Planeta Marte.

 

Acho que a feiura comove tanto quanto a beleza extrema. No caso de Marte, a desolação da paisagem e a familiaridade dos sons nos remetem a uma solidão ancestral. É como se estivéssemos perdidos no Saara, num wadi do Sinai, num descampado do Arizona, nos confins do deserto de Gobi. O sopro do vento impressiona mais ainda porque há a expectativa de que a qualquer momento possa ser quebrado pelo desconhecido. Por outro lado, naquela vastidão sem almas à volta, já não tenho expectativa de que o carro que colocamos lá capte a imagem de algum hominídeo a caminho do trabalho que, surpreendido pelo inusitado da aparição, chame a polícia deles para averiguar o que podia ser aquilo ou acione o alerta máximo. Será que vou ver em meu tempo de vida o homem pisar em Marte? É provável que não. Mas lembro do dia em que Neil Armstrong pisou na lua. Era tão humano aquilo, tão tocante. Só há poucos anos soube do detalhe da pulseirinha. Tendo perdido a filhinha Muffy para um câncer, Neil teria levado para o Mar da Tranquilidade a pulseirinha de ouro que Muffy usou em sua curta vida. Estando na lua, arremessou-a – vendo que ficou borboleteando no ar por causa da baixa gravidade. O que marcará os passos do primeiro terráqueo a desembarcar em Marte? Eu sei bem o que deixaria como marco de minha passagem: fotos de Garanhuns, um CD com frevos de Capiba, um teste de gravidez usado, uma camisa do Náutico, um retrato de mamãe e um bilhete de próprio punho alternando frases em várias línguas.

Parto do princípio de que se fosse voluntário para uma missão sem volta, eu teria umas regalias de emissário especial, de kamikaze do espaço. Mesmo tendo recebido um cheque de U$100 milhões só de Bill Gates para doar como quisesse, faria jus a tratamento VIP até o último suspiro. Assim, despertaria na nave com gorjeios de pássaros da Amazônia projetados em tela tridimensional. Os rituais matinais seriam resolvidos pela tecnologia – dentes sem escovação, chuveiro virtual e até fisioterapia robotizada, para as flexões das pernas e braços. Não sei como farão, mas gosto de 2 ovos com gema dura, fritos em manteiga da Normandia, com bacon canadense. Torradas fresquinhas e iogurte bio dos Alpes com mel da Córsega pedem de complemento uma xícara de café Blue Mountain, da Jamaica. Desço então para um passeio lá fora. Com o equipamento ajustado, posso ir a pé ou motorizado, com um drone me sobrevoando a prudente distância para um resgate de emergência em caso de chuva de meteoritos. Perto do meio-dia, fecho o malote, anoto a data e as coordenadas GPS das rochas interessantes e dou o dia por encerrado. Como em toda embaixada, só trabalho 90 minutos, três dias por semana.

Subo então para ver as notícias da Terra. Vou me servir de uma flûte de champagne Grande Dame e de dois blinis com caviar sevruga. À mesa, uma releitura liofilizada de rabada com agrião. Depois de uma sesta de 20 minutos, ouço em áudio-book D. Quixote, de Cervantes. Inspirado pela força do exemplo, mas sem Rocinante nem Dulcineia para me motivar, volto ao solo marciano e vou conduzir experimentos, alguns de minha autoria. Com o pouco de líquido que meu corpo vai produzir, vou fazer uma floresta. Planto uma palmeira e só urino onde estão as sementes, sem risco de autuação por atentado ao pudor. É como se tudo fosse um Carnaval em Olinda. Isso feito, vou me escorar num montículo e ver a Terra à distância. E então vou gritar: “Eu tenho um planeta só para mim. Marte é meu. Eu consegui. Quem de vocês pode dizer isso?” E então virá aquele eco “isso, isso, isso…” E quando pensar que aquela rotina jamais mudará e que ninguém terá notícia de que tenho tanto poder, talvez sinta um frêmito de ansiedade, Houston vai então recorrer ao protocolo 15 e decidirá que por hoje basta. Então os médicos me sedam e eu vou dormir mais cedo. Antes de fechar os olhos, ouço um arranjo sinfônico de “Asa Branca”.

E se reunida em Houston, a Nasa optar por minha volta? “Isso não estava nos planos. O que houve?” Muito tinha mudado desde o ataque nuclear norte-coreano a Los Angeles. “Precisamos de você. Seus indicadores demonstram rejuvenescimento acelerado, mudanças metabólicas que sinalizam que Marte é nossa futura morada.” Fico revoltado. Mas se não obedecer, eles podem me matar. “Se Marte é a futura morada ou não, é comigo que vocês têm de tratar. Pelo tempo de residência, esse planeta é meu.” Sem minha vontade, se eu me recusasse a seguir o protocolo 30, que previa o retorno não previsto, ficaria lá indefinidamente. “A ordem será acatada. Passo em breve data de retorno.” Eu não queria voltar. O que iria fazer num planeta devastado? Quem do passado tinha sobrevivido na minha memória afetiva? Eu estava programado para o desapego, para a solidão. Agora teria que enfrentar quarentena de retorno. Passada ela, ouviria aquele monte de vozes, talvez até tivesse que ir a uma festa infantil – mil vezes pior do que a morte. E depois de tanto ver a Terra à distância, de entender a nossa insignificância num universo infinito, eu ia servir de palanque para embusteiros. Justamente eu que amo os amanheceres áridos, a vida impessoal, a leitura solitária das grandes obras num cenário imune a rapapés de vida social e comunitária?

“Volte, você vai gostar, aqui é o seu lugar. Está tudo ruim, mas a força de nossa união torna essa provação mais suportável.” Que horror me inspira esse visgo humano, a confraternização tribal em torno de comemorações, eleições e triunfos inglórios. Quando saí, a versão 28 de um vírus que começou com o número 19 fazia estragos. Hoje já é Covid-72. O que esperar desse mundo? Take it easy, Houston. Let me juts finish a few things before going back. E então comecei a escrever um livro novo. Dessa vez falando da expectativa ruim que tinha para o retorno. Quando eles me dissessem para voltar, eu responderia que não me pedissem para sair com trabalho inconcluso. E assim ganharia umas semanas, uns meses, quem sabe mais um ano, talvez dois ou três? Com sorte, eles poderiam até me esquecer.