A controvérsia em torno do aborto tem sido dominada pela polarização entre as igrejas e o movimento feminista, quase sempre com uma grande simplificação da problemática e das implicações éticas, sociais e de saúde pública. A legislação brasileira aceita o aborto em determinadas condições excepcionais, que vão do estupro a eventuais deformações do feto, passando pelo risco de vida comprovado da mãe na gestação, sempre com autorização judicial. Com proibição ou não, o aborto tem sido feito em grande escala e em condições precárias, sem cuidados médicos e em clínicas despreparadas e irregulares, com alto risco para a vida e a saúde da mulher.
Quando o casal (não apenas a mulher) não deseja ou simplesmente entende que não pode ter filhos (razões financeiras, psicológicas ou estritamente familiares), arrisca o aborto ilegal e arriscado ou, ao contrário, joga no mundo filhos indesejados ou mesmo rejeitados, com os seus prováveis traumas e dificuldades psicológicas e carências afetivas que podem levar a desajustes sociais (crianças deixadas em lixões e córregos, crianças abandonadas à espera de adoção, soltas na rua e entregues à violência e às drogas). Entre o direito à vida latente no embrião e o direito a uma vida digna da futura criança, muitos pais preferem interromper a gestação se antecipando à condenação do filho às dificuldades materiais, psicológicas, afetivas e sociais. Que, numa escala social contribui para a desagregação social, violência e propagação de drogas.
Entretanto, a defesa do aborto não pode simplificar nem minimizar as implicações éticas e sociais da interrupção forçada e intencional da gravidez que contem um processo latente de vida em formação. O embrião, claro, não é uma pessoa, mas é sim um ser vivo. Desde a sua concepção, o feto contêm todos os elementos genéticos que, num ciclo definido de evolução própria, vai completar a sua formação como um ser pronto para a vida humana. O embrião é o gérmen da vida em gestação e evolução, que sairá para o mundo depois de um tempo previsível se não for esmagado ou extraído. De tal modo que, não havendo uma intervenção externa – o aborto – ele tem uma trajetória de vida que se diferencia apenas pelo fato de ser parasitário e dependente da interação com o corpo da mãe. O aborto constitui, portanto, a interrupção traumática de um ciclo vital e não uma simples operação para extração de um tumor ou um apêndice.
O fato de o embrião ser totalmente dependente do alimento materno não subtrai a sua qualidade própria de evolução natural na formação de um ser vivo, da mesma forma que a criança recém-nascida não sobrevive sem os cuidados e os alimentos externos com a única vantagem de que pode receber estes cuidados de outras pessoas. Mas, em certo aspecto, o recém-nascido é mais frágil e vulnerável que o feto porque este extrai diretamente o suprimento do corpo materno sem necessidade de cuidados e providências adicionais. Quase se poderia dizer que o aborto é uma violência semelhante ao abandono de uma criança recém-nascida que, até o primeiro ano de vida, não consegue sobreviver sozinha. E o que dizer, no outro extremo, de tantos enfermos, especialmente idosos, mantidos em estado de morbidez alimentados e estimulados por aparelhos sem os quais não terão mais vida? Desligar os aparelhos representa interromper uma vida mesmo em estado semivegetativo que, como sabem todos os que já experimentaram situações parecidas, é uma decisão dolorosa mas, muitas vezes, correta. A diferença entre o embrião e os enfermos mantidos com aparelhos é que a vida embrionária se fará criança e gente se deixarmos a natureza trabalhar, enquanto que os enfermos terminais respiram e batem o coração apesar da natureza já ter falhado.
Por outro lado, a decisão de fazer um aborto não pode ser um direito restrito e exclusivo da mulher, com o argumento de que é a gestante quem carrega e alimenta o embrião no seu próprio corpo. Ora, esta vida em gestação no seu ventre não foi gerada por ela sozinha, mas pelo encontro e fusão do óvulo – da mulher – com o espermatozoide – do homem. A mulher tem direito sobre o seu corpo, claro, mas não deveria ter poder para decidir solitariamente pelo destino do produto gerado em comum com um homem que escolheu para o ato sexual (a não ser, mais uma vez, se ela não escolheu e foi violentada). Se a mulher quer ter o filho mesmo com a resistência do pai, ela terá e ninguém pode intervir sobre ela para realização do aborto por constituir uma violência sobre seu corpo; mas o oposto deve ser considerado, mesmo sendo, normalmente, muito raro: ou seja, contra a vontade da mãe, o pai deseja que a concepção se complete com o nascimento do filho que está se desenvolvendo na barriga da mulher. A mãe pode decidir e realizar o aborto legal ignorando o desejo do pai, também criador do feto, pelo simples fato do ser em formação ocupar o seu ventre e se alimentar dos seus nutrientes?
