Fernando Dourado

Avião Constellation da Panair do Brasil - Aeroporto do Recife, anos 50, onde as crianças iam para a mureta sentir a emoção do ruído dos seus motores.

Avião Constellation da Panair do Brasil – Aeroporto do Recife, anos 50, onde as crianças iam para a mureta sentir a emoção do ruído dos seus motores.

Quem transita com frequência pela chamada ala norte do aeroporto do Recife, lá pela altura do portão quinze, há de ter notado por ali um senhor grisalho, apoiado numa bengala, não raro sentado no saguão, mas estrategicamente voltado para o balcão do café. Do posto cativo, acompanha com placidez a movimentação dos passageiros pelo terminal. Como é comum nos muito idosos, dá a impressão de travar uma conversa sem fim consigo mesmo. Não deve ser o caso dele, mas muitas vezes é só uma brincadeira que fazem com o encaixe da dentadura. Certo é que várias vezes nos últimos anos, me senti tentado a abordá-lo e perguntar um pouco sobre ele. O que faz? Será que não o conheço de outro lugar? Isso porque alguma coisa me ligava de forma muito familiar àquele homem e sua fisionomia assomava lá de trás, talvez da adolescência. Quem seria? E por que tanta timidez entre pessoas de boa vontade? Pois bem, nesses dias de São João, resolvi romper mais uma barreira de reverência e fui até lá. Já passei da idade de respeitá-las.

A missão que passara tanto tempo adiando, se revelou fácil e amistosa – como é comum na vida. Simpático e cordato, ele me deu a mão e lhe li o nome no crachá. “Campelo”, assim se chama. Perguntei, então, se acaso ele já não trabalhava nos anos 70 no velho aeroporto dos Guararapes de tantas memórias. Sim, confirmou, vinte anos antes do fechamento, ele já deambulava pelos corredores onde eu corria com meu irmão nas tardes de domingo. Mas com a impaciência de quem prefere olhar para frente, confessou que está para completar 90 anos e que agora é simplesmente o gerente do café. Aliás, eu estava sendo bem tratado? Claro, claro. Com orgulho, Ernesto Campelo apontou o crachá e destacou que aquele “R” maiúsculo, em negrito, significa que ele tem acesso a todas as dependências do aeroporto. Se quisesse, desceria até a pista de manobra dos aviões junto ao pessoal da manutenção. E que tal galardão era privilégio de poucos, espelhando muitos anos de serviço, como eu imaginava. Emendando um caso no outro, se via que estava acostumado a entreter curiosos, como é de praxe com as testemunhas da história.

E esse sotaque, seu Campelo, de onde vem? De Póvoa do Varzim, ora pois. É, portanto, quase um tripeiro e veio ao mundo na terra de Eça de Queiroz, hoje praticamente assimilada à área da cidade do Porto. Será que eu conhecia Portugal? Recomendava, mas preferia viajar pelo Brasil. Olhei-o bem e percebi muitas semelhanças com uma velha família recifense que tinha origens em Braga, também ali perto. No fundo, lábios, olhar e orelhas de um judeu de Bucareste ou Sofia, pensei. Escolhendo os temas de conversa a seu critério enquanto eu tomava um café e mordiscava um pão de queijo, disse que, na verdade, o Brasil é um grande país, mas que nós maltratamos demasiado o idioma. Para ilustrar a tese, explicou com graça que incorria em imenso equívoco quem pedia na mercearia ovos de capoeira. Ora, capoeiras não põem ovos. Da mesma forma, nos equivocamos quando dizemos que botamos água no fogo para passar um chá. Que sandice. Se puséssemos água no fogo, o apagaríamos de imediato, pois não?

Mantive-me calado e deliciado. O que mais dizer se ele tinha um repertório tão vasto? E de que valia eu falar dos anos passados se seu Campelo estava mesmo determinado a se tornar centenário? Sem que eu nada dissesse, afirmou que amava duas coisas: a vida e as viagens. Como prova do primeiro amor, é desde sempre membro do Real Hospital Português e nunca hesitou em acorrer a seus serviços à menor indisposição. A prova de que colhia resultados era a própria idade. Sim, um pouco de hipocondria não fazia mal a ninguém, e me fixou com um olhar firme, mas bem humorado. A paixão pelas viagens tampouco conhecia limites. Do muito que já vira, nada o impressionara tanto quanto Jerusalém. Lá visitou o Muro das Lamentações e subiu ao Monte das Oliveiras. Que coisa maravilhosa poderia ser viver, falou com enlevo. Recomendou-me visitar a Palestina sem tardança. Queria lhe perguntar sobre nossas chances em nos tornar o cobiçado “hub” aéreo do Nordeste. Mas seu Campelo obedece a uma pauta própria.

Em dado momento, voltei à carga e lhe disse que agora tinha certeza de que me lembrava dele jovem e sobranceiro. Se fechasse os olhos, podia vê-lo caminhando pelo saguão central do velho aeroporto, vestido uma camisa impecavelmente branca, engomada, tipo safári, e trocando uma palavrinha amistosa com meu pai quando se viam. Perguntou como ele se chamava. Quando disse que era Fernando Souto Dourado, e que teria quase a idade dele se vivo fosse – já que estaria completando 88 anos naquele mesmo 20 de junho -, ele assentiu com bonomia e disse lembrar perfeitamente. Vi uma lágrima ou foi impressão? Então, falou da colônia de papai, do bigode, do aperto de mão firme e dos antecedentes na aviação, na extinta Cruzeiro do Sul. Ouvi fascinado o relato. Eu sabia que tinha uma coisa que eu precisava resgatar naquele dia. Por sorte, identifiquei o emissário. Mas ele já engatara outra marcha.  Como Saramago, seu Campelo fez a apologia do trabalho como fator de identidade. De vendedores de amendoim a pilotos, os admira todos. E a preguiça é uma peste a ser combatida, arrematou.

Já na despedida, se confessou apaixonado por Gravatá onde tem uma propriedade. Em sua casa, um poema recebe os visitantes. Se bem estou lembrado, dizia mais ou menos assim: “Para aqueles que querem, não fica longe a cidade elevada, Pois para os verdadeiros amigos, casa nenhuma é apertada”. Se gostei? Adorei, seu Campelo. Digno de uma casa portuguesa, com cerveja. Espero vê-lo aqui mais vezes e por muitos anos. Olhando-me nos olhos, ele confirmou que, da parte dele, o pacto estava garantido. Que eu fizesse por onde, e me tocou a barriga. Disse que se eu quiser localizá-lo para prosear, estará sempre ali no horário comercial. Mais informações, era só folhear o “Sociedade Pernambucana”, de João Alberto. O colunista lhe registra o aniversário todo ano na coluna, se ufanou. A vaidade não tem idade e isso é bom. Então, chegou a hora de decolar do Recife. E, como nunca desde que faleceu, senti tantas saudades de meu amado pai. Sobrevoando os prédios de Piedade, ao som do ronco dos motores que ele amava, senti seus dedos nodosos me acariciar o cabelo. Quando nivelamos, eu já dormia. Na véspera, mamãe dissera que o tempo dos mortos é diferente do nosso. Por enquanto.

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