“Eu tenho medo e ódio das cartas; são laços. Esses pequenos quadrados de papel que levam meu nome me dão a impressão de fazer, quando os rasgo, um barulho de correntes – o barulho das correntes que me prendem aos vivos que conheci ou que conheço. Todas me dizem, ainda que escritas por mãos diferentes: Onde você está? O que está fazendo? Por que desaparecer assim sem dizer para onde vai? Com quem você se esconde? Uma outra acrescentaria: Como você quer que a gente se ligue a você, se você está sempre fugindo de seus amigos? Chega a ser ofensivo para eles…” – Guy de Maupassant, in “Sur l´eau” (1888)
Oceano Atlântico, 28.06.1973 – “Papai e mamãe, Depois da maçada e das mil desculpas da tripulação, cá estou eu a caminho de Lisboa. A viagem até o presente momento transcorre de forma agradável e só mesmo há uns poucos minutos os passageiros mais inexperientes, como eu, tiveram um bom susto quando o barulhinho ao qual estávamos acostumados sofreu brusca mudança. Automaticamente, apertei o botãozinho sobre minha cadeira e como resposta apareceu a aeromoça simpática e solícita com seu carregado sotaque português (incompreensível certas horas). “Deseja alguma coisa, senhor?” Perguntei a causa do timbre destoante, provocando a risadinha dos mais experientes e a expressão tranquilizada dos preocupados como eu. A aeromoça disse que “não há razão para preocupações porque ganhamos gradativamente mais altura. Mais alguma coisa, senhor?” “Não, obrigado”, respondi aliviado. São 00:40 hs, horário de Recife, e creio que não tardará até que os primeiros clarões do dia venham ao nosso encontro no meio do Atlântico. Podem ficar certos de que estou realmente no céu em ambos os sentidos. F”
Paris, 02.07.1973 – “Papai, mamãe e Zé, Cheguei aqui na sexta-feira e ainda que esses 3 dias tenham parecido passar rápido, acho todavia que foram 3 anos. Madame Houssay deve ter seus 65 anos e é muito conservada, bem alta, anda a passos largos e é muito gentil. A casa onde mora tem três andares e fica numa rua movimentada. A casa é toda cinzenta na parte exterior, possui um elevador primitivo, porém conservado, e é uma típica mansarda mal-assombrada. Nos sentimos realmente bem, apesar disso. O bairro é ultra chique. Ela gostou muito do cinzeiro e passou bem uma hora me perguntando onde era cada monumento ou construção daquela. Ontem pela tarde fui aos “bouquinistes” que são geralmente velhinhos que vendem reproduções de telas, livros antigos etc. Foi certamente lá que Alba comprou o quadro de tia Dulce. São relativamente baratos, porém como tem muita coisa bonita não sabemos por onde começar. Como estava dizendo, fui lá ontem e comprei uma reprodução muito simples porém bonita de Toulouse-Lautrec e a dei para Madame Houssay. Ela que deu muitos agradecimentos pelo cinzeiro, só faltou cair para trás quando dei a reprodução. Passou muito tempo dizendo: “Ah, il ne fallait pas, Fernandô!”. Vou levar algumas desse tipo e aceito sugestões. Minha vida aqui está realmente bacana. Ontem pela noite -(22 horas) que é a hora que o sol se põe -, fomos ver de Montmartre, lá do Sacré Coeur, o pôr do sol. É uma maravilha. Lá tem uma pracinha sensacional. Descemos pelo famoso bairro de Pigalle do qual Taís falou um dia – é o bairro dos cabarets etc. Tem o Moulin Rouge e tem mais umas 50 salas luxuosíssimas de strip-tease. Tudo é sexo, bebida e erva. É perigosíssimo, super chique, caríssimo,coisa de louco. É mulher nua, homem nu, fresco e uma verdadeira bagaceira. É bem fiscalizado, pois. Certa hora, vínhamos descendo quando um cara acompanhado de cinco (todos bêbados) chegou perto e disse: “Une petite pièce ou je vous casse la gueule”. Isso quer dizer: “Passe um dinheirinho ou lhe quebro a cara”…Luciano falou em português, rindo, então eles ficaram pensando, dando tempo assim para irmos embora…F”
