Fernando da Mota Lima

Cena do Filme Os 3 – Direção de Nando Olival

Cena do Filme Os 3 – Direção de Nando Olival

Num certo momento, a partir de meados dos anos 1970, Olinda foi cenário e fonte inspiradora de uma inusitada atmosfera boêmia. Nas suas ruas, sobretudo nas suas noites, além de algumas casas acolhedoramente abertas ao trânsito de todo  tipo de gente, corria e trepidava um veio de vida e exaltação dissipadora e errática que se estendeu sem pausa durante alguns anos. Uma primeira leva dos personagens aqui considerados, no geral retratados mais como grupo do que individualidades nitidamente diferenciadas, tinha em comum, como pano de fundo opressivo, os traumas causados pela vigência difusa da ditadura militar. Liguei-me a esse grupo por vínculos de idade e afinidade ideológica e logo mais a um mais jovem e portanto alheio ou indiferente às repercussões explícitas ou latentes dos anos de chumbo.

O primeiro grupo convergia livremente no geral para a casa de Denis Bernardes, a meio caminho do Museu de Arte Contemporânea e dos Quatro Cantos. Lá, num certo momento, o clima era tenso, por vezes nitidamente depressivo. A sombra da ditadura, até suas garras visíveis, perturbava irremediavelmente os espíritos, mesmo os mais expansivos e sintonizados com as expressões gratuitas da vida. Mas penso que a atmosfera abafada derivava antes de tudo de características psicológicas e ideológicas  bem marcadas de muitos dos presentes. Eram tipos severos, ensombrecidos por uma mirada austera ou pouco imaginosa da vida. Faltava, em suma, a muitos dos que frequentavam essa roda movente, o vinco de humor, música vivida, fantasia e compulsão erótica que fui encontrar mais tarde no grupo mais jovem.

Sem  a intenção de depreciar o prazer ocasional dos nossos encontros, talvez não seja mero preconceito aludir a grupos políticos e ideologicamente identificáveis, sejam militantes ou não, como resistentes ao exercício do convívio gratuito, votado ao prazer puro e simples, até irresponsável. Sugerindo o peso dessa atmosfera com um exemplo extremo, lembro-me ainda de uma noite de sábado durante a qual bebemos e ouvimos música durante horas sem pronunciar uma palavra. Friso que o silêncio não decorria de nenhuma concentração musicalmente mística, ou estado de pura fruição estética, mas do peso opressivo que recobria o espírito dos presentes. Retirei-me mais tarde tão sufocado que logo respirei aliviado quando repus os pés na rua deserta. O poder da ditadura, como um fantasma onipresente, envenenava até a esfera de convívio mais íntimo e gratuito.

Os momentos de maior prazer ou expressão mais espontânea vivi-os sempre à margem do grupo de fluida composição reunido na sala, geralmente nas noites de sábado. Quando de fato conversei, foi entretendo diálogos efetivos com Denis, também com o Filósofo Desvairado, um ou outro interlocutor ocasional. Aliás, ainda hoje, independentemente das circunstâncias históricas em que se processem relações de convívio, acredito que conversa é literalmente diálogo, isto é, conversa a dois. Não tenho dúvida de que conversamos mal porque nossa cultura propicia antes os encontros grupais pontuados por certo atavismo tribal que de ordinário converte nossas reuniões sociais em tagarelice estéril. Nesse sentido, Denis Bernardes se distinguia como um modelo de civilidade dialógica. Também o Filósofo Desvairado, à margem dos excessos em que sempre incorria movido pela droga e a temperatura exaltada do grupo, propiciou-me momentos de autêntica epifania percorrendo a meu lado as ruas desertas de Olinda nas madrugadas de recesso boêmio. Nessas ocasiões, animados pela bebida moderadamente ingerida, compartilhamos diálogos iluminados livremente sugeridos por nossas leituras filosóficas e literárias. Também aí a sombra da ditadura se projetava sobre nossos passos, andava conosco na solidão das ruas, mas a presença palpável, a voz audível era a da angústia existencial, a reflexão sobre nossas vidas insolúveis. Órfãos de uma utopia cancelada pela ditadura, expulsos de um ideal somente concebível dentro de uma ordem participativa fechada pela dura realidade política, buscávamos refúgio no que nos sobrou de existência individual autônoma.

