A crítica recém publicada de Fernando da Mota Lima nessa revista sobre o livro Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, bem como o debate que se lhe seguiu, com destaque para as considerações de Homero Fonseca, motivaram-me a escrever este ensaio, que é na verdade a revisão de um artigo publicado na revista da Anpocs (número 25, junho de 1994). O fetiche da igualdade social, para a definição do qual me vali dos conceitos “democracia racial” de Gilberto Freyre e “homem cordial” de Sergio Buarque de Holanda, são os fatores mediadores de nossas relações de classe, que têm ajudado a dar uma aparência de encurtamento das distâncias sociais, contribuindo dessa forma para que situações de conflito frequentemente não resultem em conflito de fato, mas em conciliação.
Para chegar ao conceito de fetiche da igualdade, comecei por tentar entender as raízes da desigualdade social, não enquanto desigualdade de renda, mas na cultura política brasileira. A cultura política entendida como uma espécie de cimento das relações de mando e subserviência. Se eu tivesse de definir em poucas e curtas palavras o significado das raízes da desigualdade social na cultura política brasileira, diria que no nosso país ou bem se manda ou bem se pede. Está no simples conteúdo desses dois verbos o significado mais profundo de nossa cultura política do mando e da subserviência.
O tema do mando na ciência política está mais comumente associado ao seu complemento natural, expresso na obediência. Assim, define Weber o poder como “a probabilidade de impor a própria vontade dentro de uma relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade”. Mais preciso, porém, do que o conceito de poder para esse autor, é o de dominação, por ele definida como “a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis” (Weber, 1991:33). Quando me refiro a subserviência e não obediência, estou na verdade redefinindo o outro pólo da alteridade em termos do pedir, para além do obedecer.
O pedir, para além do obedecer, implica num provedor forte, que no Brasil foi o domínio territorial. Seja ele expresso como sesmaria, como latifúndio escravocrata ou como grande propriedade, o aspecto que aqui quero resgatar é o de domínio rural ou domínio territorial, ou seja, o que implica a contrapartida do favor, da dádiva, do mando e subserviência.
Nenhuma descrição poderá dar uma imagem tão aproximada da força do mando decorrente do domínio territorial, quanto a figura do senhor de engenho do alto de seu alpendre ou de sua montaria, quando dirigindo a palavra aos outros. Na minha primeira pesquisa de campo, a que originou a dissertação de mestrado (Suarez, 1977), fiz uma pesquisa amostral e, para meu infortúnio, caiu na amostra estratificada da área rural uma usina de açúcar das mais antigas na localidade, a Usina Estreliana. Contava-se de seu proprietário, que havia atirado à queima roupa em seis camponeses, antes mesmo de ouvir qual a reivindicação que os trazia à sua presença. Isso aconteceu no imediato pós-64, quando aqueles camponeses ainda se julgavam na “época dos direitos” que vigorou a partir do “Acordo do Campo”, assinado em 1963 pelo governador Miguel Arraes.
Já estávamos em 1973, mas o temor que esse Homem ainda inspirava ultrapassava as fronteiras de seus domínios. Ao ponto que só algum tempo depois percebi que era esse o motivo pelo qual até o motorista da Universidade Federal de Pernambuco, que nos acompanhou naquela fase da pesquisa, o qual morava, portanto, no Recife e ia a Ribeirão (era esse o município) apenas a trabalho, postergou o quanto pôde a ida à Estreliana, inclusive tentando arranjar um bom motivo para que não fôssemos até lá entrevistar o Homem. O usineiro, José Lopes, nos recebeu do alto do seu alpendre, duas pesquisadoras desamparadas ao pé da escadaria da casa-grande. O motorista, esse do carro não saiu. E se avultou ali na nossa presença aquela imagem do mando absoluto.
Na entrevista de Ivan Rodrigues recém publicada em nossa revista, ele conta que esse mesmo José Lopes dava ordens de comando aos militares que prenderam os que estavam em Palácio no dia primeiro de abril de 1964, ele inclusive.
Mas será que persistem esses traços outrora tão fortes de mando e subserviência em nossa cultura política? A urbanização, a democracia e a ascensão econômica das classes baixas não mudaram essa cultura?
Para melhor responder a essas questões, remeto-me a dois autores, dos mais importantes para o pensamento brasileiro sobre a identidade nacional, ou, nos termos deste ensaio, sobre a cultura política brasileira. Esses dois autores são Gilberto Freyre, de Casa-grande & senzala, e Sergio Buarque de Holanda, de Raízes do Brasil. Ressalvo desde logo que não serão aqui discutidas as obras desses autores, mesmo em se tratando apenas dos livros mencionados. Elas serão utilizadas como referencial para pensar o fetiche da igualdade social.