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Paris, 11.07.1973 – “Oi, Os céus de Paris começaram há uma semana a ser cortados pelos aviões Mirage que ensaiam para o 14 de julho. Vocês não podem calcular o quanto fiquei alegre com a carta de Zé; não podem tampouco imaginar, por mais otimistas que estejam, o quanto estou aproveitando aqui na “Ville Lumière”. Resolvi hoje de tarde, pela primeira vez, não sair de casa para pôr algumas coisas em ordem, lavar minha roupa, varrer o quarto e lavar os pratos do almoço. Como já devem saber, Luciano agora, além do trabalho que tinha, está dando uma de vigia noturno nos arredores da cidade e a única hora que vem em casa é de noite e às vezes durante o dia para me mostrar algo de especial. Durmo sozinho, então, nesse casarão que mais parece mal-assombrado uma vez que, no dia primeiro, Madame Houssay foi para a casa de campo na Savoie. Programas não me faltam; quando entro em casa geralmente é só para dormir. Tenho feito muitos progressos na língua pois o curso da Sorbonne é sem dúvida excelente . Tenho aulas diárias de segunda a sexta – são duas horas no anfiteatro e uma hora no laboratório que fica junto do grande prédio, totalizando três horas diárias. É muito bom e nas aulas eu rio muito porque, como em todo canto, temos rivais. Eu sou o mais novo e o melhor da classe (aos quinze anos, modéstia à parte) juntamente com um velho tchecoeslovaco que é uma espécie de D. Lourdes Cardoso Ayres da Sorbonne, pois todo verão ele vem fazer o mesmo curso. Ele tem raiva de mim porque um dia falou uma besteira lá, então eu, sem querer, só mesmo porque a coisa doeu-me no ouvido, disse um “oh” bem simples e baixinho. Toda a turma caiu na risada e o velho avermelhou. Como ele é bom também, então viramos uma espécie de rivais…no fim da aula, eu fui me desculpar e ele disse que tinha achado engraçado também, mas que eu deveria estudar mais (é a guerra psicológica, ele quer me rebaixar sob essa casca de solidariedade). Esnobou também dizendo que foi amigo de Juscelino Kubitschek “que já foi presidente de vocês e que morou em Paris” etc – disse ele. Em suma, aqui na Europa tudo vai bem, com exceção do dólar, seguido de Pompidou (a casa dele é uma coisa). Por enquanto é só, pois ainda que haja milhões de coisas para contar, eu não disponho de tanto tempo assim. Beijos, F PS – Papai, todo dia compro “Le Figaro” e semanalmente “L´Express”, conforme o senhor recomendou. Vou levar muitas novidades. Paris é boa não somente porque é Paris como também porque é cosmopolita e vemos de tudo no mundo. Zé, quando for escrever mande carta simples no lugar de registrada. Explico depois”.
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Londres, 21.07.1973 – “Zé, Cheguei ontem a Londres, a capital da Inglaterra que é a terceira cidade do mundo em população e talvez a segunda em área uma vez que a grande-Londres é do tamanho da Holanda inteira. Desci no aeroporto de Heathrow que é o mais movimentado da Europa tendo uma decolagem a cada minuto. No avião da Air France, um super-boeing 727, a aeromoça vinha no rádio fazendo interessantes observações relativas à nossa viagem. Dizia que o nosso avião poderia fazer o percurso que fizemos em 55 minutos em apenas 25, entretanto o avião é muito grande e logo que ele sobe e vai tomando um embalozinho, já está na hora de acionar os freios, digamos assim, para a aterrissagem. O aeroporto de Orly em Paris é o mais bem aparelhado do mundo e é dividido em duas partes, vindo colado atrás do John Kennedy, de Nova York. Em Londres, eu passei 5 dias e perdi duas aulas que compensarei depois. Valeu a pena. Comprei para você na Oxford Street uma bola de encher maior do que você e pretendo levar um brinquedo da França para meninos de 12 anos uma vez que não são caros, desde que receba um dinheirinho de casa que já deve estar a caminho. Londres é uma cidade maravilhosa e o bairro em que fiquei é de beleza indescrevível. Infelizmente, não pude ir ao encontro de Euclides pois não sabia o telefone dele, nem o de Kevin Ross constava de algum dos 20 volumes de catálogo telefônico, cada qual com 2.000 páginas. Londres é a cidade da liberdade. Eu estava na frente do Buckingham Palace quando o primeiro-ministro de Portugal, Dr. Marcelo Caetano, esteve lá e uma vez que os ingleses não gostam do sistema adotado por Portugal para com as colônias africanas, o português quase foi apedrejado e ouvimos em altos brados “Caetano, assassino Caetano, assassino” – em português – e os guardas que superlotaram o lugar não tinham direito de tomar nenhum atitude de represália, além de defender “fisicamente” o primeiro-ministro.Teve tanta morte no avião do Brasil, não foi? Quase que o seu sambista preferido que canta “O sambinha da madrugada” voava no pau, não foi? Sim, Martinho da Vila. Porém li na agência da Varig que ele apanhou outro voo. Para apagar a impressão de país selvagem que o Brasil tem, nossa embaixada é a mais luxuosa de todas e o governo gasta os tubos para o general Lira Tavares, o embaixador, fazer reformas etc. A agência da Varig também fica nos Champs-Elysées sendo também das mais luxuosas juntamente com o Banco do Brasil. O meu francês vai a todo vapor e também a todo vapor vou eu agora para a Sorbonne para entregar um trabalho. Um beijo para você, F”
