No quarto, à luz de velas. Era frequente, antes de chegar a energia de Paulo Afonso. A mãe fazia com as mãos figuras de bichos na parede, para distrair os filhos pequenos. Acharam graça, mas a menina se assustou. O irmão viu. Então lhe mostrou a figura colorida de uma mulher que ocupava toda a página de uma revista velha. Meticulosamente, tirou a página e partiu a mulher em duas. A irmã gritou de medo. E ele teve a cumplicidade da mãe para com a diversão de assustar a irmã. “Não está vendo que é só um pedaço de papel?”
Habilidosa, a mãe fazia disputados bichinhos com miolo de pão ao final das refeições. Um dia, melancia à sobremesa, o mesmo irmão teve a ideia de esculpir uma boneca com a casca da melancia. Feita a boneca, olhou para a irmã, e, sem dizer palavra, partiu-a ao meio. Um terror se apoderou da menina. Saiu correndo da mesa, ele a lhe perseguir com a boneca partida.
O pai convoca os irmãos de volta à mesa. Repreende-o e chama a filha para junto de si. Quando vai lhe mostrar que aquilo é apenas um pedaço de melancia e pede para ela segurar, a menina começa a tremer de medo. O pai desiste da lição e apenas recomenda ao filho para não fazer mais isso até que a irmã ficasse moça feita. De pouco adiantou a recomendação.
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Uma escola nova na cidade. Gente conhecida do pai. Era uma casa antiga com enorme área na frente e nos oitões. Árvores, terreiro batido, um quintal de verdade. O pai vai matricular o filho de cinco anos e a filha de quatro. Vai com os dois para falar com dona Isabel. O filho foi correr e subir nas árvores. A filha, quietinha ao lado do pai. A dona de escola canta para ela “bonequinha linda, dos cabelos louros”.
No começo, Dona Auxiliadora, ainda estudante do curso Pedagógico e já professora, lhe pedia para desenhar o vestido de sua formatura. Estrelas, sol, céu, árvores, todas as coisas bonitas do mundo enfeitavam os vestidos desenhados. E a menina acreditava que a professora escolheria o mais bonito para seu modelo. Esse encantamento a acompanharia pelo resto da vida, toda vez que sentisse o cheiro de lápis de cor nas papelarias.
O fantasma do medo, porém, voltou mais forte na escola.
O irmão não parava de conversar na aula. Dona Auxiliadora era suave e não castigava. Apenas ameaçava, possivelmente em tom de brincadeira. Dizia que ia colar a boca dele com esparadrapo. Ele não se importava, devia compreender. A menina não. Pensava que era de verdade e o irmão não ia poder falar mais nunca. Ficava pedindo para o anjo da guarda protegê-lo.
Ao medo se juntava a timidez. A menina não tinha coragem de pedir à professora para ir ao “quartinho”. Para ela, uma cerimônia: levantar o braço para chamar a professora; dizer que queria ir ao quartinho; a professora olhar se a pedra estava em cima da mesa. Sem coragem de iniciar o primeiro ato, de levantar a mão, a menina ficava aliviada quando pediam na sua frente. Adiava a vergonha. Até que, não aguentando mais, fazia xixi na calça.
Para ir à escola, o pai ou a mãe atravessava os dois para o outro lado da rua. Seguiam sozinhos quatro quarteirões, na mesma rua, com a recomendação expressa: vá segurando a mão de sua irmã. Era a vez dele ficar morrendo de vergonha e com muita raiva das filhas do dono da padaria, que vinham até o portão para ver os noivinhos. “Ela não é minha noiva! É minha irmã!”
A velha casa ainda está lá. Onde estarão os personagens dessa escola? Dona Isabel, de quem a menina tem uma lembrança de avó trocando a calcinha molhada por uma enxuta, que a mãe tinha o cuidado de mandar na lancheira. Os dois filhos de dona Isabel, que faziam o papel do caça gazeteiro das histórias de Bolinha. O marido, que veio uma vez contar para os alunos os horrores da II Guerra, onde ele comera até sola de sapato. E Dona Auxiliadora, que a menina achava parecida com uma princesa.
De Educandário Nossa Senhora Auxiliadora, logo passou a ser Instituto São José. Até hoje. Uma escola estadual onde a menina continuou estudando até concluir o curso primário.
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Quando, em 1968, os policiais cercaram a Igreja do Espírito Santo na Praça Dezessete no Recife, para espancar e prender os que saiam de uma missa em memória do estudante carioca Edson Luiz, que havia sido baleado e morto pela polícia da Ditadura, foi o irmão quem protegeu a moça feita. Aproximou-se dela na hora do perigo, e, já na Rua Duque de Caxias, com o braço em seu ombro, interrompeu o cassetete do policial. “Não está vendo que estou aqui fazendo compras com a minha mulher?” “Desculpe, doutor.”
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