A cultura açucareira deixou marcas da escravidão na nossa sociedade, arraigadas até hoje. Naquele tempo, em que o rio Capibaribe era o lugar nobre de passeio das sinhazinhas, lugar de banho, temos a triste memória, retratada na história e nas pinturas da época, dos tigres. Negros escravos carregando dejetos das casas senhoriais para jogar no mar, num tempo em que o banho de mar não era valorizado. A herança maior da escravidão perdurou no trabalho doméstico. As empregadas domésticas foram estigmatizadas de piniqueiras, função em tudo semelhante a dos tigres. Estupradas pelos descendentes dos senhores de engenho mal saídos da adolescência no recinto dos lares cristãos ainda um século depois da abolição. Heranças da escravidão são as tristes marcas que nos deixam à margem dos índices de civilização do mundo. Por isso, salve a PEC das domésticas!
Os Editores
A Opinião desta semana “Herdeiras da escravidão” expressa a visão majoritária da Editoria da revista. Mas, não é a minha opinião e, portanto, para alimentar o debate (pra isso serve a Revista Será?), vou fazer alguns comentários críticos (desculpem o texto muito longo, mas sei que os meus colegas editores vão responder à altura):
Em primeiro lugar, não acho pertinente a relação direta do emprego doméstico com o escravagismo. Responsabilizar o trabalho doméstico de hoje ao escravagismo, depois de quase 120 anos da abolição, levar, errada e comodamente, a poupar as nossas gerações da responsabilidade pela persistência de relações precárias de trabalho no século XXI. Os problemas sociais do presente são culpa das nossas gerações e não de um sistema que já desapareceu há mais de um século.
Também não se pode vincular o escravagismo e o emprego doméstico à região canavieira do Nordeste, pequeno pedaço deste grande Brasil onde dominaram atividades escravas. No Sudeste do Brasil, onde também teve escravagismo, o emprego é menos precário e o emprego doméstico bem menor, resultado de relações construídas ao longo das décadas. Por outro lado, em países desenvolvidos, como os Estados Unidos, o trabalho doméstico precário, sem nenhuma regulamentação, diga-se de passagem, é assumido por latinos imigrantes e não pelos negros “herdeiros do escravagismo”.
Também tenho dúvidas e ressalvas em relação a esta comemoração emocionada do “Opinião”, dúvidas sobre o alcance e o impacto da PEC. Para começar, o grande problema do emprego doméstico no Brasil não está na insuficiência de legislação mas na ausência de aplicação das mais simples regras trabalhistas já existentes. De acordo com o IBGE (PNAD 2011), do/as 6,65 milhões de empregado/as domestico/as (os homens são apenas 7% do total) do Brasil cerca de 69,4% não têm sequer carteira assinada (ou seja, 4,61 milhões de trabalhadores), não contribuindo também para o INSS. No Nordeste, o emprego doméstico sem carteira assinada chega a 83,4% do total, bem acima da média e muito acima dos 62,5% do Sudeste. Será que a PEC que inclui agora FGTS, jornada, salário família, etc. vai ser aplicada a este grupo majoritário que vive com precaríssimo regime de trabalho? Duvido, duvido muito!
O problema está muito mais embaixo. O que falta mesmo é fiscalização para acabar com a informalidade enorme no emprego doméstico. Mas, como sempre no Brasil, mais fácil é criar novas leis, mais regras para não serem cumpridas ou serem apenas utilizadas para os 31% que já estão registrados. Melhor que nada? É. Mas os 4,61 milhões que estão de fora vão, provavelmente, continuar sem proteção nenhuma. E não será mesmo uma surpresa se a PEC terminar tendo o efeito contrário: o aumento da informalidade no emprego doméstico para fugir de mais regulamentação, maiores encargos e muito mais burocracia para as famílias. Mais uma vez, a causa do problema está fora dele e não depende de legislação: se as jovens brasileiras tivessem educação de qualidade e qualificação profissional não se submetiam a um trabalho desgastante, rotineiro e, muitas vezes, humilhante. Como não têm e não se faz nada para que tenham, ah! “baixa uma lei”. Simples assim. Aplausos, e tudo continua como antes, muda a lei para não mudar quase nada.