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Paris, 26.12.1975 – “Zé Maria, Como vai? Passou de ano no colégio? Como foi o Natal em Garanhuns? Aqui, a temperatura finalmente subiu um pouquinho e o frio já é suportável. De qualquer modo, o inverno mal começou e na Alemanha vou ter muita neve pela frente. Aqui onde estou hospedado, a maioria dos estudantes não fala nada de francês e fico contente em dar-me conta de que o meu inglês funciona tranquilo e sereno. O meu ritmo de estudos decaiu nos últimos três dias em virtude da chegada de dois irmãos de Ana e do cunhado dela…com eles estamos sempre conversando ou passeando. Hoje mesmo, vou almoçar mais uma vez na casa da Madame Houssay. Dessa vez, ela convidou um neto dela que tem a minha idade. Uma coisa eu asseguro para você: esses estrangeiros (pode ser francês, inglês, australiano, sueco, holandês, espanhol ou americano) são todos uns inocentes. Convivo com eles aqui, compreendidos numa faixa etária que regula entre os 18 e os 25 anos, e só encontro besteira, inocência e uma filosofia de vida que os condena – assim como as suas nações de origem – a uma decadência das mais desastrosas. Sentem vergonha e não sabem falar sério. Já os africanos de vez em quando se atracam por aqui, às voltas com discussões políticas relativas a seus países e vale a pena falar com eles. Eles sabem o que dizem. Alguns passam o dia no refeitório só estudando, fazendo cálculos ou discutindo. Mande notícias. F”
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Kibutz Ayelet HashaHar, 24.08.1976 – “Zé Maria, Na próxima sexta-feira sigo com Renate rumo a Jericó e Jerusalém. Diga a tia Alicinha que não haverei de esquecer o cartão…Efetivamente, teria uma quantidade de coisas para te contar – todavia considero-os sentimentos tão sutis e de fineza tal que não encontram encaixe em linhas de caráter informativo e tolhidas pelo tempo. O que tenho sobretudo a dizer é que não os esqueci e que guardo para mais tarde o relato desta saborosa empresa. Uma alemã gostosa de Bonn que esteve aqui por três semanas e com quem bati longos papos, me escreveu convidando para passar uns dias de outubro com ela, lá na capital mesmo. A colheita de maçãs teve início hoje de madrugada e a interrompemos por volta das onze horas, ocasião em que o serviço metereológico de Haifa noticiou estarmos a 43 graus centígrados. As noites, por outro lado, chegam a descer a 16 graus. Tenho muita vontade de estudar e estendo minhas leituras às mais diversas áreas. E você, já pegou a mania das livrarias? Amanhã subirei mais uma vez o cobiçado Golã e ficarei 3 dias por lá, juntamente com outros seis voluntários, ajudando um kibutz menor que Ayelet HashaHar adotou. Chama-se Afik e situa-se a metros da fronteira síria. Vou arranjar uma brecha nas horas para lhes mandar algumas notícias de Jerusalém. Quanto ao mais, tudo é extraordinário e pergunto-me às vezes se vocês supõem que eu porventura pudesse estar preenchendo melhor o momento presente. Que caminho percorrido desde a chegada em Londres até hoje! Escreva com mais assiduidade e encaixe um parecer geral sobre os membros mais polêmicos da família. Com muitas saudades, F”
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Budapeste, 27.02.1978 – “Hoje é meu terceiro dia na evocativa capital da Hungria e não posso esconder meu entusiasmo diante das realidades e particularidades deste bloco diferente e único. Tenho feito longos passeios ao longo do cais do Danúbio e explorei a cidade praticamente toda a essas alturas. Estou hospedado na casa de uma família húngara e ontem à noite fui com a menina do casal até uma taverna animada na rua Victo Hugo, à base da mais autêntica música cigana. Amanhã já não dormirei na escura rua Gogol de onde levarei caras lembranças…estarei outrossim na Ioguslávia e desenvolverei em Belgrado o mesmo ritmo de programa.
