Praia Formosa, Cabedelo, PB.

 

Vejo como um milagre que nunca tenha tido um distúrbio mental sério. Acredito até que tenha um pequeno acervo de neuroses e de manias que regem meu dia a dia, mas que são mais divertidas do que ameaçadoras. Ou pelo menos é assim que as vejo. Pode ser, evidentemente, que elas assinalem alguma coisa grave que até hoje não se manifestou. Por exemplo, quando saio do banho e passo gel no cabelo, não visto camisa ou malha que entre pelo pescoço porque nada nem ninguém pode tocar no meu cabelo até uma hora depois do gel. Depois é livre. Vamos a outra. Quando chegava em casa, nos tempos que tinha alguma coisa digna desse nome, e vinham falar comigo, normalmente eu dizia: “ainda não cheguei, espere um pouquinho.” Quem chegava era o corpo, mas a cabeça ainda estava na rua. Então ia lavar as mãos, guardar as compras, me servir de um drinque e só então dizia: “oi, agora cheguei. Tudo bem?” Vamos a uma terceira e última. Todo dia junto papeizinhos no bolso, dentro de livros, por cima dos móveis. Tempos desses achei uma nota fiscal do restaurante “The Place”, de 1986, em São Paulo, que esqueci de apresentar à empresa para reembolso. Mas ninguém pode mexer nos papeizinhos, muito menos descartá-los. As faxineiras que tive sabiam que isso era cláusula pétrea do contrato. Que ninguém ousasse.

Toda essa reflexão me veio ao ver um homem sereno e elegante que olhava as ofertas à porta de uma imobiliária do Quartier Latin. Por um momento, achei que era um amigo da Paraíba, um ilustre escritor que mora à beira do mar, perto de João Pessoa. Pensei: mas o que será que ele faz aqui? Por que não me disse que estava vindo para Paris? Será que a COVID-19 está transformando as pessoas a ponto de não fazerem sequer um contato telefônico? Cheguei perto. A máscara e a altura só reforçaram a convicção de que se tratava dele. Então fiz uma pergunta. “Bonjour, Monsieur. Savez-vous où est le Panthéon?” Então ele falou com uma voz que, infelizmente, não era a de meu amigo. E o olhar também era bem outro. Isso me decepcionou além da medida. Admiro-o entre outras coisas porque ele é um homem realizado, de grande cavalheirismo, elegante até nas polêmicas políticas. Enfrenta-as todas com altivez, desassombro, e muita civilidade. Mais do que isso, ele é ligado à sua terra como poucas vezes vi alguém ser. Sabe cantigas praianas, veleja, nada, pesca e se alimenta das conversas com a gente simples que vai visitá-lo. Enfim, ele é uma dessas pessoas que antigamente chamávamos de íntegras. Quando penso na vida que quero levar no pós-pandemia, penso nele. Feliz do homem que tira a felicidade da terra onde nasceu. Não é meu caso.

Mas como dizia, afora essas pequenas manias, não sei por obra de que milagre não acumulei patologias severas. Quando criança, tinha um pai de temperamento forte que era dado a transbordamentos. Custei muito para saber que aquilo não era uma peculiaridade macabra de minha casa e que muitas outras também tinham chefes de família talhados assim. Das sequelas que podem ter resultado disso, vejo duas: uma certa gagueira – que podia se intensificar ou sumir sem explicação – e uma fome de mundo que muitos confundiam com uma “vocação”, mas que podia ser só uma válvula de escape das muitas tensões domésticas que até hoje não suporto. Não me importaria de passar o resto da vida sozinho contanto que ficasse ao abrigo de discussões em casa. Porque quando elas eclodem, além de acionarem a memória de dor, posso ter reações desproporcionais. Para as pessoas pode parecer que reajo com fúria desmedida por uma besteira, que, afinal, essas rusgas integram a vida e que nada justifica que eu me transforme em “outra pessoa”. Mas eu luto muito para suportá-las. Nesse ponto, a pandemia não mudou grande coisa na minha vida. Mas isso é tudo. Talvez, e é bom que enfatize o talvez, o sobrepeso tenha mais a ver com esse pavio curto do que com a glutonice. Se foi, a descida ao inferno saiu barata. Podia ter sido pior.

Pensando no meu amigo, posso um dia ser igual a ele. Ora, se eu fiquei dez meses em Paris, muitas vezes privado até de sair de casa, o que não dizer de ficar no Recife ou em Garanhuns? Ou em Poços de Caldas, que é uma cidade tão linda? Ou num lugar paradisíaco como Tiradentes, que fica perto do eixo Rio-São Paulo-Belo Horizonte, e, ao mesmo tempo, longe de cada uma dessas cidades? Eu não seria um aliado da natureza como meu amigo é, mas agora estou mais treinado do que antes para aguentar as agruras da vida a baixa temperatura. Sim, essa é a sacada da vez. De tanto ouvir que a vida não voltará a ser o que era, estou me acostumando à ideia de entreter hábitos frugais e a reflexão. Pois – prestem atenção porque agora vou juntar as pontas – se não enlouqueci até hoje, dificilmente vai me faltar juízo adiante. Tampouco quero que me sobre, longe disso. Mas foi imensa a lista de contrariedades que tive em todos os âmbitos da vida. Ela é quase tão longa quanto a relação de alegrias. “I’ll survive”, penso. “Eu não sou daqui, Monsieur, mas sugiro que contorne a praça e o senhor deverá ver a cúpula do Panthéon logo à sua direita”, disse o homem com forte sotaque de Marselha. Enquanto prosseguia meu passeio, fiquei imaginando o que mais invejei nele até hoje e descobri: que saiba citar de cor todos os peixes do litoral de sua Paraíba.

A ele em especial, depois do rendez-vous manqué, um feliz 2021.