Teresa Sales

Recife, cruel cidade,

águia sangrenta, leão.

Ingrata para os da terra,

boa para os que não são.

Amiga dos que a maltratam,

Inimiga dos que não,

este é o teu retrato feito

com tintas do teu verão

e desmaiadas lembranças

do tempo em que também eras

noiva da revolução.

Carlos Pena Filho

Dois livros foram publicados com o mesmo título e no mesmo ano: Paulo Santos, A noiva da revolução(Comunigraf, 2008); e Francisco de Oliveira, Noiva da revolução (Boitempo, 2008).

A noiva da revolução de Paulo Santos é um romance histórico cujo tema principal é um amor proibido que aconteceu durante a “única revolução brasileira digna desse nome”, como bem disse Oliveira Lima, que foi a Revolução de 1817. A história desse grande amor entre o principal líder da Revolução, o brasileiro Domingos Martins, e a filha de rico s comerciantes portugueses, Maria Teodora da Costa, é narrada com as cores vivas dos fatos acontecidos antes, durante e logo depois dos 74 dias em que Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte viveram uma república com governo próprio, exército, marinha, constituição, bandeira e até embaixadores no exterior. Esse curto período fez valer a recém promulgada Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. E a nossa bandeira, por seu significado marcante nessa que foi sem dúvida a mais importante das muitas guerras libertárias de Pernambuco, é a mesma daquela época e que hoje o pernambucano usa com tanto orgulho em roupas e adereços. Desconheço qualquer outro estado brasileiro que faça tão popular uso de sua bandeira.

O fato que me chamou a atenção na divulgação do livro de Paulo Santos na midia, à época de sua publicação, foi o enfoque dos comentários. Nada se falou do amor de Domingos Martins e Maria Teodora, que é o foco narrativo do livro, ou mesmo do estilo de escrita do autor. Todos os comentários foram em torno da revolução de 1817, quase como uma expiação pela injustiça histórica de não ter sido nunca reconhecido na História do Brasil o valor dessa Revolução, muito mais importante, por exemplo, do que a Inconfidência Mineira, que terminou sendo a que simboliza a nossa nacionalidade brasileira comemorada do Sete de Setembro.

Noiva da Revolução de Francisco de Oliveira é uma declaração de amor do autor à cidade do Recife. Logo ao início do livro ele adverte, porém, que não se espere uma história bem contada da cidade. E cita quem a fez co m propriedade entre os historiadores. O livro é autobiográfico, mas é também um ensaio sociológico, para o qual ele se permite não fazer citações, até porque a teoria que o fundamenta, Elegia para uma re(li)gião, está republicada como segundo texto do mesmo livro.

O livro persegue, do começo ao final, a ideia do Recife como noiva da revolução. O capítulo “Interregno antes de adernar” é o mais autobiográfico. É onde o autor dá o seu testemunho de fatos importantes da história do Brasil que se passaram no Recife e onde ele foi um dos protagonistas. O Recife da segunda metade dos anos cinquenta do século passado até o golpe militar de 1964. Foi nesse período, segundo Francisco de Oliveira, que se deu “o último namoro da cidade com a revolução, período rico das Ligas Camponesas de Chico Julião, do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), do governo municipal e do ano e pouco do primeiro governo estadual de Miguel Arraes, da prefeitura de Pelópidas Silveira em seu segundo mandato, de Cels o Furtado e da Sudene, de Paulo Freire, do Movimento de Cultura Popular de Anita Paes Barreto e Germano Coelho, do Partido Comunista, o original, e suas lideranças…” (pag. 60). O golpe militar, ele o vê não apenas como o esmagamento de um projeto socialista. “O que a burguesia pernambucana não sabia é que ela havia não apenas deixado a noiva solteira, chorando seu amado inatingível, como havia ajudado a decretar, como o golpe de Estado, sua própria morte enquanto classe social dominante” (pag. 79).

