Fernando Dourado

Cena do filme Journey to Mecca - the story of Ibn Battuta (played by Chems Eddine Zinoun) Director- Bruce Neibaur.

Cena do filme Journey to Mecca – the story of Ibn Battuta (played by Chems Eddine Zinoun) Director- Bruce Neibaur.

“O homem que não viaja e não visita em toda sua extensão o chão coalhado de maravilhas, é uma rã de poço”

Pantcha-Tandra, Índia, Século XII

Tive oportunidade de ver que em todos os países os homens inteligentes são raros; que em todo lugar há imbecis em profusão; em uma palavra, que nossa nação não é pior do que qualquer outra; que nós podemos ficar perfeitamente felizes em casa e que não temos a menor necessidade de percorrer países estrangeiros“.

Denis Fonvizine, em “Cartas de Viagem”, Rússia, Século XVIII

“Viajar é uma merda”.

Gustavo Krause, em “Jornal do Commercio”, Brasil, Século XXI

SE A ESTRADA NEM SEMPRE ANIMA, FATO É QUE LIVROS DE VIAGEM PODEM SER DIVERTIDOS. Sendo eles poucos quando cotejados com irmãos de todas as vertentes, alguns enfeixam sagas e gotejam adrenalina. Dilacerantes e envolventes – para não poupar nas tintas -, livrarias inteiras lhes são dedicadas e é comum ver jovens sentados num cantinho da Altaïr, em Barcelona, buscando inspiração para o outono. Patagônia ou Sibéria? Andaluzia ou Umbria? Alto Nilo ou Volga? Nas paredes, figuram mapas imensos. Nas estantes, atlas dos confins do planeta. No mural, anúncios tentadores: procuro alguém experiente para acampar no Saara. Alguma dica sobre a Amazônia peruana? Busco intérprete de urdu.

Ao clube de escritores imperdíveis pertence Sir Richard Burton. Como ficar indiferente a alguém que, para se infiltrar nas hostes muçulmanas que iam para a cidade sagrada, se fantasiou de dervixe e, com maestria, conseguiu driblar a desconfiança que lhe recaía sobre a identidade? “Espião, espadachim, soldado, aventureiro, historiador, diplomata, tradutor, etnógrafo, geógrafo, explorador, poeta e sabe-se Allah o que mais, Burton foi um personagem muito mais complexo e misterioso que muitos heróis e heroínas das histórias que traduziu. Falava cerca de 30 línguas e, dizem, mais de 40 dialetos. Um polímata que poderia ser descrito como um típico homem renascentista em plena era vitoriana”, diz Ana Calazans, em Recortes.

Igualmente notável é o caso de Lord Schackleton, o comandante do navio Endurance. Tendo guiado seus homens até onde o mundo acabava – na imensidão desolada, branca e gélida da Antártida -, tudo em seus relatos revela a bravura em estado puro. Não cede à histeria sequer ao cabo de excruciantes missões de resgate de companheiros de jornada em que empenhou, vezes sem conta, a própria vida. Um manual de obstinação e caráter, enfim. Revisitar as condições árduas por que passou e interpretar-lhe as motivações, equivaleria a condensar milhares de compêndios de autoajuda e liderança – desses que dormitam sob a luz fria das prateleiras dos aeroportos.

Numa faixa intermediária, figuram almas desprendidas como a do polonês Ryszard Kapuscinski – notável pelo estilo pulsante em detrimento, dizem alguns, da fidedignidade. O que ninguém lhe nega, contudo, é que escreveu uma pérola como Ébano, um libelo sobre a África da descolonização. Interlocutor de estadistas e tiranos, esboçou perfis sobre Hailé Selassié, o “Leão de Judá”; e o xá Reza Pahlavi, o “Rei dos Reis”. Uma menção discreta vai para o italiano Tiziano Terzani cuja pena conheceu seus melhores dias ao relatar o colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Sobre todos eles, o decano da guilda: Ibn Battuta.