Vocês já devem ter recebido uma carta que rabisquei às pressas em Viena contendo um endereço na Turquia – despachem as cartas o quanto antes que dentro de dez dias eu chego lá. Bem, o tempo é curto e estou indo agora mesmo visitar o Parlamento. Essa semana mandarei notícias detalhadas. Beijos e saudades, F”
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Belgrado, 01.03.1978 – “Ainda ruminando as bizarras e memoráveis particularidades da Hungria, eis que me encontro em terras do Marechal Tito. Dispensável é dizer que já me entusiasmam as matizes orientais que a viagem está tomando. Belgrado, por exemplo, já deixa aparecer no quadro moderno de sua estrutura a torre de uma mesquita – minarete -, e os ciganos disseminados ao longo dos mercados públicos, já são sintomas indubitáveis que atestam a progressiva distância que vai me separando da Europa ariana propriamente dita. Já estão bem para trás as fragrâncias envolventes dos suaves perfumes, as línguas maviosas e conhecidas assim como os letreiros a iluminar as ruas. Porém, eis que um universo igualmente convidativo escancara suas portas seculares. A Turquia está a caminho! Uma vez em Istambul, terei ao lado esquerdo a Ásia e ao lado direito uma Europa metamorfoseada em cujas terras já me encontro. Belgrado é gostosa, quase latina e não respira a atmosfera pesada da República Democrática da Alemanha nem mesmo da Hungria; há livre trânsito pelas fronteiras, os serviços públicos são da melhor qualidade e eficiência; a terrível e já doentia burocracia do Leste já é temperada com um sorriso e não é à toa que Breznev tem olhos grandes nessa direção. A Ioguslávia tem, em contrapartida, uma obsessão pela sua frágil inviolabilidade territorial e o Marechal Tito é uma constante. Estou muito contente com os contatos que faço e com o muito que aprendo. Porém, os apelos do mundo árabe já me são muito fortes e, de uma semana para cá, têm povoado meus sonhos. Já cantei em prosa e verso o meu reencontro com Israel – não me saem da memória os momentos que já passei na Cisjordânia e só o fato de dentro em breve rever Jericó, Nazaré, Belém e Hebron me leva a uma plenitude de espirito inédita. Falemos no entanto de nossas realidades: estou tratando de eliminar a barriga fazendo flexões abdominais diárias. O peso continua, para meu espanto, por volta de 89 kgs e estou muito bem tratado assim como financeiramente bem. Fiz ontem um longo passeio pela parte moderna da cidade e, sentado em dado momento num parque, percebi que estou ficando preocupado com a falta de notícias. Efetivamente, vocês podem imaginar o quanto é desagradável remeter cartas em quantidade sem saber que tipo de realidade elas encontram do outro lado do mundo. Para colmatar (sic) isso, espero que a Turquia me receba com algumas novidades. Beijos e saudades, F”
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Cairo, 16.03.1978 – “Fui ontem pela segunda vez à planície de Gizé e fiquei durante muitas horas contemplando o panorama das pirâmides juntamente com a parte antiga do Cairo. Tenho a felicidade de flagrar o Egito num momento árduo de sua milenar história e queria desde já lhes tranquilizar no que concerne ao brutal ataque “fedayim” a um ônibus de Haifa. Isso não merece preocupações maiores de nossa parte, pois a segurança só terá a ganhar. Escreverei de Israel uma carta detalhada dando conta de tudo. Darei uma passadinha em Ayelet HashaHar para matar as saudades e conto com uma carta de vocês por lá. Ao lado de meu nome, escrevam (Arrival: 29.3.78). Quanto ao mais, tudo em ordem e deem esse endereço a Roberto Abdala. Ele já foi instruído. Beijos e saudades, F”
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Como poderíamos chamar de viagem, de desconhecido e de nova experiência, não fosse a consciência permanente de que nos embarques deixamos, como âncoras seguras, as pessoas que amamos e sabemos ser amados ?
Sem perder seu valor de experiência individual, Fernando nos presenteia com os fundamentos da competência multicultural: aprender com os outros e saber-se novo porque a referência de quem somos espera por nossa volta.
Valeu!
Lázaro,
Gostei muito de ambos os comentários. O primeiro nunca me tinha ocorrido de forma consciente. Pelo menos formulado como tal. Não é à toa que na nossa longa relação você é o filósofo e eu o objeto de estudo.
Quanto ao segundo, a experiência europeia de meados dos anos 70 me deu uma medida brutal do que representa a volta para casa. Convivi intensamente com exilados políticos brasileiros naquela época. Isso transparece em outras cartas.
