Na Avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antônio,
tanto se foi transformando
que, agora, às cinco da tarde
mais se assemelha a um festim,
nas mesas do bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.
(Carlos Pena Filho)
Eram seis horas da noite de uma terça feira de julho de 1956. A chuva fina e intermitente que molhava ruas e calçadas marcava o final do expediente, com guarda- chuvas a se atrapalharem uns nos outros. João chegou antes e foi cumprimentado por vários que o convidaram para sentar à mesa. Ele preferiu uma ainda não ocupada, para o tão esperado encontro com Josué.
Nas trocas de telegramas e difíceis telefonemas, conseguiram definir dia e local. Josué de Castro era então deputado federal por Pernambuco, pelo PTB, licenciado para assumir a presidência da FAO em Roma. João Cabral de Melo Neto, poeta e diplomata, havia sido nomeado Cônsul Adjunto em Barcelona. Estava morando em Sevilha, para realizar uma pesquisa histórica no Arquivo das Índias.
João Cabral vestia um terno branco. Cabelo escuro e repartido de lado, com seu ar sério e compenetrado, porém de sorriso aberto para os que o reconheceram. Josué de Castro chegou logo em seguida, igualmente elegante em seu terno escuro. Aparentava mais formal, usando óculos e cabelos penteados com rigor. Não foi difícil reconhecer João Cabral, porém seu périplo até a mesa foi mais difícil, cumprimentando uns e outros. Cumprimentou o poeta diplomata apenas com um aperto de mão. O abraço dos dois aconteceu na despedida.
O que teriam conversado o médico-sociólogo e o poeta? Em outra cadeira da mesa, com chapéus e guardas-chuvas dos dois, um terceiro personagem, motivo do encontro: a cidade do Recife.
João Cabral de Melo Neto já havia publicado a trilogia sobre o Rio Capibaribe (O Cão sem Plumas; O Rio; Morte e Vida Severina) e outros de seus poemas sobre o Recife. Josué de Castro, antes dele e com menos repercussão, também escrevera sobre o Recife. Os primeiros escritos, entre 1935 e 1937, foram a semente para o ensaio Fatores de Localização da cidade do Recife, publicado em 1948.
Mais velho, Josué de Castro (quarenta e oito anos) vinha acompanhando a poesia de João Cabral desde O cão sem plumas. João Cabral (trinta e seis anos), porém, só conhecia de Josué de Castro seu livro mais famoso, Geografia da Fome. Ao acaso, na biblioteca da Faculdade de Direito do Recife, onde estava complementando a pesquisa histórica principiada no Arquivo das Índias em Sevilha, João Cabral acabara de ler os ensaios de Josué de Castro sobre o Recife. Tinha urgência no encontro. Como escrevera o tríptico do rio Capibaribe sem ter passado por Josué de Castro? Este, por sua vez, não mediu esforços para que o diálogo acontecesse.
A conversa se prolongou até o último garçom. Nunca tinham se encontrado pessoalmente. Sabiam um do outro apenas pelos escritos. Mesmo sendo Josué um grande missivista, nem sequer chegaram a se corresponder.
Ninguém soube o que conversaram. Nenhum dos dois publicou nada a respeito desse encontro.
Na mesa vizinha, porém, um jovem de vinte e nove anos ouvia com muita atenção a conversa. Joaquim Roberto Corrêa Freire, ou simplesmente Roberto Freire, médico formado pela Universidade do Brasil, a mesma onde se formara médico Josué de Castro, trabalhara como bolsista do Brasil no exterior de 1948 a 1954. Sua trajetória de vida tinha algo de semelhante à de Josué de Castro: abandonara a carreira de médico, depois de publicar artigos sobre endocrinologia experimental em revistas especializadas brasileiras e francesas, para se dedicar a outras áreas.
