Quem transita com frequência pela chamada ala norte do aeroporto do Recife, lá pela altura do portão quinze, há de ter notado por ali um senhor grisalho, apoiado numa bengala, não raro sentado no saguão, mas estrategicamente voltado para o balcão do café. Do posto cativo, acompanha com placidez a movimentação dos passageiros pelo terminal. Como é comum nos muito idosos, dá a impressão de travar uma conversa sem fim consigo mesmo. Não deve ser o caso dele, mas muitas vezes é só uma brincadeira que fazem com o encaixe da dentadura. Certo é que várias vezes nos últimos anos, me senti tentado a abordá-lo e perguntar um pouco sobre ele. O que faz? Será que não o conheço de outro lugar? Isso porque alguma coisa me ligava de forma muito familiar àquele homem e sua fisionomia assomava lá de trás, talvez da adolescência. Quem seria? E por que tanta timidez entre pessoas de boa vontade? Pois bem, nesses dias de São João, resolvi romper mais uma barreira de reverência e fui até lá. Já passei da idade de respeitá-las.
A missão que passara tanto tempo adiando, se revelou fácil e amistosa – como é comum na vida. Simpático e cordato, ele me deu a mão e lhe li o nome no crachá. “Campelo”, assim se chama. Perguntei, então, se acaso ele já não trabalhava nos anos 70 no velho aeroporto dos Guararapes de tantas memórias. Sim, confirmou, vinte anos antes do fechamento, ele já deambulava pelos corredores onde eu corria com meu irmão nas tardes de domingo. Mas com a impaciência de quem prefere olhar para frente, confessou que está para completar 90 anos e que agora é simplesmente o gerente do café. Aliás, eu estava sendo bem tratado? Claro, claro. Com orgulho, Ernesto Campelo apontou o crachá e destacou que aquele “R” maiúsculo, em negrito, significa que ele tem acesso a todas as dependências do aeroporto. Se quisesse, desceria até a pista de manobra dos aviões junto ao pessoal da manutenção. E que tal galardão era privilégio de poucos, espelhando muitos anos de serviço, como eu imaginava. Emendando um caso no outro, se via que estava acostumado a entreter curiosos, como é de praxe com as testemunhas da história.
E esse sotaque, seu Campelo, de onde vem? De Póvoa do Varzim, ora pois. É, portanto, quase um tripeiro e veio ao mundo na terra de Eça de Queiroz, hoje praticamente assimilada à área da cidade do Porto. Será que eu conhecia Portugal? Recomendava, mas preferia viajar pelo Brasil. Olhei-o bem e percebi muitas semelhanças com uma velha família recifense que tinha origens em Braga, também ali perto. No fundo, lábios, olhar e orelhas de um judeu de Bucareste ou Sofia, pensei. Escolhendo os temas de conversa a seu critério enquanto eu tomava um café e mordiscava um pão de queijo, disse que, na verdade, o Brasil é um grande país, mas que nós maltratamos demasiado o idioma. Para ilustrar a tese, explicou com graça que incorria em imenso equívoco quem pedia na mercearia ovos de capoeira. Ora, capoeiras não põem ovos. Da mesma forma, nos equivocamos quando dizemos que botamos água no fogo para passar um chá. Que sandice. Se puséssemos água no fogo, o apagaríamos de imediato, pois não?
Mantive-me calado e deliciado. O que mais dizer se ele tinha um repertório tão vasto? E de que valia eu falar dos anos passados se seu Campelo estava mesmo determinado a se tornar centenário? Sem que eu nada dissesse, afirmou que amava duas coisas: a vida e as viagens. Como prova do primeiro amor, é desde sempre membro do Real Hospital Português e nunca hesitou em acorrer a seus serviços à menor indisposição. A prova de que colhia resultados era a própria idade. Sim, um pouco de hipocondria não fazia mal a ninguém, e me fixou com um olhar firme, mas bem humorado. A paixão pelas viagens tampouco conhecia limites. Do muito que já vira, nada o impressionara tanto quanto Jerusalém. Lá visitou o Muro das Lamentações e subiu ao Monte das Oliveiras. Que coisa maravilhosa poderia ser viver, falou com enlevo. Recomendou-me visitar a Palestina sem tardança. Queria lhe perguntar sobre nossas chances em nos tornar o cobiçado “hub” aéreo do Nordeste. Mas seu Campelo obedece a uma pauta própria.