Aos personagens míticos da história pernambucana daquele período, Francisco de Oliveira trata com a perspicácia de quem com eles conviveu em algum momento. Sobre Arraes ele diz que “a história escolhe, às vezes, um personagem que não se parece com ela. Era o caso de Arraes, um conciliador por excelência que as circunstâncias transformaram num revolucionário. E ele o foi, apesar de si. Atualizo essa saudade, pois Arraes também já se foi e, ao entrar na eternidade, cumprimentou são Pedro com os salamaleques de político sabido e são Pedro avisou: ‘Não precisa, você já é eterno’” (pag. 61). Francisco Julião foi, segundo ele, um romancista desviado pela política. E relembra Antônio Baltar, na campanha de quem ele partici pou ativamente com o slogan O vereador que vale por uma bancada.

No capítulo inicial, o mais lírico e sentimental e onde ele conversa, como conversará em muitas outras passagens do livro, com o Recife, ele diz a que veio: “Quero que você ame e sonhe com essa cidade, que ao ler o lamento cantado em suas ruas, tenha saudade do passado que você não viveu, uma saudade benjaminiana, do que poderia ter sido e não foi; nos versos de Maiakóvski, tenha, com ela, com os que lá moraram e viveram, com os que lá vivem, saudade do futuro. Pois, com suas misérias e suas grandezas, mais das primeiras que das segundas, o bafo da revolução passou aqui, nós o sentimos no cangote, aprestamo-nos para o beijo amoroso, e ela passou e até hoje não voltou.” (pag. 40)

***

Aqui eu vou me permitir contar um “causo” sobre a coincidência dos títulos e de como eu vim a participar dessa história.

Francisco de Oliveira e eu convivemos no CEBRAP, onde iniciei minhas atividades profissionais em São Paulo. Uma de minhas primeiras tarefas naquele centro de estudos e pesquisas foi escrever uma caracterização sócio-econômica e demográfica do Recife, um relatório de pesquisa já pronto, à espera apenas desse capítulo para ser publicado. O autor seria Francisco de Oliveira, a quem procurei para obter o material de pesquisa e matar uma curiosidade. Por que não escrevera? Algo lhe bloqueava a escrita, me dizia. O que falar sobre o Recife, a cidade de sua paixão, depois que João Cabral escrevera O cão sem plumas? Eu, pesquisadora principiante na casa, que cuidasse do assunto, que talvez para mim os fantasmas de João Cabral, Carlos Pena Filho, Mauro Mota, não causassem assombro.

Desde então, Chico foi guardando pedaços de memória, que às vezes compartilhava comigo, sua vizinha de sala, e que só resultaram em uma quase biografia três décadas depois, com Noiva da Revolução.

Pois bem, justamente no ano de publicação de seu livro, em 2008, eu estava à frente da organização de um seminário do Centro Josué de Castro, seminário no qual Francisco de Oliveira participou. Nos contatos telefônicos prévios, ele sugeriu: por que não aproveitamos para lançar Noiva da Revolução? Eu rapidamente entrei em contato com Denis Bernardes, amigo de Paulo Santos e prefaciador do livro, que me pediu na ocasião o telefone de Francisco de Oliveira. A Noiva da Revolução de Paulo Santos já havia sido lançado no Recife, mas, pensou o próprio Paulo, por que não lançá-lo de novo, já que era a pedido de seu “guru”?

Não sei da comédia de enganos que deve ter sido a conversa deles. Só sei que a desculpa de Chico de Oliveira veio a público na própria apresentação do livro: “Chamei este ensaio, durante muito tempo, de “Noiva da Revolução”, última frase do poema de Carlos Pena que conta a história do Recife antigo. Mas demorei tanto – difícil arrancar memórias, Freud o sabia – que o romancista Paulo Santos, meu conterrâneo, adiantou-se a mim e intitulou seu romance sobre amores na Revolução de 1817 também deNoiva da revolução. Mas não posso perder o título longamente acalentado, que, aliás, é uma frase inteira de Carlos Pena, e saiba, Paulo, não se trata de plágio. Ninguém plagia uma cidade nem um amor; por isso o mantive, e espero que você entenda e consinta” (pag. 25).

Assim fiquei sabendo que Chico de Oliveira tinha finalmente quebrado o encanto, trinta anos depois, que lhe permitiu fazer sua própria declaração de amor ao Recife, no prelo para publicação naqueles dias.