Como questão preliminar, esclareço por que me reporto a Jesus, e não a Cristo, referência mais comum nos dias de hoje. Cristo é palavra grega, adotada quando a nova crença expandiu-se pela civilização greco-romana, ferozmente perseguida no início, mas culminando por ser, não apenas aceita, mas oficializada pelo imperador Constantino. O nome Jesus, ou Yeshua na sua língua materna, nos remete melhor às ideias mais puras daquele doce rabi da Galileia, que perdoava as adúlteras e pregava o amor às crianças e aos inimigos.
Por outro lado, espero ser compreendido em meu tratamento não hagiológico a essa notável figura humana, de tão grande importância histórica. Afinal, desde a “Vida de Jesus”, de Ernesto Renan, ainda no século XIX, passando por Kazantzakis (“A Última Tentação”) e por Saramago (“O Evangelho segundo Jesus Cristo”), o fundador do Cristianismo vem sendo abordado seja como simples líder religioso, seja como ser humano dividido entre a tentação da vida normal e a obsessão mística, entre os lícitos prazeres do aconchego familiar e a autoatribuída missão de martírio pela salvação do mundo.
Na verdade, Jesus nunca proclamou nem sequer assumiu a condição divina que depois lhe imputaram. Sempre se declarou um enviado de Deus, seu pai, para perdoar pecados, salvar os homens e ensinar-lhes o caminho do céu. Tampouco era rei dos judeus, pois o seu reino “não era deste mundo”. Talvez fosse o Messias, anunciado nas Escrituras, mas sem o radicalismo dos zelotes, pois mandava “dar a César o que era de César” (o que explica a atitude de Pôncio Pilatos, recusando-se a condená-lo). Mas como a sua doutrina, feita de amor e de perdão, contrastava fortemente com a rigidez do Velho Testamento, a partir do ponto em que deixou a sua região e foi pregar em Jerusalém, passou a incomodar os próceres da velha crença, que o “julgaram” e condenaram, como um blasfemador que se declarava “filho de Deus”.
A condição divina de Jesus foi estabelecida como querigma séculos depois, nos concílios de autoridades eclesiásticas que sistematizaram a religião cristã, selecionando os evangelhos (descartando os “apócrifos”), configurando um Novo Testamento (em “complementação” ao Velho), e fixando os dogmas da nova fé. Ao tempo da missa em latim, que bem conheci nos meus verdes anos, a fórmula que oficializou tal condição era declamada, com especial sonoridade, nas naves das igrejas: Deum de Deo, lumen de luminis, Deum verum de Deo vero.
E o que resultou disso? Como conciliar os dois “testamentos”? Foi preciso conceber a incongruência lógica de uma divindade ao mesmo tempo una e trina, inclusive por conta de outro ente referido nos Evangelhos: o “Espírito Santo”. Um mistério que os cristãos não se devem esforçar por entender. Pois, segundo uma historinha cavilosa que me contaram na infância, seria mais fácil uma criança transportar todo o oceano para um buraquinho na areia, do que alguém compreendê-lo.
Vejo, porém, um lado ameno nesse “processo evolutivo”. A fusão da imagem compassiva de Jesus com a do “Padre Eterno” contribuiu para que a concepção de Deus do Velho Testamento fosse suavizada. Pois o Jeová (ou Yaweh) de que nos fala a Bíblia era um ser impiedoso, vingativo, xenófobo e misógino, como nos revelam os episódios do dilúvio e da destruição de Sodoma e Gomorra, em que crianças inocentes foram sacrificadas, o da transformação da mulher de Loth em estátua de sal, o uso, pelo patriarca Abraão, da própria esposa Sara, como instrumento de barganha com o faraó egípcio, as execuções ordenadas por Moisés de mulheres e crianças midianitas, e tantos outros exemplos que as velhas escrituras nos prodigalizam.
Felizmente, para cristãos e não cristãos, o Deus dos crentes está hoje mais “humanizado”, por paradoxal que venha a parecer este conceito. Pode, portanto, ser não apenas temido, mas também, e sobretudo, amado pelos seus fiéis de todos os matizes.
Mais uma grande aula, que nos ministra o Mestre Clemente Rosas. E desta feita,mostrando o que muitos discordam: o abrandamento do Deus do Velho Testamento para o Deus do Novo Testamento. É uma indução para que leio a
Bíblia, como um belo livro de filosofia.
Meu caro Clemente: a leitura do seu artigo me fez pensar em uma das coisas que me impedem de acreditar em Deus e na religião. Ambos, acredito, são invenções humanas.Você demonstra um pouco, dados os limites do artigo, o quanto a representação humana de Deus mudou ao longo da história. Suas considerações finais, por outro lado, lembraram-me Luc Ferry, um representante do humanismo filosófico contemporâneo que tem teorizado o que chama de a divinização do humano. Penso que a mudança positiva de Deus que você destaca deriva do processo de secularização que poderíamos datar do séc. 18, quando iluministas como Voltaire e Diderot opuseram ao poder da Igreja uma concepção humanista do progresso baseada no racionalismo, na ciência e na gradual instituição de liberdades e direitos avessos à tradição impregnada de superstição e crenças opressivas. Como leitor dos racionalistas desconfiados da própria razão, procuro sempre lembrar de Machado de Assis e Freud quando me falam em progresso. Mas concordo com a mudança positiva que você ressalta no seu artigo.
Agradeço a Nealdo Zaidan e ao amigo Fernando da Mota Lima, que me honram com a sua leitura e me enriquecem com os seus comentários.
Vejo que nem meu romance Relato de Prócula nem meu poema longo Esse é o Homem deixaram impressão maior em você. O Cristo ( em hebraico Messias, em português o Ungido) foi Ciro, segundo diz, explicitamente, Isaías 45-1, pois ele libertou o povo hebreu do cativeiro da Babilônia. O Novo Testamento foi um implante jamais aceito entre os judeus, pois de forte influência platônica, uma linha de pensamento radicalmente recusada na terra invadida pelo Império Romano, tão devastador que no ano 70 destruiu Jerusalém. É lógico que Amai os vossos inimigos, Não resistais ao mal, Dai a César o que é de César fez parte de um discurso violentamente recusado, como de alta traição. Bem, até o fim de julho sai meu DeuS E OUTROS QUARENTA PrOblEMAS pela PENALUX com mais coisas nessa linha.
Amigo Solha: Seu livro Relato de Prócula me impressionou bastante, tanto que fiz um artigo sobre ele, como v. viu. Só que a nova versão da história de Cristo, como cidadão romano e agente do Império para se contrapor à rebeldia judaica, apesar de plausível e coerente, não pode ser provada. Por isso preferi ver Jesus apenas como um ingênuo profeta da Galileia, cujas ideias foram “ajustadas” e enriquecidas pelos seus discípulos. E sua possível colaboração com Roma nãofoi a causa de sua execução, pois não foram os zelotes que o julgaram, mas o Sumo Sacerdote e a cúpula religiosa do judaísmo, que era submissa ao poder romano. Eles apenas quiseram eliminar um novo líder religioso, que ameaçava o seu prestígio e o seu poder.
Aguardarei com interesse o seu novo livro.