Em dado momento, voltei à carga e lhe disse que agora tinha certeza de que me lembrava dele jovem e sobranceiro. Se fechasse os olhos, podia vê-lo caminhando pelo saguão central do velho aeroporto, vestido uma camisa impecavelmente branca, engomada, tipo safári, e trocando uma palavrinha amistosa com meu pai quando se viam. Perguntou como ele se chamava. Quando disse que era Fernando Souto Dourado, e que teria quase a idade dele se vivo fosse – já que estaria completando 88 anos naquele mesmo 20 de junho -, ele assentiu com bonomia e disse lembrar perfeitamente. Vi uma lágrima ou foi impressão? Então, falou da colônia de papai, do bigode, do aperto de mão firme e dos antecedentes na aviação, na extinta Cruzeiro do Sul. Ouvi fascinado o relato. Eu sabia que tinha uma coisa que eu precisava resgatar naquele dia. Por sorte, identifiquei o emissário. Mas ele já engatara outra marcha. Como Saramago, seu Campelo fez a apologia do trabalho como fator de identidade. De vendedores de amendoim a pilotos, os admira todos. E a preguiça é uma peste a ser combatida, arrematou.
Já na despedida, se confessou apaixonado por Gravatá onde tem uma propriedade. Em sua casa, um poema recebe os visitantes. Se bem estou lembrado, dizia mais ou menos assim: “Para aqueles que querem, não fica longe a cidade elevada, Pois para os verdadeiros amigos, casa nenhuma é apertada”. Se gostei? Adorei, seu Campelo. Digno de uma casa portuguesa, com cerveja. Espero vê-lo aqui mais vezes e por muitos anos. Olhando-me nos olhos, ele confirmou que, da parte dele, o pacto estava garantido. Que eu fizesse por onde, e me tocou a barriga. Disse que se eu quiser localizá-lo para prosear, estará sempre ali no horário comercial. Mais informações, era só folhear o “Sociedade Pernambucana”, de João Alberto. O colunista lhe registra o aniversário todo ano na coluna, se ufanou. A vaidade não tem idade e isso é bom. Então, chegou a hora de decolar do Recife. E, como nunca desde que faleceu, senti tantas saudades de meu amado pai. Sobrevoando os prédios de Piedade, ao som do ronco dos motores que ele amava, senti seus dedos nodosos me acariciar o cabelo. Quando nivelamos, eu já dormia. Na véspera, mamãe dissera que o tempo dos mortos é diferente do nosso. Por enquanto.
***
Que brinde Fernando Dourado. Que brinde!
A pena com que Fernando Dourado desenha suas crônicas tem o condão de nos transportar – de primeira classe – para um mundo de humanidades cada dia menos visitado. O texto é delicioso.
Dourado ,
Impossível ler suas crônicas e não nos emocionarmos.
Também me vi pendurado na mureta de proteção, com seus enormes furos, onde me apoiava para ver de pertinho os turbo hélices, retornando para brincar correndo e deslizando pela lisa cerâmica cinza do saguão principal , onde por certo também devo ter cruzado com “seu Campelo” , nas inúmeras vezes em que ia ao café do aeroporto , onde inevitavelmente comia um misto de pão francês bem passado.
Como passado foi esse tempo bom, aqui, magistralmente registrado em suas palavras.
Abraços
Hélio:
Lembro agora que o nome do Café era Palheta.
Mas, antes de voltarmos da mureta, um pouco antes da na entrada do saguão, havia um mezanino com uma escada a esquerda que servia de observatório para as pistas.
Não lembro de seu Campelo. Mas ir ao aeroporto era parte do programa de quem vinha do interior, como era meu caso. Ali tomávamos um sorvete, meu pai comprava gibis, víamos o movimento dos aviões. Saudades daquela época e nenhum apreço por esse atual em cujos elevadores mal cabe um carrinho de mala. Além do mais, sofremos no estacionamento porque o raio da rampa não comporta manobra em um tempo.
Mas, enfim, aeroporto – bom ou ruim – é com Fernando mesmo.
Lavínia
João,
Teu codinome é ´resgate`. É verdade que havia o terraço de observação, já não lembrava. A grande serventia dele para os visitantes era localizar o avião ainda no ar, lhe ver as primeiras luzes e a delicada aproximação da cabeceira da pista. Já no chão, a alegria era ver de perto a manobra final, os balizadores de terra coroegrafando com bastões o local exato da parada e o desembarque dos afortunados viajantes em meio ao ronco dos motores e o vento das hélices – como apontado por Hélio.
Mas o que te reforça o codinome é, por exemplo, a irretocável foto do Constellation. Papai falava dessa máquina garbosa com um misto de emoção e reverência. Nem em meus devaneios mais otimistas, eu cogitaria de imagem tão adequada ao contexto. Aliás, um dos prazeres de quem escreve para Será? – e imagino também dos que a leem – é ver como você dribla o desafio da ilustração imposto por cada texto. Com sensibilidade e bom gosto (ah, como isso é importante na vida), você está sempre surpreendendo. Obrigado.
Fernando
Fernando, que coisa linda! Emocionante!