O aspecto do qual me aproprio de Casagrande & senzala, que permeia a reflexão de Gilberto Freyre em todo o livro, diz respeito à miscigenação.
O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre ensanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação. [Freyre, 1973:LX]
Miscigenação do português com a índia, do português com a negra, resgatadas pelo autor no que significaram enquanto necessidade daqueles primeiros colonizadores de aqui constituírem família. Foi, portanto, no interior da casa-grande que essas relações, as mesmas que naturalmente carregavam uma marca sadomasoquista, foram como que “adoçadas” pelo entorno canavieiro. Era essa a base social de nossa democracia: a democracia racial. Por um lado essa provocação foi forte a ponto de instigar a realização de alguns dos melhores estudos da chamada Escola Uspiana (refiro-me aqui a Fernandes, 1978; Ianni, 1972, e Cardoso, 1977), onde se destaca uma ótica radicalmente oposta na consideração da questão negra, com a tese da escravidão como uma instituição total.[1] Por outro lado, porém, foi uma obra que em muito ultrapassou a simples análise acadêmica, tornando o livro um encontro quase irresistível do brasileiro leitor com sua mais íntima brasilidade. “É um passado que se estuda tocando em nervos; um passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos” (Freyre, 1973:LXXV). Em que o negro aparece
Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo. [Freyre, 1973:283]
Democracia racial não a temos. A desigualdade na distribuição de renda é a marca social brasileira com a qual temos nos apresentado ao mundo, depois que o brilho efêmero dos milagres se arrefeceu com a década perdida. Programas de governo como o funrural e o bolsa família minoraram a distribuição de renda, porém ainda levará tempo para que os que ascenderam em renda possam ter, no mínimo, saneamento básico e escola de qualidade para crianças e jovens.
Mas isso que Gilberto Freyre chama de democracia racial, conseqüência de nossa especificidade de ser um povo originário da miscigenação de raças, é precisamente isso um dos fatores que torna tão nebulosas as nossas diferenças sociais. A democracia racial, enquanto essa gostosa mistura que passa pelos sentidos, é um importante fator mediador das nossas relações de classe.
Sergio Buarque de Holanda apresenta a mediação de classes sob uma outra óptica, embora as raízes de ambos, Sergio e Gilberto, estejam apontando para elementos que encobrem as desigualdades sociais por uma espécie de fetiche. A ótica do autor de Raízes do Brasil é a do “homem cordial”, aquele cuja característica é o horror às distâncias, que tem suas raízes na esfera do íntimo, do familiar e do privado, cujas origens, por sua vez, estão relacionadas antes com a especificidade de nossa casa-grande que com traços patrimoniais herdados da cultura portuguesa. Esse homem cordial se expressa na nossa religiosidade caseira, da intimidade com os santos a que igualmente Gilberto Freyre aludira no seu ensaio aqui considerado, assim como em aspectos de nossa linguagem, como o diminutivo acrescentado aos nomes ou o uso do primeiro nome em lugar da polidez e da distância do sobrenome. Gilberto Freyre aludiria à influência negra para a constituição desse homem cordial de Sergio Buarque de Holanda, pois não foi o negro (ou a negra, melhor dizendo) quem adoçou nosso vocabulário, quem amolengou nossas relações tirando-lhes a formalidade?
Esse homem cordial aponta para um sério dilema brasileiro. Por um lado,
a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o “homem cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. [Holanda, 1984:106-7]
Por outro lado, esse mesmo homem cordial representa a nossa impossibilidade de atingir uma ordenação impessoal que permita a ruptura com os padrões privatistas e particularistas dominantes no sistema e na família patriarcal. Esse dilema não foi, a meu juízo, resolvido teoricamente pelo próprio autor do ensaio, que de certo modo se propunha fazê-lo nos dois capítulos seguintes.
