João Rego

Pai e filha – by Karl Wilhelm Friedrich Bauerle.

Pai e filha – by Karl Wilhelm Friedrich Bauerle.

Ele havia chegado de uma caçada. Mal esperou para me pegar e ficar brincando comigo, me arremessando com segurança no ar, para logo depois me apanhar. Ele, deitado no sofá azul e eu, aos dois anos, em êxtase, invadido por uma alegria incontida de estar voando—amparado pela sua força, que aos meus olhos, parecia infinita.

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Lembro-me dele me conduzindo até a fazenda Cachoeira das Onças. O meio de transporte era a sua bicicleta Hércules. Eu ia, ainda pequeno, três ou quatro anos, sentado num banquinho especial que ficava instalado no quadro. Esse banquinho era de madeira e zinco, especialmente desenhado por ele e mandado fazer por habilidoso marceneiro. A posição onde o banco era instalado possibilitava, em caso de um buraco ou tropeço qualquer da bicicleta, seus braços me segurarem de imediato. Portanto, era um esquema bastante seguro. É intensa a sensação de alegria e proteção de estar sendo apresentado ao mundo, através do meu pai. O clima frio e gostoso, o cheiro do mato orvalhado, os pés de avelós utilizados como cerca. Tudo era encantamento e excitação dentro de mim, garantido por uma áurea invisível, naquele momento, que era o amor, a proteção desse pai justo e bom.

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Aos domingos, ele costumava ficar conversando na porta da Igreja, e eu, com cinco ou seis anos, ficava ao seu lado, por alguns instantes, para depois entrar onde minha mãe, contrita, com lenço na cabeça, rezava. Creio que a missa em latim era um belo pretexto para não se envolver neste ritual litúrgico, além do mais, o que ele mais gostava na vida era de uma boa conversa com os amigos. Acho até que era essa sua verdadeira religião— fazer e cultivar amigos. Após a missa, saíamos andando até um engraxate na calçada, próximo à farmácia, que ficava na esquina da rua onde tinha a loja de ferragens dos Vilanova. Ao lado do engraxate, onde meu pai ficava lendo o jornal enquanto tinha seus sapatos polidos, havia uma banca de revistas. Nela, excitado, escolhia a mais nova revista em quadrinhos daquela semana. Lembro ainda do cheiro da tinta: Luluzinha, Bolinha, Pimentinha ou O Príncipe Valente—esta era a que ele mais gostava. E aí, vestido com minha roupa de domingo, sentava ao seu lado me deleitando com a revista sentindo-me absolutamente envolvido pela atmosfera de proteção que ele me transmitia. O mundo, naquele momento, era apenas nós dois.

Repeti muitas vezes, na adolescência e na vida adulta, já morando no Recife, após a sua morte, este hábito de engraxar os sapatos lendo alguma coisa. O local era no centro da cidade do Recife, na calçada do Bar Savoy—sempre invadido por um sentimento de completude diante da vida.

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Me deslumbrava vendo aquele velho aparelho de barbear utilizado por ele com exímia precisão. A lâmina passeava em seu rosto, abrindo estranhos caminhos no meio daquela espuma. Este ritual só acabava quando não restava mais nenhum traço de espuma. O espelho era desse simples, de feira mesmo. Ficava acima de uma pequena pia que, ao lado de uma mesa rústica, junto com a geladeira e seu urso polar, compunham nossa copa. Creio que tinha uns cinco anos e gostava de ficar ao seu lado enquanto se barbeava. Eu morria de rir quando, sem aviso, ele passava o pincel com espuma em meu bigode. Me invade, neste momento, o cheiro da espuma e a suavidade do seu gesto em meu rosto. Havia um estojo onde guardava os apetrechos da Gilette para fazer a barba. A Loção Bozzano era espargida sem economia nas bochechas, para, ato contínuo, bater repetidas vezes com as palmas da mão espalhando o perfume e, creio, ajudando a cicatrizar possíveis ferimentos. Da cozinha vinha o cheiro de café, passando no coador de pano, nos invadindo o espírito. Na mesa, cuscuz com leite e carne de sol, cará e requeijão feito com a nata do leite da fazenda. O pão francês quentinho da Padaria de Seu João Rosa, com a manteiga Turvo derretendo pelas bordas, completava a mesa. Do rádio, que ficava ao lado do espelho sobre uma pequena tábua, ouvia-se, religiosamente, o engraçado locutor com carregado sotaque de matuto gritando a batendo um chocalho de boi “Blém, blém, blém, acooorda minha gente! É hora de trabalhar! Seis e meia! Aceeertem o seu roscofi! Seu fulano – e chamava pelo nome do ouvinte, numa perfeita interatividade pré internet — você ainda está de pijama? Sicrano, levanta que o dia hoje promete!”. Lá fora, o frio matinal de Caruaru testemunhava Chora Menino chegando com sua perna mancando, carregando nos ombros, firmemente penduradas por um grosso pau, duas latas enormes e fumegantes de mungunzá. Uma de cada lado—como se ele fosse uma balança.

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Setembro, 2014