Pois bem, sem a perspectiva concreta de quando poderiam regressar – e alguns eram acossados pelo fantasma de que morreriam antes da anistia -, o comportamento de muitos podia ser desconcertante para o adolescente que eu era em 1973.
Pouca coisa me chocatria mais na vida adulta do que vê-los comemorar a queda do avião da Varig perto de Orly pelo fato de que o senador Filinto Müller – sicário de ditaduras e ex-chefe de polícia – estava a bordo com o neto. Os demais 120 passageiros eram figurantes (Agostinho dos Santos inclusive) da desforra.
Por trás disso, a icógnita da volta que você tão bem pinçou.
Fernando
Nestas cartas, dos 15 aos 18 anos, escritas com tanto carinho para a família, Fernando já mostra um estilo próprio que se consegue perceber nos artigos atuais.
Sensível, apaixonado pelos países, cidades, aldeias do mundo, avesso a laços “aprisionantes”, porém compartilhando tudo que está vivenciando, se fazendo presente através da palavra escrita, das cartas, estabelecendo assim sua forma singular de demonstrar afeto, apreço e saudades, principalmente do irmão mais novo.
Aguardemos as próximas…
É isso aí, Tamarinda. Não me escapa à percepção o fato de que essa série de cartas que compilei – uma fração de um monte – se encerra dias antes de eu completar 20 anos quando, do Egito, pedi a meus pais para mandar cartas para o kibutz, em Israel, lugar que escolhi para festejar os 20 anos, numa segunda viagem ao Oriente Médio.
Vale dizer que naqueles dias poucos meses nos separavam de nosso primeiro encontro que, já na próxima Copa, terá virado 40 anos. Você era uma jovem politécnica paulistana de férias no Nordeste. Eu, o feliz cicerone. Imagino que você tenha também algumas cartinhas minhas dos anos que sucederam nossos começos. Da mesma forma que fiz com essas, queria pelo menos lê-las um dia. O passsado começa a ficar mais importante do que o futuro.
Fico feliz, contudo, que nossa correspondência não tenha ficado na enumeração de intenções de visitarmos juntos isso ou aquilo. Pelo contrário, tivemos a alegria de viajar por muitos lugares do mundo. Essas viagens alimentam até hoje as conversas dos bons amigos que nos tornamos. Vou te cobrar as cartinhas.
Beijo,
Fernando
Que ótimos textos!
Parabéns por resgatar estas verdadeiras relíquias dos tempos passados!!!
Uma viagem no tempo… por lugares, lembranças e sentimentos. Muito legal!
Querido Fernando
Que entrañables cartas, de como un adolescente va descubriendo el mundo. Que interesantes los primeros compases de Fernando Dourado, cosmopolita y viajero incansable. Besos. Maria Angeles, Sevilla.
Quero mais! Quero mais!
Me senti num aviaozinho de papel, voando sobre todas essas cidades e sonhos! Que delícia!!
Olá,
Adoro tudo que vem de longe. Saber que essas cartinhas que tanto hesitei em publicar – e olhem que nem começamos ainda a triá-las pra valer – tocaram o coração de pessoas como Eduardo, Denise, Camila e Maria Angeles me enche de alegria e motivação.
Pelas linhas de cada um de vocês, me chegam as cores de onde se encontram: as ruas arborizadas de Belém, o interior do Ceará, o entardecer bucólico de Casa Forte e os laranjais de Sevilla – cidade que o poeta João Cabral associava à mais pura felicidade.
Que nos vejamos mais vezes!
Fernando
Sou psicóloga culturalista, trabalho e conheço centenas de “Fernando Dourados”, mas esse daí é diferente. Com delicadeza, elegância, fluência natural das palavras, a tentativa de aproximar o distante, o amor sutil dos vínculos espraiados pelo mundo… tudo junto, misturado, dando uma bela consequência… Fernando, obrigada por existir e inspirar os outros a seguir o caminho!
Andrea,
Como minha amiga e sendo você psicóloga culturalista, devo te dizer que abrir essas cartas não foi coisa fácil. Isso porque elas revolvem um passado que, por definição, nunca mais alinhará a pessoa que fui aos lugares onde comecei a descobrir o mundo, logo a me achar.
É bem verdade que muita coisa continua perene: o amor aos mais próximos, as emoções das novas paisagens, um universo de referências em constante formação. Não tem sido portanto uma experiência de todo dolorosa mexer na caixa de sapato onde as cartas dormiram por 40 anos. É entrar num túnel do tempo e lá se perder para se achar.