Nesse contexto que tanto entusiasmo suscita no coração do leitor, vale ler o que sobre ele escreveu Isabelle Somma, em Aventuras da História: “Aos 21 anos, Ibn Battuta decidiu que era hora de cumprir o Haji, um dos cinco pilares da fé muçulmana. Juntou algumas poucas economias e partiu para a cidade sagrada de Meca. Gostou da experiência e seguiu pela estrada. Assim fez por quase três décadas, percorrendo 120 mil quilômetros, o equivalente a três voltas ao mundo. O jovem de origem marroquina passou por pelo menos 44 países da atualidade, inclusive os lugares mais sagrados do Islã e a famosa Rota da Seda. Conheceu os assustadores mongóis, virou juiz na Índia e nas ilhas Maldivas e atravessou o sul da China. Sobreviveu a naufrágios, a ataques de piratas e ao jugo de tiranos, e se tornou um dos viajantes mais famosos da Idade Média. Para além dos floreios e exageros, o relato do viajante oferece um testemunho bastante acurado sobre sociedades localizadas na África, no Oriente Médio e na Ásia Central, além de Al-Andalus, o território na Península Ibérica que era dominado por muçulmanos”.

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CONCORRENDO NUMA RAIA PRÓPRIA DA NAVEGAÇÃO GLOBAL, há alguns relatos que, apesar de leais a essa vertente, adotam um estilo descosturado, daí saboroso. É o caso de anotações caóticas, na linha do suporte à memória, feitas de afogadilho e que retratam uma miscelânea de impressões sem filtros. Essa literatura desarrumada não será jamais unanimidade e nunca se pretenderá páreo para Stendhal. Revela, contudo, os medos, fraquezas e angústias do observador. Pela componente de diário intimista, raras vezes virou livro. E, quando editada nesse formato, quase sempre perdeu a espontaneidade, dadas as veleidades dos editores em caprichar, arredondar e burilar.

Os relatos abaixo comentados são, portanto, uma feliz exceção. Logo são narrativas sobreviventes. Aquelas que não tiveram esse fim burguês e enfatiotado de agradar. Que não foram lapidadas e, portanto, foram servidas cruas – como um sashimi de atum, pescado em águas frias e iodadas. Nesse contexto, destacamos três peças que talvez estivessem destinadas ao fundo da gaveta. E, embora singulares, não renderam glórias aos autores. Estes resplandeceram em outra seara, e, no caso de um deles, não necessariamente na literária, conforme veremos.

Luz, então, para An Armenian Sketchbook, de Vasily Grossman. No centenário do genocídio armênio, ocorrido sob o olhar complacente do Império Otomano – daí ser a chacina mal assimilada pelos turcos de hoje -, a Armênia é um cenário cheio de dor e encantamento. Autor do épico Vida e destino, recentemente traduzido para o português por Irineu Perpétuo, Grossman é considerado o Tolstói da União Soviética. Nascido em 1905, numa família judia da Ucrânia, viveu 59 anos trepidantes e amargurados. Para quem quiser saber mais sobre o livro, antes de abraçar o cartapácio de mil páginas, se recomenda ler a crítica definitiva que dele fez Marcelo Laier, no Rascunho. A viagem que Grossman fez à Armênia, contudo – uma espécie de prêmio de consolação pela apreensão arbitrária dos originais da obra maior -, aconteceu quando a doença que o mataria três anos mais tarde já fazia os primeiros estragos.

Esmagado pelas idiossincrasias soviéticas e vivendo um mau momento tanto com os pares das letras quanto com a família, Grossman empreendeu a longa viagem de trem através do Cáucaso. Chegando à estação de Yerevan sem que ninguém lhe estivesse à espera, dá início a uma temporada rica e despretensiosa que ecoa no relato cândido. Entre os cenários rochosos do campo, come truta do lago Sevan; conversa com escritores altivos; visita mosteiros; desenha burricos para as crianças; passa mal depois de uma bebedeira e observa pessoas comuns com a lente do humanista de velha cepa. As histórias são singelas. Como a do ambulante que conspirou contra o czar, lutou com Lênin e, pela perversidade do sistema, terminou no degredo de Stálin. No final da vida, se tornara vendedor de refrigerante em Yerevan. “O czar não me teria impedido de vender gasosa na rua”, admite, rindo do absurdo da própria vida. Mas nem tudo foi provação, pondera. Conheceu grandes homens na Sibéria e voltou de lá culto e ilustrado. Além do mais, nos confins de Kolima, teve a alegria de ver a esposa chegar para ficar com ele. Tinha preço tamanha prova de amor? Só por isso, já valera a pena derrubar o czar.

