20 de dezembro de 2012. 9 horas da noite. Tenho comida pronta na geladeira, mas
quero ver gente, andar pela rua, jantar fora de casa. “Ô moça”, diz meu superego,
“Estamos no Recife, cidade violenta. Te liga: vai sozinha, e ainda com essa roupa?”
Shortinho/camiseta/sandália, tudo de boa qualidade, é certo. Fosse mocinha e
estivesse usando salto alto, em vez da rasteirinha, uma garota de programa. Na minha
idade, uma turista. Levando nos bolsos apenas o cartão de crédito, os óculos pra ler
o cardápio e dinheiro bastante para o caso de precisar barganhar minha vida pelo vil
metal.
E assim lá vou eu pelo calçadão do Pina/BoaViagem nos trezentos metros que separam
meu ap. do bistrô La Cuisine. As mesas do terraço, com as janelas abertas para a brisa
do Recife, estão todas ocupadas. Improviso, com um cadeirão de criança, um lugar
no bar (turista pode tudo) e peço meu prato à base de lagostim e um vinho argentino
apenas razoável, que é o disponível em taça. A brisa está uma maravilha, mas a
conversa da mesa mais próxima é insuportável e o cadeirão desconfortável.
Vantagens da sociedade machista: o garçom, vendo-me sozinha, prontifica-se, sem
que eu peça (apenas pergunto de quanto tempo seria a demora), a colocar meu
pedido na frente dos outros. Sua forma de me proteger. E assim, como o pedido já
vai chegar, rendo-me ao ar condicionado e me desloco para a sala fechada. Numa
discreta mesa aguardo meu prato degustando o vinho. Na mesa contígua, uma cena
dos tempos de progresso e euforia vividos por Pernambuco com seus índices de
crescimento superando os do Brasil. Tento adivinhar pelo que vejo e ouço.
Uma confraternização de final de ano, como tantas outras que estarão acontecendo
nessa noite de dezembro que antecede o Natal. Uma mesa que vai de cabo a rabo
do salão. No cabo, o chefe da família e da empresa, na faixa dos cinqüenta e poucos
anos, com o filho ao lado, em frente à mulher com a nora. Pai, filho e nora, assim
como todos os demais solteiros e casados que compõem a mesa, quase todos jovens,
vestem uma camiseta com o nome da firma. A esposa/mãe veste uma ampla blusa
de seda estampada que lembra oncinha e cobre as gorduras acumuladas pelos doces
recifenses de que tão bem fala Gilberto Freyre, para quem se deveria almoçar na Bahia
e vir comer a sobremesa no Recife. Concordo com ele.
Imagino uma empresa familiar. Não foi assim que surgiu João Carlos Paes Mendonça,
nosso honorário empresário recifense? Ainda estão jantando, quando o filho (possível
herdeiro do negócio) e o pai se abraçam, sentados um ao lado do outro, para a mãe-
esposa tirar uma foto. Celulares são parte constitutiva da festa, revezando com a faca
ou com o garfo. Depois da foto, o filho ensina um comando no celular que a mãe ainda
não sabe. É tudo tão século XXI…
Meu prato chega quando eles já jantaram e começam a distribuição dos presentes de
amigo secreto. Flashes e fotos se multiplicam nessa hora. Imagens que aparecerão,
algumas, em tempo real, nos respectivos facebooks, junto com mensagens de reduzido
português. Uma parte cada dia mais expressiva de nossa sociedade já vive a era dos
telefones celulares de última geração, dos computadores, dos tablets. Com isso, o
tempo físico fica agora dividido em proporções às vezes assustadoramente pendentes
para o lado do tempo virtual.
Sérgio Buarque de Holanda, no seu clássico Raízes do Brasil, diz que a “cordialidade”
é a marca brasileira que legaremos ao mundo. O homem cordial é aquele cuja
característica é o horror às distâncias, por causa de suas raízes (herança ibérica) na
esfera do íntimo, do familiar e do privado. Gilberto Freyre diria da influência negra
na constituição desse homem cordial, pois foi o negro (a negra, melhor dizendo)
quem adoçou nosso vocabulário, quem amolengou nossas relações tirando-lhes a
formalidade.
Trago o paulista e o pernambucano ilustres do parágrafo precedente para me
fazer companhia na mesa do restaurante e me ajudar a responder: será que nossa
“cordialidade” sobreviverá à impessoalidade da comunicação virtual? Estivéssemos
no Japão, para citar um caso extremo, o garçom não estabeleceria uma comunicação
pessoal com uma cliente solitária e talvez não houvesse nem o abraço do pai com o
filho. Por quanto tempo ainda?
***
Quer minha opinião Tereza? a socióloga falou mais alto nesta crônica de uma noite recifense. Continue, vc. leva jeito e vira uma jornalista/socióloga. Como admiro sua coragem e determinação para os desafios, sobretudo os da noite, só me resta dizer vá em frente. Bjs. Lucila
Teresa:
Acabo de ler sua crônica. Está excelente. É uma amostra singular da crônica na melhor forma de expressão do gênero. Você equilibra na justa medida o ângulo subjetivo e o objetivo, o comentário pessoal e o olhar perceptivo do observador sociológico captando no flash do cotidiano os elos profundos que culturalmente nos atam, tensionam e exprimem sem que disso tenhamos consciência.