Ele havia chegado de uma caçada. Mal esperou para me pegar e ficar brincando comigo, me arremessando com segurança no ar, para logo depois me apanhar. Ele, deitado no sofá azul e eu, aos dois anos, em êxtase, invadido por uma alegria incontida de estar voando—amparado pela sua força, que aos meus olhos, parecia infinita.
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Lembro-me dele me conduzindo até a fazenda Cachoeira das Onças. O meio de transporte era a sua bicicleta Hércules. Eu ia, ainda pequeno, três ou quatro anos, sentado num banquinho especial que ficava instalado no quadro. Esse banquinho era de madeira e zinco, especialmente desenhado por ele e mandado fazer por habilidoso marceneiro. A posição onde o banco era instalado possibilitava, em caso de um buraco ou tropeço qualquer da bicicleta, seus braços me segurarem de imediato. Portanto, era um esquema bastante seguro. É intensa a sensação de alegria e proteção de estar sendo apresentado ao mundo, através do meu pai. O clima frio e gostoso, o cheiro do mato orvalhado, os pés de avelós utilizados como cerca. Tudo era encantamento e excitação dentro de mim, garantido por uma áurea invisível, naquele momento, que era o amor, a proteção desse pai justo e bom.
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Aos domingos, ele costumava ficar conversando na porta da Igreja, e eu, com cinco ou seis anos, ficava ao seu lado, por alguns instantes, para depois entrar onde minha mãe, contrita, com lenço na cabeça, rezava. Creio que a missa em latim era um belo pretexto para não se envolver neste ritual litúrgico, além do mais, o que ele mais gostava na vida era de uma boa conversa com os amigos. Acho até que era essa sua verdadeira religião— fazer e cultivar amigos. Após a missa, saíamos andando até um engraxate na calçada, próximo à farmácia, que ficava na esquina da rua onde tinha a loja de ferragens dos Vilanova. Ao lado do engraxate, onde meu pai ficava lendo o jornal enquanto tinha seus sapatos polidos, havia uma banca de revistas. Nela, excitado, escolhia a mais nova revista em quadrinhos daquela semana. Lembro ainda do cheiro da tinta: Luluzinha, Bolinha, Pimentinha ou O Príncipe Valente—esta era a que ele mais gostava. E aí, vestido com minha roupa de domingo, sentava ao seu lado me deleitando com a revista sentindo-me absolutamente envolvido pela atmosfera de proteção que ele me transmitia. O mundo, naquele momento, era apenas nós dois.
Repeti muitas vezes, na adolescência e na vida adulta, já morando no Recife, após a sua morte, este hábito de engraxar os sapatos lendo alguma coisa. O local era no centro da cidade do Recife, na calçada do Bar Savoy—sempre invadido por um sentimento de completude diante da vida.
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Me deslumbrava vendo aquele velho aparelho de barbear utilizado por ele com exímia precisão. A lâmina passeava em seu rosto, abrindo estranhos caminhos no meio daquela espuma. Este ritual só acabava quando não restava mais nenhum traço de espuma. O espelho era desse simples, de feira mesmo. Ficava acima de uma pequena pia que, ao lado de uma mesa rústica, junto com a geladeira e seu urso polar, compunham nossa copa. Creio que tinha uns cinco anos e gostava de ficar ao seu lado enquanto se barbeava. Eu morria de rir quando, sem aviso, ele passava o pincel com espuma em meu bigode. Me invade, neste momento, o cheiro da espuma e a suavidade do seu gesto em meu rosto. Havia um estojo onde guardava os apetrechos da Gilette para fazer a barba. A Loção Bozzano era espargida sem economia nas bochechas, para, ato contínuo, bater repetidas vezes com as palmas da mão espalhando o perfume e, creio, ajudando a cicatrizar possíveis ferimentos. Da cozinha vinha o cheiro de café, passando no coador de pano, nos invadindo o espírito. Na mesa, cuscuz com leite e carne de sol, cará e requeijão feito com a nata do leite da fazenda. O pão francês quentinho da Padaria de Seu João Rosa, com a manteiga Turvo derretendo pelas bordas, completava a mesa. Do rádio, que ficava ao lado do espelho sobre uma pequena tábua, ouvia-se, religiosamente, o engraçado locutor com carregado sotaque de matuto gritando a batendo um chocalho de boi “Blém, blém, blém, acooorda minha gente! É hora de trabalhar! Seis e meia! Aceeertem o seu roscofi! Seu fulano – e chamava pelo nome do ouvinte, numa perfeita interatividade pré internet — você ainda está de pijama? Sicrano, levanta que o dia hoje promete!”. Lá fora, o frio matinal de Caruaru testemunhava Chora Menino chegando com sua perna mancando, carregando nos ombros, firmemente penduradas por um grosso pau, duas latas enormes e fumegantes de mungunzá. Uma de cada lado—como se ele fosse uma balança.
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Setembro, 2014
Muito bom João. Parabéns pelo pai e pela crônica!
João é muito bom reviver estas historias do passado, obrigado por compartilhar. O meu sentimento é o mesmo.
Muito bom compartilhar. É quase igual a nossa infância também. O locutor que nos acordava com chocalho de boi era o Jader Borges. (se não me engano)
Excelente crônica, você descreve tão bem as situações que ao lê vamos vivenciando como se fora agora. Parabéns. Muito gostoso de lê.
Quanta sensibilidade, que crônica mais linda. Lá em cima o nosso Lila deve estar dando aquele riso simpãtico, cheio de orgulho. Valeu João. Parabéns!
Belississima crônica, Escrita com grande sensibilidade e poesia. Um hino ao amor verdadeiro de pai e filhos.
Comentário
Delícia de texto João. Uma leitura que se sente
Eu me lembro exatamente das mesmas memórias quando você escreve.
Estas memórias são cheia de carinho e de amor que eu ainda sinto em volta de mim.O amor de pai e de mãe e eterno.
Obrigada João.
João,
Nessa madrugada fria de Trier, horas antes de voar de volta para o Brasil, o título “Pai” me chamou a atenção e comecei a ler teu texto. Pois bem, curtí cada cena e senti aqui o cheiro do orvalho, da loção de barba e dos acepipes do café da manhã. Eu também adorava a brincadeira com o pincel de espuma e não se inventou melhor sonoplastia para o café da manhã do que uma boa rádio AM com um locutor histriônico e engraçado. Ainda existe? Por fim, somos dois a gostar de nos aboletar numa autêntica cadeira de engraxate e ler o noticiário leve do dia. O problema é que os poucos engraxates de ofício de hoje, de tão carentes que são de uma prosa antiga, não deixam mais a gente ler. Pensando bem, é melhor ouvi-los. Gostei também do tom. Uma confissão: vou morrer sem entender essa cruzada contra a narrativa na primeira pessoa. Em certos meios é tido como prática herética. Mas essa é outra história.
Um abraço,
Fernando Dourado