O segundo livro dessa trilogia é As vozes de Marrakech, do prêmio Nobel Elias Canetti. Búlgaro de nascimento, o principal traço dessa obra prima é o despreparo intencional do autor ao visitar um lugar novo. Canetti ignorou todas as etapas que antecedem as viagens tanto de intelectuais quanto de leigos. Normalmente, elas passam por leituras prévias, aprendizado de rudimentos linguísticos, consulta a guias e mapas, e telefonemas para amigos que já tenham vivido a experiência. O desafio que ele se colocou, contudo, foi diverso. Iria com a cara e a coragem. Registraria tão somente o que os sentidos captassem: dos sons e cores do mercado de camelo de Bab-el-Khemis, ao pé da muralha, até os diálogos mais fortuitos que travasse – com pessoas cultas ou não.

Nesse diapasão de descobertas, a grande praça da cidade – a festiva Djemaa el-Fnaa – é palco de cheiros e burburinhos. Lá ele conversou com comerciantes, encantadores de serpentes, adestradores de macacos, malabaristas, biscateiros, quiromantes e perfumistas. Ficou desconcertado com o mendigo que, ao receber uma moeda, a levava à boca em sinal de agradecimento e a lavava com saliva antes de cuspi-la de volta. O resultado é surpreendente porque brota humor não intencional e, por certo, o leitor também se verá enredado na teia da incomunicabilidade humana – tese de fundo que o escritor abraça e a que dá forma. Lembra a frase da inglesa Jeanette Winterson, em O sexo das cerejas, quando diz: “Todo planejamento de viagem dissimula, em seus limites, outra viagem que palpita escondida”.

Por fim, como não incluir nessa lista um livrinho do pintor pernambucano Zé Cláudio? Trata-se de Dias de Uidá. Retrata o que o artista viu e viveu quando de uma viagem ao Benin, via Nigéria. As pinceladas são coloquiais e o tom irreverente que lhe sublinha a personalidade avessa a pompas resulta num texto magro, sem transbordamentos e quase ríspido. É o artista, enfim. O livro, publicado há exatos vinte anos pela editora Inojosa, ganha momentum nas últimas páginas. Ansioso para voltar e machucado pelos entraves da corrupção pequena, diária e ameaçadora da vida africana – tão romantizada pelos que não veem a crueldade subjacente às relações de poder do imenso Continente -, Zé Cláudio se desespera quando percebe que o ciclo vicioso só acabará na hora que o avião decolar de volta. Antes disso, não haverá remédio e as armadilhas dos imprevistos lhe drenam a paciência e maltratam os nervos. Mesmo o leitor mais sisudo rirá do estado de desespero que o transforma de homem apavorado em brigão indignado. Quando um guarda tenta lhe surrupiar os últimos dólares, ele abana o próprio rosto com quatro dedos indicando que aqueles, não – era o que lhe restava de reserva para comer, entendido? Funcionou. Para dar a conotação de caderno de anotações que, no fundo, foi, há de se destacar os croquis da vida cotidiana africana.

É essa singela trilogia de Grossman, Canetti e Zé Cláudio que, cotejada com algumas das obras cardeais aqui citadas, exala frescor, amor à diversidade e à estrada. Porque viajar é observar, mas também deixar acontecer o amálgama entre visitante e visitado. É perpetuar, além de tudo, encontros que não se repetirão entre os mesmos atores, mas que adensarão o acervo técnico da experiência humana. Não há, portanto, viagens maiores ou menores. Só bons estradeiros.

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