarde e terminar às duas da manhã do dia seguinte. É comum ver grupos de aposentados em átrios de shoppings discutindo futebol, inflamados. Ou, o que é pior, política. Ócio, álcool e saudosismo formam uma perigosa combinação.

Essas anotações não estariam completas se o escriba não desse prova de imparcialidade, e descrevesse caso sucedido a um parente próximo. Estando ele no vigor de seus 60 anos – na década de 1980 – eis que se viu aposentado, esse avatar da felicidade tão caro à alma brasileira. Tendo sido regiamente indenizado pela multinacional onde trabalhara por décadas a fio, não hesitou em investir metade do montante num carregamento chegado em contrabando ao porto do Recife. Queria ter bebida garantida até o fim da vida. Dizem alguns que, com a soma, comprou um container de vinte pés de Logan. Com 4 filhos em casa, não podia lá estocar tudo. Distribuiu-as entre amigos e passava regularmente para conferência de inventário e uma dose. Morreu, inexplicavelmente, dois anos depois da aquisição estratégica e os amigos transformaram as garrafas restantes em dinheiro para a viúva, não sem antes colocarem uma garrafa intacta no caixão, junto ao corpo, para atender a seu último pedido.

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E na política? Teríamos algo a destacar ademais da estranhíssima dicotomia entre a esquerda e a direita, apontada no último artigo, e que assinala o derradeiro bastião da Guerra Fria do hemisfério? Pois bem, a resposta é sim. Explico: se você desconfia seriamente de que o Estado vive em constante embate eleitoral, asseguro que não está de todo equivocado. Em nenhum lugar do mundo que conste da cartografia de viajantes rodados, se falará tanto da próxima eleição, mal terminada a precedente. É como se não houvesse um tempo de trégua para que os políticos, por desacreditados que sejam nesses dias negros, possam, afinal, dizer a que viram. As ilações são interessantes, tanto quanto os alpinistas do voto, não raro, portadores de nomes bizarros, não obstante fadados à glória na boca de palpiteiros, cupinchas, bajuladores e marqueteiros, esta última uma denominação genérica para todo tipo de oportunista e vendedor de facilidades.

Nesse contexto, não se espante se ouvir alguma coisa nessa linha: “Chico Dentadura saiu bem votado para a vereança em Angelim. Isso o habilita à prefeitura já em 2020, pode escrever, e é inevitável que ele puxe seu grupo para desembarcar na Assembleia Legislativa em 2022. Em 2026 ele tem tudo para encarar uma majoritária, isso se Mané Vigarista não correr na paralela em Agrestina e não consolidar uma base que esvazie a representatividade da região, a depender, bem entendido, de quem vai encabeçar a Coligação”. Esse é o tom em programas de rádio e rodas de avisados. O tal Chico Dentadura, um dentista de nome Francisco que fez da doação de dentes de resina sua plataforma, mal imagina que já é visto como finalista ao próprio palácio do Campo das Princesas na virada da década seguinte. Dar corda é uma indústria. E não entender de política nesse nível é dar prova de alienação.

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Por fim, não poderíamos colocar um ponto final neste ensaio sem uma moção de curiosidade para com um fenômeno que eclodiu no Estado dos anos 1980 para cá, o que vale dizer que fugiu ao monitoramento deste escriba. Refiro-me nomeadamente à consagração de certo falar que, em idos tempos, era jargão de uso estrito da estiva, mais especificamente dos calungas, aqueles pretos retintos que amarravam um pano em volta da cabeça e, do alto da carroceria de caminhões, e sem camisa, falavam um patuá que lhes era todo próprio. Ocorre que, para espanto do observador externo, o tal linguajar saiu dos armazéns e se universalizou. Pois acreditem ou não, muita gente no estado adotou a fórmula “vou pegar de oito e largar de cinco”. Pois bem, isso significa que o sujeito vai começar a trabalhar às oito horas e terminará às cinco. Os verbos pegar e largar aqui se referem, até onde eu posso imaginar, a sacos de açúcar. Como se explica que um advogado de grande nome do Recife possa falar assim? São apenas insights de Pernambuco para experientes. Que nem por isso, nos deixam menos perplexos.