A aparência do encurtamento das distâncias sociais por meio de nossa informalidade no convívio tem um fundo emotivo que permeia mesmo aquelas relações que seriam mais caracteristicamente impessoais. O autor exemplifica esse “desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo” (Holanda, 1984:109) com o depoimento de um negociante da Filadélfia que estranhou o fato de necessitar fazer amizade para poder conquistar fregueses para seu negócio. Mas qualquer um de nós é capaz de arrolar várias situações de nosso cotidiano em que esse traço de informalidade no convívio em contextos caracteristicamente impessoais pode ser observada. Assim,
a amizade, desde que abandona o âmbito circunscrito pelos sentimentos privados ou íntimos, passa a ser, quando muito, benevolência, posto que a imprecisão vocabular admita maior extensão do conceito. Assim como a inimizade, sendo pública ou política, não cordial, se chamará mais precisamente hostilidade. [Holanda, 1984:107,- nota 157]
Esse encurtamento das distâncias sociais, expressa-o bem o tipo de consideração encontrado comumente nas falas de pessoas pobres da nossa região quando afirmam: “Tal pessoa não tem bondade”. O “não ter bondade” dessa expressão não tem conteúdo valorativo negativo, como poderia parecer à primeira vista ao interlocutor desavisado. Não ter bondade nesse caso refere-se à ausência de formalismo e convencionalismo sociais, que são elementos definidores da cordialidade. Nesse sentido, a pessoa que não tem bondade é aquela que não se considera melhor ou “mais boa” que as outras e, portanto, não cria obstáculos à proximidade por meio de formalismos e etiquetas. A pessoa que não tem bondade é a pessoa próxima, que foi capaz de encurtar as distâncias sociais, de fato existentes, pelo seu atributo de “não ter bondade”.
O fetiche da igualdade é um mediador nas relações de classe que em muito contribui para que situações conflitivas freqüentemente não resultem em conflitos de fato; mas em conciliação. E onde as distâncias sociais são mais pronunciadas, quase gritantes às vezes, é onde vamos encontrar mais presente esse fetiche da igualdade, com as exceções necessárias para confirmar a regra. Tome-se, por exemplo, um meio de transporte terrestre e faça-se a aventura de viajar do Sul do país em direção ao Norte, e possivelmente vai se observar que o sentido da cordialidade vai se aprofundando à medida que a viagem progride.
Referências
CARDOSO, Fernando Henrique. (1977), Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
FERNANDES, Florestan. (1978), A integração do negro na sociedade de classes. 38a. ed., São Paulo, Ática.
FREYRE, Gilberto. (1973), Casa-grande& senzala. 16a. ed., Rio de Janeiro, José Olympio.
HOLANDA, Sergio Buarque de. (1984), Raízes do Brasil, 18a. ed., Rio de Janeiro, José Olympio.
IANNI, Octavio. (1972), Raças e classes sociais no Brasil. 2a. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
SUAREZ, Maria Teresa S. Melo. (1977), Cassacos e corumbas. São Paulo, Ática.
WEBER, Max. (1991), Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília, Editora da UnB.
[1] Em uma de minhas pesquisas de campo ocorreu-me um diálogo que nunca foi apropriado em escritos anteriores, pelo simples fato de nada ter a ver com os assuntos que eu pesquisava à época. Entrevistava uma mulher sertaneja, daquelas cujo passado não conheceu a escravidão como forma de trabalho ou como mistura étnica. Era uma mulher branca de olhos azuis, que tinha então a minha idade, 33 anos, mas que aparentava dez anos a mais pelos estragos que o intenso trabalho debaixo do tórrido sol nordestino causara a sua pele. Sua vivacidade ficava por conta daqueles bonitos olhos aos quais não passava despercebido o mundo em volta e o mundo de fora trazido pelos seus familiares que retornavam de São Paulo. Por mais de uma vez ela se referiu a “nós, negros”, ao que eu quis saber por que, se ela era branca. “Brancos são vocês, os ricos”, respondeu-me. “Nós aqui somos todos negros.”
Teresa:
Seu ensaio me fez lembrar uma declaração de Antonio Callado, que cobriu como repórter zonas de altíssimo risco, como o Vietnam. Salvo erro de memória, foi o primeiro jornalista a chegar ao Vietnam do Norte no auge da guerra. Pois ele afirma que nunca se sentiu tão intimidado quanto quando foi recebido pelos usineiros pernambucanos na instituição que representava os interesses deste grupo. Acho que o episódio está registrado em Tempos de Arraes, livro no qual reúne o conjunto de reportagens que escreveu para o Jornal do Brasil pouco antes do golpe de 1964.
Desculpe derivar para essas associações. É que foram provocadas involuntariamente pela leitura do seu ensaio que aprovo integralmente. Daí, faltando-me pontos substanciais de debate, derivo para associações desse tipo. Você combina com muita propriedade a memória crítica com sua experiência no âmbito da sociologia empírica, matéria na qual sou quase nulo.