Muito inteligente o comentário do Sergio Buarque, com o qual concordo inteiramente. É muito simplismo, realmente, atribuir à escravidão negreira as mazelas das domésticas.
A Opinião expressa a visão da maioria, porém sempre um de nós escreve e submete aos demais. No caso dessa semana, eu quem escrevi e, portanto, o texto de resposta à crítica de Sérgio vai assinado. Vamos por partes.
1. A herança do escravismo associado à plantation açucareira deixou sim vestígios duradouros em nossa sociedade, tão duradouros que 120 anos de abolição ainda não apagaram. O trabalho doméstico tal como você mesmo, Sérgio, me exime de apresentá-lo (dos 6,65 milhões de empregados domésticos do Brasil, cerca de 69,4% não têm sequer carteira assinada, não contribuindo também para o INSS, sendo que no Nordeste, o emprego doméstico sem carteira assinada chega a 83,4% do total, bem acima da média e muito acima dos 62,5% do Sudeste) não é apenas a informalidade expressa nessas cifras. É uma relação de mando X subserviência que está para além da informalidade de outras ocupações. É a servidão no recinto do lar. A situação vem mudando, para o que contribuiu muito a luta das próprias domésticas e o seu afastamento do “quarto de empregada”, título de uma importante pesquisa do Centro Josué de Castro, da qual participou ativamente o Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do Recife
2. O que vincula o escravismo e o emprego doméstico à região canavieira é uma questão mais sutil. Tem a ver com a associação que fiz entre os tigres e as piniqueiras. O costume arraigado dos “brancos”, aqui no sentido dos ricos burgueses e da classe média, de usarem e abusarem de seus serviçais. Esse costume atravessou a abolição e se instalou mais fortemente nas regiões açucareiras, berço de uma cultura escravocrata mais arraigada do que em outros espaços que igualmente tiveram a instituição da escravidão. Onde mais, um Usineiro como o Sr. José Lopes, teria a audácia de atirar à queima roupa nos trabalhadores que, logo no pós Golpe de 1964 foram ao alpendre de sua Casa Grande solicitar seus direitos? Foi uma árdua luta das próprias lideranças das empregadas domésticas aqui no Recife para o convencimento de terem carteira assinada com essa profissão tão estigmatizada.
3. A lei não modifica de imediato costumes da sociedade, sabemos disso. Essa lei especificamente, pelas dificuldades de sua regulamentação sendo o emprego em casas de família e não empresas. Mas a lei, sobretudo hoje em dia, em que os meios de comunicação se encarregam de difundi-la, é sempre um marco importante, servindo muitas vezes como desencadeador de lutas e mudanças sociais. A profissão de empregada doméstica foi reconhecida apenas pela Lei 5.859 de 11 de dezembro de 1972. E ainda há todo esse contingente de domésticas sem carteira assinada. O nosso problema maior não está na economia mas nas nossas relações sociais. Será preciso muita estrada ainda para alcançarmos o nível dos países ditos desenvolvidos. E nesses, Sérgio, nos Estados Unidos, onde conheci bem a realidade imigrante, as brasileiras cavaram um de seus nichos no emprego doméstico e são a categoria imigrante mais bem remunerada. Elas vão ao trabalho em seu próprio automóvel, têm uma agenda de casas ou empresas a serem limpas na semana numa relação empregatícia com empresas, a maioria delas de conterrâneas brasileiras. Nada a ver com o nosso estigma e realidade de um trabalho subserviente.
