O certo seria chamá-los pelo nome. Mas é muito mais bonito bondes. Principalmente porque eram amarelos. Já viu como perde todo encanto nomear uma crônica “ônibus elétricos”? Lembrei-me de um depoimento de Ariano Suassuna, ao ser questionado por um jornalista impertinente, por que sua opção monárquica. Uma questão de estética, dizia ele. Onde já se viu começar uma história: “era uma vez um presidente da república?”.
Afinal os ônibus elétricos não passavam de modernos bondes, postos a funcionar pela cabeça e não pelos pés.
Eu passava uns dias no Recife com minha irmã, Rosa, na Casa da Universitária na Avenida Portugal. Estudante ginasiana em Garanhuns, esse era um dos meus melhores programas no Recife. Aproveitava a cama de alguém de férias e ficava me achando, no meio de universitárias. Ainda não conhecia o Recife o suficiente para sair sozinha e também era medrosa. Os livros me acompanhavam enquanto esperava uma folga da irmã.
Naquele dia ela tinha algo para resolver no roteiro dos novos ônibus elétricos e me levou para conhecer. Lembrava-me o bonde amarelo de um livro de histórias de minha infância. Dentro, um cheiro bom de novo. No meio da manhã, não eram muitos os passageiros.
O silêncio (naquele tempo existia silêncio) foi quebrado por uma discussão entre cobrador e passageiro. Estávamos sentadas junto à borboleta. Aconteceu então o inevitável, em se tratando de minha irmã. Ela entrou na discussão em favor do passageiro. Ele estava sendo impedido de passar na borboleta, mesmo tendo o dinheiro para pagar, porque descalço.
“O senhor não pode impedir este cidadão de andar de ônibus só porque está descalço. O projeto de transporte urbano da prefeitura de Dr. Pelópidas Silveira foi para uso do povo. Passe, meu senhor”. O cobrador dizia estar cumprindo ordens e o motorista na frente falava alto em seu favor. Com pouco, os passageiros se dividiam entre os que eram a favor e contra o cobrador. E minha irmã não arredava pé.
O tempo passando, o ônibus parado, até que o motorista decidiu: “vamos todos até a garagem” (estávamos próximos dela) “para resolver lá com quem decide”. Parecia uma assembleia com dois partidos, cada um levantando argumentos a seu favor. O pobre homem, logo que viu a confusão formada, implorava para descer. Mas agora não era somente minha irmã. Era um time a seu favor, que não deixou.
Conhecido por receber com regularidade o cidadão comum em seu gabinete na prefeitura, alguns passageiros a favor do homem já ameaçavam ir até o prefeito, mas o popular não desceria do ônibus. Não precisou. O litígio foi resolvido na garagem, a favor do homem descalço, por um chefe sensato o suficiente para não deixar a confusão chegar ao prefeito.
Eu já era estudante universitária, morando no bairro de Casa Forte, no Recife, continuavam os ônibus elétricos circulando. A linha de ônibus que servia Casa Forte era a de Dois Irmãos, com velhos ônibus fazendo o mesmo roteiro dos trilhos dos verdadeiros bondes que não alcancei. Era uma linha muito mal servida e às vezes eu voltava para casa no ônibus elétrico de Casa Amarela. Compensava caminhar pela Estrada das Ubaias, que liga os dois bairros, em vez de ficar parada no ponto esperando.
Aqui entra a outra história minha com os ônibus elétricos. Já começavam eles a ficar cansados, talvez por falta de manutenção. Paravam de repente e ouvia-se a gritaria da molecada: motorista, soltou a banana. A operação era simples. Bastava colocar os dois cabos de volta aos fios elétricos.
Era a quarta feira de cinzas do carnaval de 1968. Eu vinha de uns dias de “retiro revolucionário”: discussões infindáveis para traçar estratégias e táticas de atuação da Ação Popular na política estudantil. Na Av. Guararapes, um prenúncio de que a linha de Dois Irmãos iria demorar uma infinidade: acabara de sair um ônibus. No outro lado da avenida, lá estava já no ponto o de Casa Amarela. Foi só atravessar a rua. Fui das primeiras a entrar. Num dos bancos que ficavam antes da borboleta, alguém deixara uma marmita com uma dentadura completa em cima.
Vocês podem imaginar, numa quarta feira de cinzas, o que cada passageiro que entrava no ônibus e necessariamente passava pelo quadro surrealista, exclamava! A melhor: “eita, o cabra tomou todas, brincou tanto, que esqueceu aqui o sorriso”.
Ótimo, Teresa.
Parabéns.
Ótimas reminiscências, Teresa.
Lembro, sim, dos elétricos, das bananas que caiam e da lentidão dos mesmos,da zoada que faziam quando passavam pelas conexões, porém largos e confortáveis.
Também morava em Casa Forte e penava com os dois únicos ônibus da linha de Dois Irmãos. Não havia horário certo para passarem pela 17 de agosto e se os perdíamos, tínhamos que fazer o longo percurso até chegar no terminal de Casa Amarela onde apanhávamos, ou o elétrico, ou as lotações nas quais íamos sentados, com aquele motor barulhento que mais parecia uma usina a moer cana. E o cheiro de combustível que inalávamos….
Sua Crônica lembrou meu saudoso irmão que, certo dia,tinha 16 anos, chegou em casa com a camisa aos frangalhos por ter brigado com um cobrador que maltratara um passageiro idoso. Depois de troca de sopapos e da falta de solidariedade por parte dos assustados passageiros, ele contou com a interferência do motorista que resolveu, a contento, a contenda. Resultado: uma camisa esfarrapada, um olho roxo, mas com a vitória e o sentimento de haver cumprido o dever de cidadão, que era uma sua marca pessoal.
Lembrei também dos bondinhos de Lisboa, também amarelos, que não deixo de pegar quando em Lisboa. Subo e desço as ladeiras, como se eu mesma fizesse parte daquela amada cidade. È passeio imperdível que repetirei, mais uma vez no final desta semana, com a mesma emoção de quando os usei pela primeira vez. bjs e muito grata pelas lembranças trazidas.
Teresa
Concordo totalmente com você na preferência pela palavra bonde!
Coincidentemente, um pouquinho antes de ler sua crônica, deparei-me com bondes e quase fui atropelada. Comentava com uma colega como o tema de Jasmine, recente filme de Woody Allen retomava a peça de Tennessee Williams, A Streetcar named Desire. Ao verificar se esta já existia disponível para leitura on-line, descobri que havia duas traduções diferentes. No Brasil, a peça – e o filme nela baseado, dirigido por Elia Kazan e com um Marlon Brando lindo de arrepiar – intitularam-se Um Bonde chamado Desejo. Mas, em Portugal, ambos receberam o título de “Um Eléctrico Chamado Desejo”.
Como você, sou mais o Bonde!