Fernando Dourado

Cartas - Fernando Dourado

Cartas – Fernando Dourado

“Eu tenho medo e ódio das cartas; são laços. Esses pequenos quadrados de papel que levam meu nome me dão a impressão de fazer, quando os rasgo, um barulho de correntes – o barulho das correntes que me prendem aos vivos que conheci ou que conheço. Todas me dizem, ainda que escritas por mãos diferentes: Onde você está? O que está fazendo? Por que desaparecer assim sem dizer para onde vai? Com quem você se esconde? Uma outra acrescentaria: Como você quer que a gente se ligue a você, se você está sempre fugindo de seus amigos? Chega a ser ofensivo para eles…” – Guy de Maupassant, in “Sur l´eau” (1888)

 

Oceano Atlântico, 28.06.1973 – “Papai e mamãe, Depois da maçada e das mil desculpas da tripulação, cá estou eu a caminho de Lisboa. A viagem até o presente momento transcorre de forma agradável e só mesmo há uns poucos minutos os passageiros mais inexperientes, como eu, tiveram um bom susto quando o barulhinho ao qual estávamos acostumados sofreu brusca mudança. Automaticamente, apertei o botãozinho sobre minha cadeira e como resposta apareceu a aeromoça simpática e solícita com seu carregado sotaque português (incompreensível certas horas). “Deseja alguma coisa, senhor?” Perguntei a causa do timbre destoante, provocando a risadinha dos mais experientes e a expressão tranquilizada dos preocupados como eu. A aeromoça disse que “não há razão para preocupações porque ganhamos gradativamente mais altura. Mais alguma coisa, senhor?” “Não, obrigado”, respondi aliviado. São 00:40 hs, horário de Recife, e creio que não tardará até que os primeiros clarões do dia venham ao nosso encontro no meio do Atlântico. Podem ficar certos de que estou realmente no céu em ambos os sentidos. F”

 

Paris, 02.07.1973 – “Papai, mamãe e Zé, Cheguei aqui na sexta-feira e ainda que esses 3 dias tenham parecido passar rápido, acho todavia que foram 3 anos. Madame Houssay deve ter seus 65 anos e é muito conservada, bem alta, anda a passos largos e é muito gentil. A casa onde mora tem três andares e fica numa rua movimentada. A casa é toda cinzenta na parte exterior, possui um elevador primitivo, porém conservado, e é uma típica mansarda mal-assombrada. Nos sentimos realmente bem, apesar disso. O bairro é ultra chique. Ela gostou muito do cinzeiro e passou bem uma hora me perguntando onde era cada monumento ou construção daquela. Ontem pela tarde fui aos “bouquinistes” que são geralmente velhinhos que vendem reproduções de telas, livros antigos etc. Foi certamente lá que Alba comprou o quadro de tia Dulce. São relativamente baratos, porém como tem muita coisa bonita não sabemos por onde começar. Como estava dizendo, fui lá ontem e comprei uma reprodução muito simples porém bonita de Toulouse-Lautrec e a dei para Madame Houssay. Ela que deu muitos agradecimentos pelo cinzeiro, só faltou cair para trás quando dei a reprodução. Passou muito tempo dizendo: “Ah, il ne fallait pas, Fernandô!”. Vou levar algumas desse tipo e aceito sugestões. Minha vida aqui está realmente bacana. Ontem pela noite -(22 horas) que é a hora que o sol se põe -, fomos ver de Montmartre, lá do Sacré Coeur, o pôr do sol. É uma maravilha. Lá tem uma pracinha sensacional. Descemos pelo famoso bairro de Pigalle do qual Taís falou um dia – é o bairro dos cabarets etc. Tem o Moulin Rouge e tem mais umas 50 salas luxuosíssimas de strip-tease. Tudo é sexo, bebida e erva. É perigosíssimo, super chique, caríssimo,coisa de louco. É mulher nua, homem nu, fresco e uma verdadeira bagaceira. É bem fiscalizado, pois. Certa hora, vínhamos descendo quando um cara acompanhado de cinco (todos bêbados) chegou perto e disse: “Une petite pièce ou je vous casse la gueule”. Isso quer dizer: “Passe um dinheirinho ou lhe quebro a cara”…Luciano falou em português, rindo, então eles ficaram pensando, dando tempo assim para irmos embora…F”

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Paris, 11.07.1973 – “Oi, Os céus de Paris começaram há uma semana a ser cortados pelos aviões Mirage que ensaiam para o 14 de julho. Vocês não podem calcular o quanto fiquei alegre com a carta de Zé; não podem tampouco imaginar, por mais otimistas que estejam, o quanto estou aproveitando aqui na “Ville Lumière”. Resolvi hoje de tarde, pela primeira vez, não sair de casa para pôr algumas coisas em ordem, lavar minha roupa, varrer o quarto e lavar os pratos do almoço. Como já devem saber, Luciano agora, além do trabalho que tinha, está dando uma de vigia noturno nos arredores da cidade e a única hora que vem em casa é de noite e às vezes durante o dia para me mostrar algo de especial. Durmo sozinho, então, nesse casarão que mais parece mal-assombrado uma vez que, no dia primeiro, Madame Houssay foi para a casa de campo na Savoie. Programas não me faltam; quando entro em casa geralmente é só para dormir. Tenho feito muitos progressos na língua pois o curso da Sorbonne é sem dúvida excelente . Tenho aulas diárias de segunda a sexta – são duas horas no anfiteatro e uma hora no laboratório que fica junto do grande prédio, totalizando três horas diárias. É muito bom e nas aulas eu rio muito porque, como em todo canto, temos rivais. Eu sou o mais novo e o melhor da classe (aos quinze anos, modéstia à parte) juntamente com um velho tchecoeslovaco que é uma espécie de D. Lourdes Cardoso Ayres da Sorbonne, pois todo verão ele vem fazer o mesmo curso. Ele tem raiva de mim porque um dia falou uma besteira lá, então eu, sem querer, só mesmo porque a coisa doeu-me no ouvido, disse um “oh” bem simples e baixinho. Toda a turma caiu na risada e o velho avermelhou. Como ele é bom também, então viramos uma espécie de rivais…no fim da aula, eu fui me desculpar e ele disse que tinha achado engraçado também, mas que eu deveria estudar mais (é a guerra psicológica, ele quer me rebaixar sob essa casca de solidariedade). Esnobou também dizendo que foi amigo de Juscelino Kubitschek “que já foi presidente de vocês e que morou em Paris” etc – disse ele. Em suma, aqui na Europa tudo vai bem, com exceção do dólar, seguido de Pompidou (a casa dele é uma coisa). Por enquanto é só, pois ainda que haja milhões de coisas para contar, eu não disponho de tanto tempo assim. Beijos, F PS – Papai, todo dia compro “Le Figaro” e semanalmente “L´Express”, conforme o senhor recomendou. Vou levar muitas novidades. Paris é boa não somente porque é Paris como também porque é cosmopolita e vemos de tudo no mundo. Zé, quando for escrever mande carta simples no lugar de registrada. Explico depois”.