Uma coisa é certa, Andrea. Fico feliz em ver que gosto hoje das mesmas coisas que me fascinaram na época de adolescente. Adoro o leste da Europa, o Oriente-Médio, cidades como Londres e Paris, e, à custa de tanto treinamento, mesmo só, me faço companhia e me divirto com a própria sombra.
É claro que nem tudo isso resulta em dividendos. Como você gosta de dizer – e com tanta propriedade – eu sou “evitativo” em meus afetos. É mais ou menos o que Tamara colocou mais acima quando disse que sou “avesso a laços aprisionantes”. Talvez isso venha de longe e uma bala tenha saído pela culatra.
Mas me alegra te disponibilizar esse acervo. Sendo você a melhor referência brasileira na preparação de jovens que vão dar seus primeiros passos no mundo, acho que essas revelações estão em boas mãos. Poucos de teus intercambistas terão sido tão chatos, te garanto. Mas isso talvez tenha uma razão de ser central.
Digo-o porque eu próprio me surpreendo com o tom adulto e não propriamente espontâneo dessas linhas, como disse meu amigo Guilherme Quintella. Mas acho que nunca fui muito diferente disso – esquemático, um pouco formal, sonhador. E queria, evidentemente, mostrar a meus pais que o esforço que faziam valia a pena em todas as dimensões. Eu me levava a sério demais.
Vale também dizer que papai era um cara holístico. O aprendizado que consagrava era incomum. O menos importante era o dos bancos da escola – instituição que ele achava freante, mesmo tendo eu frequentado colégios de excelência. As pessoas que admirava jamais tinham trilhado caminhos convencionais. Salvo Roberto Campos.
O que o impressionava, por outro lado, era a vontade incessante de ler e aprender; as experiências mundanas que dessem repertório de estrada; o interesse pelos prazeres da vida e esse “estar à vontade” no Planeta, como se ele fosse um grande e diversificado lar. O resto era bobagem, tesouro ao alcance de quase todo mundo, logo irrisório.
Nesse ponto, talvez eu tenha sido a materialização da utopia paterna. Isso é sabidamente faca de dois gumes, mas nunca me queixei do modelo pois dele eu era o grande beneficiário. Ter vivido a vida até agora como quis foi a grande dádiva que recebi. Paguei todos os preços com galhardia e energia renovada.
Isso está na raiz de nosso empenho – meu e teu -, quando estamos dando nossos workshops, em passar para a audiência – seja a de executivos de alto gabarito a universitários à procura de uma luz – essa chama de curiosidade e tesão pela diversidade do mundo. Essa é nossa missão de vida. Obrigado, portanto, pela sessão psicanalítica a céu aberto. Faremos outras presenciais na serra gaúcha nesse inverno.
Um beijo,
Fernando
Fernando,
Como são lindas essas suas cartas. De menino maduro, observador, aos 15 anos já sabendo apreciar os “bouquinistes” à margem do Sena. Até um rapaz de 20 anos, capaz de avaliar as diferenças e os toques mais liberais ao entrar em Belgrado depois de passar pela “atmosfera mais pesada”, como vc atestou, da Hungria e da RDAlemã. Nessa época, Tito ainda vivo, a Yugoslávia para sustentar suas experiências autogestionárias mantinha contatos assíduos com os Estados Unidos, e, por isso, muitas diferenças teve com a URSS. Admirável como vc captou esse clima.
Mas, Fernando, admirável mesmo é seu pai com uma visão tão universal e moderna de preparar um filho para o futuro. Botá-lo no mundo. Contrôle? por cartas, óra. E deu resultado, né?
Abraço, Rosa
Rosa,
Obrigado pelo seu comentário. Efetivamente, a primeira ida a Berlim Oriental foi marcante. Era inverno e, do lado ocidental, as luzes da Kufürstendamm eram a marca dos prazeres mundanos, da diversidade e da alegria – sempre, bem entendido, dentro do austero padrão germânico. Da estação, mal saíamos do “Check-Point Charlie”, um tresloucado da Stasi já era destacado do lado de lá para nos seguir os passos e para contar lorotas sobre planos quinquenais e a alegria dos trabalhadores em passar férias no Báltico ou no Mar Negro. Nem Lula engoliu essa patranha quando lá esteve, segundo relato à jornalista Denise Paraná. Era deprimente.
