Fernando Dourado

Cena do Filme Falling – Adriano Cirulli.

Cena do Filme Falling – Adriano Cirulli.

Um indício do quão afinado está um casal pode ser medido no bufê do café da manhã do hotel. Quando ambos passaram uma noite intensa, e, inevitavelmente, despertaram fundidos numa anatomia sem pé nem cabeça, o balé que dançarão no salão do restaurante é um “pas-de-deux” que obedece a pontos claros de marcação. Enquanto ela se serve de cereais com frutas secas, eis que ele atravessará o recinto confiantemente – achando que ninguém o observa – e estaciona bem ao lado da amada, desviando a rota da mesinha de queijos. Fará isso só para, discretamente, deslizar-lhe as costas da mão nas nádegas, procurando com a ponta das unhas uma fonte de calor. Despejando leite na tigela, ela sorrirá e, enlevada, ronronará. “Stop it, please” – assim mesmo, em inglês.

Se for latina, fará um ar maroto, insinuando que tanta provocação é covardia; que isso não se faz com quem está de mãos ocupadas e, a continuar nesse diapasão, ela vai derrubar a cuia e ambos darão vexame. Ele, em última instância, terá sido o culpado. Sendo oriental, a reação é distinta. Uma japonesa corará e olhará em volta. Baixinho, dirá: “Shotto mate, kudasai”. Coreanas e chinesas, rápidas, lhe darão um leve cocorote nas falanges e tailandesas ficariam tão afogueadas que precisariam borrifar água no rosto no banheiro. Já filipinas nada diriam. Até escandinavas, tidas por arredias, se entregariam à dança com despudor e aflorado prazer. Alemães serão pragmáticas: calma, agora a comida é a que está na mesa. Reponhamos as energias: “Gesundheit ist doch alles”.

Mas o mesmo pode se dar quando ele, agora a vítima feliz do assédio, estiver debruçado sobre o “réchaud” de três compartimentos, ocupado em se servir de ovos mexidos, cogumelos refogados e lâminas sequinhas de bacon. Então, virá a desforra. Chegando por trás, na surdina, ela o abraçará pela cintura como quem o tivesse visto por acaso. Então ele sorrirá com a mesma bonomia e se sentirá tão poderoso quanto um leão soberano na savana, contemplando fêmeas dispostas a lhe saciar os caprichos. “Salope”, murmurará se um dos dois for francês. Em suma, a todo momento o casal trocará sinais não-verbais de que um não fica sem o outro; que querem se engolir ao primeiro sinal de privacidade, longe daquela malta intrusa e burocrática – feita de comilões que não sabem o que é trepar.

Se os ritos de pé são inconvenientes porque públicos, sentados os amantes se sentem deitados. Uma vez à mesa, não é incomum que os pés dela repousem em cima dos dele, ou vice-versa; ou mesmo que um acaricie com a ponta do dedão a panturrilha do outro. Quando não, que pousem o calcanhar entre as virilhas dele e, por que não, dela – quase pantanosa. Se for sábado, sorrirão sob qualquer pretexto porque amanhã ainda estarão ali. E um dia bonificado naquele pique vale o Taj Mahal. O que significa que têm uma eternidade para se entregar a fantasias alternadas. Isso também passará por uma jornada de bons restaurantes e até compras. Ou seja, levarão para a rua a concupiscência que se traduzirá em presentes despropositados e sorvetes lambidos a dois.

Já se é domingo, o salão verá um casal tenso. Uma lágrima pode escapar inadvertidamente ao menor pretexto. O rito do desjejum será mais sumário e, no chá, um deles proporá: “Vamos nessa? Encaremos a vida?” Quem diria? Quer dizer que o dia de ontem não era vida? Bom saber. Mesmo que os hotéis estiquem o check-out, restará pouco clima para uma despedida voraz. E, creiam, a perspectiva da partida – e das incertezas daí decorrentes – anulará a inventividade que antes sobrava. Cada um se encapsulará: escovará os dentes; fará uma malinha; apagará pistas; matará a ´persona`; encarnará de volta Maria ou João; afetará alguma indiferença e demonstrará um mínimo de saudades da vida extramuros. Isso causará leves ressentimentos, mas ninguém passará recibo. Seria burrice.

Mas depois, quase à saída, quando ela já estiver paramentada para enfrentar o mundo, ele então lhe pedirá um afago de despedida que, obviamente, ela não se recusará a fazer. Pelo contrário, ficaria preocupada se assim não fosse. Sempre é tempo de ter os méritos reconhecidos. Então, aliviado e recomposto, ele lhe dirá que agora precisam descer. Enquanto formaliza a saída na recepção, ela teclará no celular. Do outro lado, alguém lerá que o congresso foi bom, mas previsível; e que ela estará em casa em um par de horas. Dirá que está um pouco gripada e indisposta, e que sonha com uma boa cama ao chegar. Seria enxaqueca? Antes de desligar, se tiver falado ao aparelho, e não só teclado uma mensagem, o amante terá ouvido um genérico: “Eu também”.

Minutos depois, se vistos do satélite, serão só dois pontos em acelerada dispersão.

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