Com todo o respeito aos avanços da legislação trabalhista no sentido de ampliar garantias sociais aos empregados domésticos, uma questão ainda me incomoda: A situação da prestação de serviços na família pode ser comparada à prestada a uma empresa capitalista qualquer? o empregado doméstico é igual a um bancário, no sentido afetivo da relação impessoal da prestação do serviço? O empregador familiar deve se ater somente á capacidade laboral do contratado? Considero que o que vem mudando, e muito rápido, é a própria concepção de família, que passa a ser algemada por relações não afetivas,impessoais, puramente contratuais.tipicamente capitalistas. O trabalho doméstico, antes, considerado “sem produção de valor”, pura reprodução da vida cotidiana, deixa de se submeter ás regras do patriarcado (amém), mas torna-se algo que se compra, se consome e desaparece, assim como os seus produtores e compradores
Nada contra a legislação trabalhista inclusiva para o trabalho doméstico, já me antecipei há anos, até com o FGTS. Duas questões me preocupam quando nos referimos a 2/3 de excluidos (4/5 no nordeste). Primeiro, o desemprego estrutural que leva a 6,7 milhões de empregados a se submeterem ao subemprego doméstico(baixa remuneração sem direitos trabalhistas), o que não se resolverar com a modernização conservadora que caracteriza nosso “crescimento econômico”;segundo a ausência do Estado como regulador das insituições existentes (dos direitos trabalhistas aos estacionamentos proibidos). Eis uma questão para a qual não tenho resposta: onde está a sociedade civil, como poder regulador? Sem o Estado como instância efetiva, a PEC, as eleições de 2014 ou o BBB terminam sempre em notícias espetaculares da mídia cotidiana.
Espero que a Revista Será seja uma força democrática contra o conservadorismo e a perversão das instituições, sejam quais forem suas origens históricas; vamos continuar o debate.
chamo a atenção dos editores para a cor da letra nos quadros onde se escrevem os comentários. Tão clara que dificulta a revisão e correção antes de enviar.
Depois que respondi à crítica de Sérgio e Afrânio, apareceram os comentários de Ester e Aécio. Para não alongar esse espaço, pretendo escrever um artigo ou ensaio fundamentando melhor meus argumentos, sem com isso ter a pretensão de mudar a opinião de ninguém.
Primeiramente, parabenizo os editores por trazer ao debate um tema tão importante para a sociedade e cristalino no nosso cotidiano.
Concordo com o Sérgio no ponto em que a relação direta do trabalho doméstico com a escravidão de outrora talvez seja exagerado. No entanto, ao meu ver, é inegável que ambos estejam muito associados. Hoje, a realidade dessa categoria não é só desfavorável economicamente, mas, como bem pontuou Teresa, a relação social entre a classe patronal e as empregadas é lamentável.
Não raro escutamos de colegas ou conhecidos, questões como: “e agora fica impossível para a mãe de família trabalhar”, “como vamos fazer para criar os filhos”, “elas ficam lá embaixo do prédio conversando com as outras e vão acabar nos colocando na justiça”, “elas agora não querem mais lavar roupa na mão” e por ai vai. O que mais incomoda e ao mesmo tempo expõe a criticidade da relação é que sempre as empregadas são tratadas como “elas”, como se não fizessem parte da nossa sociedade e não tivessem os mesmos direitos e deveres dos demais – evidenciando heranças do escravismo.
Se a PEC não resolve o problema, ao menos ela coloca de forma clara que o trabalho doméstico é um emprego digno igualmente aos demais e que direitos básicos e, sobretudo, jornada, devem ser respeitados. A efetividade dessa lei na prática, infelizmente, não será a ideal por diversos fatores, mas acredito que a médio prazo as condições dessa categoria (e o respeito que ela terá) serão bem melhores do que as atuais, sobretudo nas cidades médias e grandes.
A Folha de hoje, citando o IBGE se refere a 1.389 como o total de empregados domésticos no Pais. Provavelmente este número se refere apenas ao emprego formal. Ainda assim, inferior aos 2 milhões projetados a partir dos números de Sérgio. Considerando que os percentuais de Sérgio são corretos, o IBGE estaria considerando apenas 4,54 milhões de empregados domésticos no Pais, subestimando mais de 2 milhões de trabalhadores informais. Será isso mesmo?