Marcos bons eram trocados à razão de vinte marcos locais não-conversíveis por travessia. Isso lá era uma exorbitância de dinheiro. Fazer o quê com tanta grana se nada havia a comprar, se todos os livros eram de propaganda, se as salsichas eram intragáveis, se a mostarda tinha gosto de desinfetante e se a cerveja tépida sabia a urina? A sensação de voltar pela estação de Frederichstrasse era, portanto, alentadora. Mas, cá entre nós, quem ama as cócegas que o estado de espírito socialista provoca na alma humana, sentia saudades daquilo. Eu era um desses e nunca deixei de ser. Viajei para Berlim, já adulto, apenas dias depois da Queda do Muro e ainda hoje processo o que vi. É um enigma de embate civilizacional e amo essa cidade.
Claro que a Hungria não fugia muito à regra, mas ali já tive experiências mais divertidas. A música, o vinho, a irreverência do povo, o Danúbio, a páprica, os salames, as húngaras e a cultura magiar me causaram um “frisson” que sinto até hoje quando vou lá. Ainda prefiro Budapeste à belíssima Praga, por exemplo. A capital tcheca é um primor, mas é empacotada para os olhos dos visitantes em suas partes centrais. A uni-las, o trauma de ver as lagartas dos tanques russos lhes tomarem o chão de paralelepípedos com saldo marcante de tristeza nessas duas intervenções do Pacto de Varsóvia. Tudo isso eu captei naquela época. A vibração estava no ar.
A Ioguslávia a que você se refere era, portanto, coisa diversa. E isso eu senti de cara, feito uma lufada de latinidade num meio eslavo. Ademais, montada em cima de uma fratura civilizacional, a zona dos Bálcãs rescendia a Oriente – região onde já estivera anos antes. As caras feias dos burocratas não eram lá tão apavorantes e ainda hoje me sinto unido por laços afetivos à Croácia – um dos mais belos lugares da Europa -, Montenegro, Bósnia, Sérvia e à bela Eslovênia. Em menor escala, à Macedônia e ao enclave kosovar. Que homem espetacular foi Tito! Só quem vê esse “mish-mash” de hoje – permeado de uma guerra iracunda de faxinas étnicas – pode entender a força aglutinadora do velho Marechal.
Méritos de meu pai? Inúmeros, todos. Ou quase. Minha mãe também começou a gostar de ver o filho “globe-trotter” aumentar exponencialmente seu repertório muito embora se ressinta até hoje (fez 83 anos ontem e continua linda) de me ter deixado excessivamente solto. Daí alguns dos depoimentos acima que falam de meu índole “evitativa” e da fobia a laços “aprisionantes”. Quem disse isso, sabe do que fala. Fica difícil botar passo em cavalo velho e que o diga minha doce Lavínia. Mamãe, portanto, se considera um pouco culpada por ter cevado uma vocação cigana, errante, itinerante, desenraizada, feliz em todo lugar e em lugar nenhum.
Certa feita, pouco antes de meu tio Pipe Dourado morrer em Garanhuns, fomos lhe fazer uma visita. Eu já tinha um repertório brutal de vivências internacionais e de tudo o que isso traz. Para espanto de minha mãe, o velho patriarca enunciou que eu estava condenado à infelicidade porque já saciara cedo curiosidades que um homem adulto teria que suar muito a camisa para conseguir. Um silêncio opressivo se abateu sobre a sala. Até o papagaio que morava sobre seu ombro silenciou. Sim, a tese era boa. Mas ele errou. Posso sim ter penado um pouco por estar meio adiante de meu tempo. Mas o saldo foi o de muita alegria interior. Certo é que quando a palavra globalização começou a circular, o sentimento de mundo já era para mim um tremendo “déjà vu”.
Alonguei-me. Desculpe, Rosa. É que para pergunta boa, a resposta tem que estar à altura. Obrigado também pelas palavras de Nealdo Zaidan, leitor contumaz e sempre generoso com meu esforço e o dos demais articulistas desse espaço.
Abraço ambos,
Fernando
Suas cartas, nos deram uma importante visão de convivência e de aprendizado com os outros vendo as suas experiências e mostrando as nossas.
Fernando,
Você penou mas numa conta de chegar, como resposta ao seu tio Pipe, à sua mãe e, sobretudo, a você mesmo, parece que o mundo o fez uma pessoa feliz.
Abs
Rosa
Querida Amiga,
Sob forma de uma pergunta singela, aqui você me remete a uma seara de abstração que não está lá muito a meu alcance julgar. A resposta simples, embora descaradamente reducionista, é sim. Mas me falta nesse terreno a elevação de Fernando Mota Lima ou de Clemente Rosas para fugir da platitude e da simplificação. A ambos eu peço que lancem ao mar as bóias dos náufragos. Elas me darão uma boa pista para te responder à altura e me manter à tona.