Parece razoável considerar a necessidade de um entendimento e negociação entre as partes de modo que a decisão de ter o filho ou fazer o aborto seja acordada sempre que se trate de um casal com responsabilidades partilhadas na gravidez. E que, no caso de um pai desejoso de ter o filho contra a vontade da mãe, esta aceite manter a gravidez desde que o homem assuma completamente a responsabilidade futura pelo filho. Da mesma forma que a mulher decide sozinha ter o filho, ela pode cobrar que o pai assuma responsabilidades, mesmo que ele não tenha sido consultado ou tenha mesmo rejeitado a paternidade. No fundo, o que está consagrado hoje é que o homem tem apenas obrigações, mesmo se não quiser ser pai, e nenhum direito, mesmo que deseje ter o filho gerado pela sua companheira.
Apesar de toda esta argumentação, parece óbvio que a mulher, não tendo o direito total e solitário pela sua gravidez, tem sim o poder de decidir e de agir a despeito de opiniões diferentes da outra parte da reprodução. Começa que ela detém a informação sobre o verdadeiro parceiro, podendo negar ou disfarçar a contribuição do homem (embora este monopólio da informação seja atualmente minimizado pela ciência através de análise de DNA). Além do mais, se ela desejar forçar um aborto, mesmo sem recursos médicos e contra a vontade do pai, nada poderá impedir exceto a repreensão moral do companheiro com quem tenha gerado o embrião.
Considerando a análise acima, o mais razoável parece ser, antes de tudo, um cuidado nas relações sexuais para evitar uma gravidez indesejada que obriga a decisões tão delicadas e, normalmente, muito traumáticas. Os meios existem e são conhecidos para evitar a gravidez sem abandonar o prazer e a emocionante entrega humana no encontro sexual.
A única certeza é que o assunto é complexo em todos os sentidos!
Fora as situações de risco e violência, o aborto nunca deveria ser uma solução.
O caminho ideal seria que todos nós, homens e mulheres, fôssemos bem orientados para não engravidarmos sem querer, e bem assistidos na hora de optarmos pela gestação em quaisquer circunstâncias.
Luciana
O assunto é extremamente complexo e delicado, por se tratar da GERAÇÃO DA VIDA, carregado de mistérios, preconceitos, medos. Mas o artigo acima introduz um elemento que eu nunca tinha visto no debate sobre o assunto: os direitos do homem. Até agora, o que eu li dizia respeito apenas aos direitos da mulher, absolutos, por ser onde a vida se desenvolve. Mas o Sergio Buarque foi contundente: e o homem, como é que fica?
Acho que a mulher fica muito mais mexida com este assunto do que o homem. Alem dos aspectos éticos e morais, tem o biológico a interferir. Aguardo comentários femininos.
Muito bom artigo porque mostra a dificuldade em tomar decisão sobre o assunto. Muito mais difícil que os demais problemas éticos da contemporaneidade, como a eutanásia em doentes terminais. Mas, nesta dificuldade é preciso desmascarar os que defendem a vida do embrião mas fecham os olhos ao claro aborto de crianças já nascidas assassinadas pela falta d atendimento médico e mesmo d fome. A favor ou contra a legalização do direito ao aborto, é preciso lembrar que vivemos em uma sociedade aborteira de nascidos.
Sérgio,
acredito que você tratou a questão com delicadeza, mas, como você supunha, eu discordo de você.
parece-me que você mostrou apenas uma possibilidade da questão: quando uma das partes tem interesse no futuro bebê. mas, na imensa maioria dos casos, este não é interessante e/ou desejado por nenhum dos dois genitores e, normalmente, são os possíveis “pais” e não as possíveis “mães” os que não têm interesse.
e é por isso que assegurar o direito à interrupção da gravidez permite que aqueles que não sentem preparados ou interessados em criar um novo ser humano não o façam de maneira relapsa ou, até mesmo, cruel.
e, vale frisar que, mais uma vez, o direito é apenas uma escolha legal num binômio ter-não ter. já está mais do que comprovado que a legalização do aborto não implica na elevação das taxas de aborto. ou seja, a legalização não cria mais abortos, mas, sim, apenas abortos mais seguros. os casais mais esclarecidos continuarão com a possibilidade de escolherem outra opção que não a interrupção, mas, caso optem por esta, estarão amparados pela legislação.
além disso, achei muito simplista a sua colocação “pelo simples fato do ser em formação ocupar o seu ventre e se alimentar dos seus nutrientes”.