Suponho que fosse o mais desenraizado do grupo. Além de haver praticamente rompido todos meus elos de família e grupo primário, vivia de empregos instáveis e endereços provisórios. Era um judeu errante, salvo o fato de não ser judeu, embora espiritualmente assim me sentisse e ainda me sinta. Afinal, alguns dos espíritos que mais profundamente me marcaram são judeus. Depois de muito mudar de pouso nas ruas do Recife, compartilhei com o Filósofo Desvairado dois endereços em Olinda: um na Rua das Bertiogas, à borda da Ladeira da Misericórdia, outro no Largo dos Milagres. Conviria lembrar que durante esse período Olinda era uma cidade isenta dos riscos e temores que mais tarde passaram a percorrer-lhe as ruas e residências. Vivíamos de portas abertas, despreocupados de medidas de proteção hoje obrigatórias. Nas Bertiogas dormi muitas noites na rede pendurada no terraço aberto para a rua. Até com a minha namorada dormi algumas vezes assim, fazendo amor na rede nas noites escuras e desertas.

Foi durante o período em que morei com o Filósofo Desvairado que transitei do grupo “político”, de ordinário reunido na casa de Denis, para o grupo mais jovem proveniente em larga medida do Colégio de Aplicação. A partir daí a tônica passou a ser a vida de dissipação noturna, por vezes diurna, o excesso estendido ao sexo, à bebida, à badalação nos bares, à vida gasta pelo puro e destrutivo prazer da gastança. Esses eram sintomas do vácuo existencial em que nos movíamos  privados de ideal e sonho que imprimissem sentido a nossas vidas. Mas falo provavelmente apenas por mim. Duvido que os outros assim se vissem e assim traduzissem nossa trepidação sem rumo dentro das noites insones.

O Bar Atlântico, depois estigmatizado como Maconhão, foi o grande palco e símbolo desse confuso e espontâneo experimento que pôs pelo avesso valores e angulações culturais e ideológicas expressas em toda a sorte de excesso ali encenado. Ali, numa sucessão de noites febris conturbadas pela droga e a sede desregrada de vida, muita virgem se perdeu (ou se achou), muito marxismo de manual se vestiu de desbunde, muito estetismo existencial rolou sobre as pedras, muita ilusão decadentista afogou-se em ressaca moral, muito sexo se fez e logo se desfez sem escolha ou aderência, não raro também sem gozo verdadeiro. Antes de tudo, o que se vivia e gastava era um teatro da liberação tão fluido e inconsequente quanto conflituoso e incontentado.  Foi talvez sem exagero um grande momento de explosão cultural reprimida por uma longa tradição de família ainda pautada por valores patriarcais. Talvez ainda reação inconsciente contra a ditadura que suprimiu do horizonte rebelde daquela geração todas as vias políticas de efetiva atuação sobre a realidade.  Dali saímos outros com algumas coisas irreparavelmente perdidas e outras tantas ganhas. Eis o que reconheço ser um fecho acaciano para um curto registro de memórias.

Talvez possa redimi-lo, o fecho acaciano, espichando um pouco mais minhas memórias de Olinda. No Maconhão as identidades se faziam e desfaziam como num jogo de máscaras. O machão desmunhecava, ou pelo menos ia às bordas disso quando a droga o desatava das amarras identitárias convencionais. A menininha de família, orgulho casto de pais repressores, rodava a baiana quando ia alta a madrugada. As mais ousadas, já libertas das mordaças familiares, assumiam sua condição lésbica. Aliás, assumir e assumir-se tornaram-se então moeda corrente nas noitadas permissivas de Olinda. O comunista puritano, impenitente inquisidor da moral burguesa, rendia-se docilmente aos prazeres somente concebíveis nos reinos decadentes da burguesia. E assim rodava a roda da vida sem rumo, assim a louca rodava. Nos intervalos líricos, quase surreais, O Filósofo Desvairado vagava com seu coral de bêbados cantando pelas ruas: La notte è piccola per noi / piccola per noi / troppo piccolina. E assim miraculosamente o espírito de Efraim paira sobre o céu noturno das minhas memórias.

Em tudo pulsava a música. Havia sempre a ruidosa, a abafa conversa, mas nunca excessiva e ditatorial como no presente. No Maconhão eu dançava bêbado nos braços das mulheres. Mesmo na radiola de fichas do  Maconhão, antro da marginalidade explodindo na torrente de breguice que hoje nos afoga, ouvia-se muito Chico Buarque, Maria Bethania, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, Gal Costa…Cláudio Ferrário e Pernalonga, narcisos supremos das noites olindenses, desatavam momentos de puro delírio exibicionista ao converterem o rústico salão do Maconhão em palco de dança.