Você simplesmente com sua excentricidade e excelência, resgatou ricas e saudosas lembranças dos bons tempos vividos, com uma linda homenagem ao seu amado Pai. Bravo!
Samara
Samara Querida,
É grande a alegria de poder vê-la nesse espaço. É como se nos encontrássemos numa esquina virtual – mais uma das muitas em que tivemos o privilégio de nos ver nesses últimos anos. Apareça mais vezes e traga o tempero da Paraíba até nós.
É verdade que embora seu Campelo seja o personagem central dessa crônica, o oculto – por assim dizer – é mesmo meu pai e sua forma de se relacionar com as pessoas e com aquele que foi seu mundo. Quer dizer que sou excêntrico? Acho legal.
Nesse contexto, vale destacar o viés de arquiteta de Lavínia. Sequer em nome dos homenageados ela esquece de mencionar o aperto dos elevadores e a curva do estacionamento. Não sei como esqueceu a escada rolante que vive em manutenção.
Como é bonita a diversidade do mundo.
Obrigado,
Fernando
Tem coisas difíceis de se entender nesse mundo. Explico uma bastante prosaica. Por uma deferência especial de Será? , a matéria acima – “O homem do portão 15” -, alusiva a Seu Campelo, foi também veiculada pela revista impressa “Algomais”, no número de julho.
Pois bem, transitando pelo aeroporto dia desses, tomei um café com o protagonista e ele ficou curioso de ver o perfil que eu escrevera a seu respeito. Como dá-lo em papel seria mais tangível, procurei a revista no aeroporto para presentear o homem que me inspirara.
Para meu espanto, as atendentes – tanto da ala externa quanto da livraria contígua aos portões de embarque – disseram conhecer a revista, mas que “não trabalhavam com ela”. Resolvi a questão lendo a matéria do site para o homenageado.
Mas ficou a reflexão: como se explica que as livrarias do principal aeroporto do Nordeste, candidato a “hub” do Atlântico Sul, pode ser tão refratária ao tempero local? Isso tanto vale para a revista quanto para os autores do estado, com uma ou outra exceção.
Nos meus tempos, se chamava isso de alienação. A palavra pode ter perdido a vigência, mas a sensação perdura. Não se acha um Gilvan Lemos. Mas se contam vinte títulos sobre como engordar a carteira e emagrecer a barriga. Quanta platitude, quanta pasteurização, quanto desperdício de sinergias boas.
Fernando
Como quase todo mundo nesse País que não seja banqueiro, não tenho boas novidades a compartilhar. Mas quem me conhece, sabe que sou desses que apostam nas pequenas coisas para magnificar a vida.
Pois bem, conversando com um amigo em São Paulo na noite de ontem, eis que ele me contou que tinha estado com seu Campelo – doravante conhecido como “O Homem do portão 15” – na manhã dessa quarta-feira, dia 9.
Feliz por constatar que ele existia e não era obra de minha ficção, conversaram animadamente enquanto ele comia um pão de queijo. No decurso da conversa, seu Campelo abriu uma pequena bolsa. O que retirou de lá? Essa é fácil.
Isso mesmo, o artigo acima, dobrado com muito carinho. Disse que tem tantos amigos que nem sabe quem o escreveu. De qualquer forma, fará 90 anos em dezembro e os jornais deverão anunciar. Ainda perguntou a meu amigo o que a mulher tem na frente e o homem tem atrás? A letra “m”, ora pois.
E reforçou que temos que conhecer o mundo antes de deixá-lo. Numa inconfidência surpreendente, disse que, excetuados Brasil e Portugal, só moraria num lugar: Bruxelas. Seu Campelo, sempre inovando.
Recomendo que tomem um café com ele. É segredo de uma viagem agradável em tempos azedos.
Fernando
Fernando,
você hoje me levou aos domingos da minha infância que tinha a participação ativa de meu pai, falecido há quase 23 anos. Ir ver avião, ir ao porto ver navio, a Olinda ver a história e, do alto da Sé, o Recife.
Quando digo que você me emociona não é exagero. É a mais pura verdade.
Muito obrigada.
Emília,
É sempre com enorme prazer que cruzo caminhos com você nessas sendeiras memorialísticas em que enveredo. Segundo meu amigo Clemente Rosas, um escritor de verdade, são os desvãos da literatura de reminiscências.
Para quem gosta de escrever, de qualquer forma, é um bálsamo saber que para uns poucos não somos nem pesados nem prolixos. E que há espaço no mundo para conversarmos sobre coisas menos sisudas, não necessariamente atreladas à ordem econômica ou constitucional, só para falar da atualidade.
Apareça mais vezes em “Será?”. Ela é composta por uma plêiade e seu amigo aqui é dos mais opacos. Nem por isso menos agradecido e empenhado.
Um abraço,
Fernando