Naquele dia do histórico encontro entre João Cabral e Josué de Castro, Roberto Freire estava no Recife por um par de dias para fazer a cobertura de um evento para o jornal onde trabalhava. O Recife de então fervilhava na vida cultural e política. Roberto Freire não era ainda o psicanalista inovador, o dramaturgo, o escritor que ficaria conhecido em todo o Brasil. Disfarçava a bisbilhotice “lendo” o Diário de Pernambuco, que pousava com frequência na mesa para mais um gole de chope e para observar melhor a fisionomia dos dois. Fez anotações à margem do jornal e guardou, vislumbrando que um dia seriam úteis.
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O grupo teatral da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o TUCA, não encenaria Morte e Vida Severina sem ler, estudar e discutir o poema de João Cabral e parte da obra de Josué de Castro. Fizeram eles o segundo encontro dos dois, em 1965, sob a liderança de Roberto Freire. Tão forte foi o diálogo João/Josué propiciado pelo TUCA, que toda cobertura jornalística da peça no exterior reproduziu trechos de Josué de Castro para explicar o poema de João Cabral.
[1]Parte da Introdução do meu livro João Cabral e Josué de Castro conversam sobre o Recife, no prelo pela Cortez Editora, São Paulo.
Teresa:
Fascinante este registro que você narra em tom de crônica de um encontro tão importante e ignorado. Além de reunir duas personagens fundamentais da história cultural e política do Brasil em meados do século passado, acrescenta uma testemunha e participante da história daquele período. Refiro-me, claro, a Roberto Freire, autor do romance Cléo e Daniel e vários outros livros que fertilizaram minha imaginação existencial e a de muita gente da minha geração.
Oi Fernando,
O encontro é ficção. Deixo que responda ao teu comentário Renata Pimentel, que escreveu o prefácio do livro:
“Estamos diante do encontro que parecia inevitável de tão afinados os olhares que aqui se põem na mesma mesa: se for rio de Recife, é sinal de poesia, mas também de todo um universo social e de entorno de uma cidade que se ergueu às margens de dois grandes rios (Capibaribe e Beberibe) e sobre imensas áreas de aterro de mangue, esse microuniverso tão particular.
E mais, estamos diante do encontro entre a leitora-autora Teresa Sales e sua pessoal história da leitura, que põe outra ordem na história, inserindo um episódio que nela faltava: o encontro pessoal e amistoso, para uma boa prosa, entre o poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto e o médico, geógrafo e político Josué de Castro, no famoso e infelizmente extinto Bar Savoy (na Av. Guararapes, centro do Recife: reduto de boemia e de encontros culturais e poéticos, palco dos versos de Carlos Pena Filho, outro grande poeta recifense), sob os atentos olhares e ouvidos de ‘voyeur’ do dramaturgo e diretor de teatro Roberto Freire.”
Teresa: o fato de você me persuadir de que a ficção era realidade é uma evidência do quanto é convincente sua reinvenção ficcional de um certo momento da vida cultural do Recife. Meu engano, portanto, ou minha ignorância, acaba sendo uma forma involuntária de elogio.
Tão interessante que chega a ser fascinante.
Teresa. Você não imagina como seu texto me emocionou. Lição, pois nada sabia desse encontro. O relato mexe com o coração, pois nos leva a pensar o que teria sido esse papo, humanamente e intelectualmente. Achei incrível você ter ilustrado seu texto com o Renoir. Não é que o Moulin de la Galette combinou com o Savoy?
Beijo carinhoso
Naza
Viva a escritora que constroi essa ficção emocionante e convincente. Não houve mas poderia ter havido. Valeu!! Naza
Então não foi verdade, amiga Teresa? Mas parecia tanto! Como v. foi convincente!
Preciso ver o resto da história, leitor e admirador que fui e sou dos dois personagens principais, em seus campos de atividade, igualmente nobres.
Não digo o mesmo do terceiro – o observador furtivo – que, pelo pouco que li dele, não coloco no mesmo plano dos dois notáveis pernambucanos.