Fernando
Apesar dos quarenta anos que separam a redação das cartas dos dias de hoje, elas são bem peculiares da forma como Fernando observa o mundo. Muitas vezes ele parece estar distante, mas no fundo ele está captando ações e reações de fatos triviais como observador incansável que é. Nas nossas viagens ao exterior – ou mesmo aqui no Brasil -, ele sempre me surpreende com observações ligadas à história e nada no dia a dia das pessoas lhe é indiferente. Pode ser qualquer coisa: a reação de um motorista de táxi, um jantar numa cabana de beduíno, os sorrisos que animam um grupo de gente. É claro que fiquei surpresa quando vi nessas cartas de tantos anos atrás que todos esses traços já estavam lá.
Lavínia
Lavínia,
Muito doces suas palavras.
Eu também me surpreendo muito com sua atitude em nossas andanças. Pelo seu olhar, retomei o gosto pelas artes plásticas e adquiri até a mesma mania de ir a feirinhas de quinquilharias aos domingos. Aprendi também a ver artifícios de engenharia, arrumação de lojas e linhas arquetetônicas que antes não me sensibilizavam. Agora é diferente.
Não sendo um fotógrafo paciente e prendado como você, me contento em reproduzir por escrito o que capto nesses momentos de apagão que só você percebe. Ali funciono como alguém que, privado da visão, compensa ouvindo.
Então, tudo deságua aqui.
Beijos,
Fernando
Hi my poetic friend,
Thank you for including me on this list. I need to make an effort to read Portuguese, but I can tell how beautifully you handle the words.
Take care,
Charlotta, Gothenburg, Sweden
Para os leitores que acompanharam a correspondência publicada em “Vestígios de amor ao mundo” – uma fração pequena das cartas, aerogramas e postais que enviei do período de 1973 a 1978 – registro que hoje, nesse domingo 28 de junho de 2015, transcorreu o quadragésimo-segundo aniversário da primeira missiva aqui transcrita.
Impossível não registrar a emoção que isso me traz. Se a crueldade do tempo é notória, também é verdade que ele pode ser benevolente. Especialmente quando nos dá a chance de reafirmar aos 57 anos, predileções e gostos manifestos e sonhados aos 15. Daí, parafrasear Neruda sem medo de admitir: confesso que curti.
Gracias a la vida!!
Fernando com sua unicidade e seu instinto natural de observar e analisar o mundo, as pessoas, o que as faz florescer, o que não faz, o que as inspiram e como incentivá-las. O alcance do pensamento do menino adolescente é surpreendente. É genial!
Samara
Agradeço à revista Será? o fato de ter lido as cartas deste cigano e os comentários dos seus leitores e respostas do cigano. Sim, reconheço que não é bem cigano, o seu artesanato é o da palavra. Estou encantada com o fato de que no Brasil exista uma figura assim. E como já escrevia tão bem aos 15 anos de idade? Mérito de quais escolas? Desconfio que mérito do pai e da mãe. Que figura, esse Fernando Dourado, cuja escrita só vim a conhecer agora, em junho/julho de 2015, por culpa/mérito do Jô Soares e dos gregos.
E o título é lindo “Vestígios de amor ao mundo”. Eu tenho a pretensão de também ter “amor ao mundo”, mas de modo diferente, talvez como se tem na ONU, não teria a capacidade de explicar a diferença, exceto que no meu “amor ao mundo” entra muita estatística. Fora de brincadeira!
Helga,
Muita gentileza sua me fazer tanta distinção. Logo você, uma pessoa tão cheia de credenciais. Sou uma versão envernizada de um desses malucos que o Recife tinha de monte no século passado. A diferença é que cheguei à idade madura e continuei igual – a alma errante é uma tatuagem resistente à corrosão do tempo. Os demais desparafusados entraram nos eixos, evoluíram ou morreram. Eu estou vivo e estático nos semáforos da Terra. Como quando era menino. Gosto hoje do que gostava há 40 anos.
Como você também curte a diversidade do mundo, aqui vai esse registro de Durban, Costa Índica da África. Eis uma cidade em que estou em meu elemento nessa noite de quinta-feira, 23 de julho. Cercado de hindus, muçulmanos, negros, brancos e chineses, não me canso de vagar pelo centro decadente. Esses sabores asiáticos já me puxam para o oriente e vejo os aviões decolarem para Mumbai com dor no coração. Mas não se pode estar em todo canto ao mesmo tempo. E amanhã é dia de atravessar o Atlântico de volta. Mas muito obrigado pelas palavras.
Abraço,
Fernando