primeiramente, a gravidez é muito, muuuuuito mais complicada do que um mero estado parasitoso. ela mexe com hormônios, sentidos, formato corporal, libido, órgãos e aspectos psicológicos. provoca dores, cansaço, queda de cabelo, de dentes, enjôos, inchaços, azias, crises de choro, de pânico, prisão de ventre, sono, etc. é um estado que altera quase todos os aspectos da vida da gestante, quase que uma invasão do self, especialmente se entendermos o self como a união corpo e consciência.
por conta deste absurdo grau de invasão, acredito que esse corpo, deve, sim, ter a primazia na hora da decisão. e eu afirmaria o mesmíssimo,caso fossem os homens os gestantes da humanidade. esse self/corpo “nutridor” é muuuuito mais que isso e TEM que ser respeitado.
o que também não impede que haja diálogo entre os casais mais esclarecidos.
enfim, acho que esse assunto rende mais um banquete.
espero que você entenda minha humilde percepção e que ela seja capaz de modificar um pouquinho a sua!
um beijo enorme e parabéns pela Será? Como disse ontem, adorei a idéia! E viva Hume!!!
Veri, querida
Muito lúcido seu comentário. No que se refere à legalização do abordo, penso que concordamos porque eu apenas quis destacar que não é correto se diferenciar dos conservadores e religiosos minimizando o processo vital que se desencadeia desde a concepção. Quis também fazer um contraponto com os pacientes terminais que todos concordam em manter artificialmente vivos porque são seres vivos quando, em grande parte, não viveriam sem uma aparato de aparelhos. Mas confesso que fiquei bem influenciado pela sua analise do corpo feminino. Você tem razão. O corpo feminino é totalmente alterado pela gravidez e, desta forma, pode merecer uma preferencia na decisão. De qualquer modo, é possível dizer que esta mudança bioquímica e psicológica da gravidez é um privilegio exclusivo da mulher e que, portanto, longe de reclamar deveria nos humilhar pela nossa impossibilidade. Neste sentido, a gravidez é mais um fator positivo da mulher que, mesmo sem pretender o filho, deveria com prazer dar de presente ao pai que o quisesse e curtir os benefícios da gravidez. Obrigado pelo seu comentários inteligente. Como a duvida é o melhor caminho para o conhecimento, você me ajudar a reduzir eventuais convicções que carregava comigo. Beijos, Sergio
eu concordo com você que, ainda que possa parecer meio óbvio, de fato uma interrupção de gravidez acaba, sim, com uma coisa viva.
e acho que misturar essa coisa viva com a possível pessoa que ela poderia vir a ser é a grande questão que pega. e nesse sentido, como você disse, a discussão tem tudo a ver com as “pessoas” mantidas vivas por aparelhos. grosseiramente falando: será que ainda são pessoas? (no sentido pleno do conceito)
acho que a definição do que deve ser considerado “pessoa”, acaba sendo muito social, no final das contas. tanto para fetos, quanto para aqueles que têm morte cerebral.
enfim, a discussão é pesada.
ah, e quanto a gravidez ser privilégio, eu mesma desconfio do meu interesse pessoal em tê-lo! kkkkkkkkk… ( muito embora eu acredite piamente que deve ser uma experiência intensíssima! )
bom, no frigir dos ovos, acabo achando que estamos do mesmo lado, só pensando nos “serás?”… um beijão pra você!
Outro dia falo sobre o conteúdo. Hoje gostaria apenas de dizer que na minha opinião os editores exageraram na escolha da foto para ilustrar o artigo. A maioria dos abortos não acontece nessa fase intrauterina. Imagino que não tenha sido uma escolha tendenciosa até porque conheço a maioria, mas vamos admitir que houve foi um erro que pode levar o leitor “indeciso” a ter “peninha” desse lindo bebê que só faltou”sorrir” na hora do ultrassom. Acho que o médico esqueceu de dizer: “olha o passarinho!”
ah, e concordo com o comentário da maria helena hulak. segundo a maioria esmagadora dos estudos médicos, a interrupção de gravidez sem sofrimento pro feto deve ser feita, no máximo, até os três meses de gestação. depois desse tempo, o feto começa a desenvolver algumas sensibilidades pré-humanas… essa foto não é a mais adequada…
Concordo absolutamente com a colocação da Maria Helena. Ao ilustrar o artigo com a foto de um feto neste estágio de desenvolvimento, vocês se aproximam dos movimentos religiosos extremistas que fazem o mesmo em seus folhetos “anti-aborto” onde pregam também que camisinha e pílula do dia seguinte são abortivos.