À margem do Maconhão, nosso guia musical era Flávio Brayner, sempre liderando o cordão de bêbados que aportava na casa de Bira e Plínio. Espanta-me hoje recordar a paciência, a tolerância risonha com que nos abriam a porta a qualquer hora da noite. A corrente de bêbados logo tomava-lhes de assalto a casa em cuja sala descansava um piano velho e desafinado. À volta dele e de Flávio Brayner, então ainda pianeiro batedor de martelo, desfiava um repertório que livremente mesclava euforia e dilaceração passional. Esta era sempre associada a Lupicínio. O hino supremo da fossa, esgotada a noite de dissipação, era Ronda, de Vanzolini. Volta, de Lupicínio, transportava-me imaginariamente para os seios arrogantes da musa inacessível, sempre presente a essas farras. Os contornos e  proporções dos seus seios eram um puro milagre da natureza. Dizia-os arrogantes porque chegavam antes dela, antes que o corpo, beleza alongada da cabeça aos pés, entrasse no bar, casa, quarto, ou se convertesse em iluminada aparição deslizando sobre as pedras seculares de Olinda.

Na desmedida de tudo, talvez só o excesso conferisse medida à nossa rebeldia sem objeto. Privados de vínculos significativos que nos ligassem, que imprimissem sentido à festa perpétua, tudo se dissolvia no convívio epidérmico, nas relações sem aderência e sem qualquer sorte de comprometimento. O excesso maior se manifestava na bebida. Bebíamos não mais por prazer. O mesmo valia para o sexo, as drogas com suas variantes. Tudo era possível porque nada tinha conseqüências, nem ninguém de resto as buscava. Talvez de início, quando a festa começava, predominasse outro espírito ou ensaio de vida.  Mas tudo acabava em excesso, em bebedeiras que atravessavam a madrugada, raiavam com o dia e adentravam a manhã até o limite do torpor ou da inconsciência. Vivi anos me dissipando, bebendo e me misturando com gente que nunca teve a mais vaga noção de quem eu fosse. A recíproca, acrescento, era absolutamente verdadeira.

As mulheres. Quanta tontice e insensatez não cometi por elas, às vezes indo pelos becos e vias mais desastradas. Queria vingar em algumas semanas, ou alguns meses de trepidação dentro da noite, anos de repressão e aridez sexual. Mas cheguei como marinheiro de primeira viagem, levado ao sopro de figurações líricas fruídas no erotismo místico de Manuel Bandeira e Murilo Mendes, na tradição da erótica romântica que soava ridícula naquele pega pra capar. Logo minhas investidas tímidas de lírico foram corrompidas pelo metro da caça e da conquista sem aderência ou medida qualquer de amor. O que prevalecia era o sexo pelo sexo, o gozo fugaz e itinerante. Assim me vi às bordas de um donjuanismo de botequim, alienado do amor que tolamente buscava na pura fruição da carne movente. Tanto desci na renúncia à minha mitologia romântica que certa madrugada rolei pelas pedras entre o mar e o Maconhão e de lá foram resgatar-me enquanto gritava ao vento errante da noite: “Sou o devasso. Quero mulheres…” Mais tarde projetei esteticamente essa cena patética no tio louco e manso de Amarcord gritando do alto de uma árvore: Voglio una donna, voglio una donna…

Foi então que o carnaval de Olinda, mero anexo obscuro do de Recife, começou a expandir-se em energia, vibração febril e colorido. Vivi por dentro e desde o início as explosões dionisíacas do carnaval olindense. O Segura a Coisa, por exemplo, que até forneceu título e inspiração a um frevo de Miúcha, começou como criação espontânea de um grupo de boêmios e marginais de Olinda que saíam pelas ruas batendo lata, qualquer tipo de lata. O Eu Acho é Pouco tornou-se em poucos anos a grande concentração carnavalesca de grupos da classe média, antes recifense do que olindense. Um dia, Marta, no esplendor de sua juventude apaixonante, despencou das nuvens e se confundiu com o mar de balões que pairava sobre a massa delirante do bloco concentrado na Praça da Preguiça. Fiquei paralisado, errante entre a embriaguês e a revelação mística. Ela tocou docemente no meu ombro e disse: “Fernando, você é apenas uma criança”. E se foi levitando, dissolvendo-se na paisagem azul dos balões soprados pela massa eufórica. Havia Marta e havia balões naquele tempo. Havia a deusa dos seios arrogantes. Havia sonhos, que eram antes delírios. Havia a arte banalizada em estetização pedestre da vida. Havia amizades que, cedo descobri, acabavam logo que os bares se fechavam. Mesmo ali, no cerne daquela loucura sem método, havia a mulher como fonte perene de minhas figurações míticas e estéticas. Havia tudo que era já poeira ou nisso se converteu.