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Londres, 21.07.1973 – “Zé, Cheguei ontem a Londres, a capital da Inglaterra que é a terceira cidade do mundo em população e talvez a segunda em área uma vez que a grande-Londres é do tamanho da Holanda inteira. Desci no aeroporto de Heathrow que é o mais movimentado da Europa tendo uma decolagem a cada minuto. No avião da Air France, um super-boeing 727, a aeromoça vinha no rádio fazendo interessantes observações relativas à nossa viagem. Dizia que o nosso avião poderia fazer o percurso que fizemos em 55 minutos em apenas 25, entretanto o avião é muito grande e logo que ele sobe e vai tomando um embalozinho, já está na hora de acionar os freios, digamos assim, para a aterrissagem. O aeroporto de Orly em Paris é o mais bem aparelhado do mundo e é dividido em duas partes, vindo colado atrás do John Kennedy, de Nova York. Em Londres, eu passei 5 dias e perdi duas aulas que compensarei depois. Valeu a pena. Comprei para você na Oxford Street uma bola de encher maior do que você e pretendo levar um brinquedo da França para meninos de 12 anos uma vez que não são caros, desde que receba um dinheirinho de casa que já deve estar a caminho. Londres é uma cidade maravilhosa e o bairro em que fiquei é de beleza indescrevível. Infelizmente, não pude ir ao encontro de Euclides pois não sabia o telefone dele, nem o de Kevin Ross constava de algum dos 20 volumes de catálogo telefônico, cada qual com 2.000 páginas. Londres é a cidade da liberdade. Eu estava na frente do Buckingham Palace quando o primeiro-ministro de Portugal, Dr. Marcelo Caetano, esteve lá e uma vez que os ingleses não gostam do sistema adotado por Portugal para com as colônias africanas, o português quase foi apedrejado e ouvimos em altos brados “Caetano, assassino Caetano, assassino”  – em português – e os guardas que superlotaram o lugar não tinham direito de tomar nenhum atitude de represália, além de defender “fisicamente” o primeiro-ministro.Teve tanta morte no avião do Brasil, não foi? Quase que o seu sambista preferido que canta “O sambinha da madrugada” voava no pau, não foi? Sim, Martinho da Vila. Porém li na agência da Varig que ele apanhou outro voo. Para apagar a impressão de país selvagem que o Brasil tem, nossa embaixada é a mais luxuosa de todas e o governo gasta os tubos para o general Lira Tavares,  o embaixador,  fazer reformas etc. A agência da Varig também fica nos Champs-Elysées sendo também das mais luxuosas juntamente com o Banco do Brasil. O meu francês vai a todo vapor e também a todo vapor vou eu agora para a Sorbonne para entregar um trabalho. Um beijo para você, F”

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Paris, 26.12.1975 – “Zé Maria, Como vai? Passou de ano no colégio? Como foi o Natal em Garanhuns? Aqui, a temperatura finalmente subiu um pouquinho e o frio já é suportável. De qualquer modo, o inverno mal começou e na Alemanha vou ter muita neve pela frente. Aqui onde estou hospedado, a maioria dos estudantes não fala nada de francês e fico contente em dar-me conta de que o meu inglês funciona tranquilo e sereno. O meu ritmo de estudos decaiu nos últimos três dias em virtude da chegada de dois irmãos de Ana e do cunhado dela…com eles estamos sempre conversando ou passeando. Hoje mesmo, vou almoçar mais uma vez na casa da Madame Houssay. Dessa vez, ela convidou um neto dela que tem a minha idade. Uma coisa eu asseguro para você: esses estrangeiros (pode ser francês, inglês, australiano, sueco, holandês, espanhol ou americano) são todos uns inocentes. Convivo com eles aqui, compreendidos numa faixa etária que regula entre os 18 e os 25 anos, e só encontro besteira, inocência e uma filosofia de vida que os condena – assim como as suas nações de origem – a uma decadência das mais desastrosas. Sentem vergonha e não sabem falar sério. Já os africanos de vez em quando se atracam por aqui, às voltas com discussões políticas relativas a seus países e vale a pena falar com eles. Eles sabem o que dizem. Alguns passam o dia no refeitório só estudando, fazendo cálculos ou discutindo. Mande notícias. F”

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Kibutz Ayelet HashaHar, 24.08.1976 – “Zé Maria, Na próxima sexta-feira sigo com Renate rumo a Jericó e Jerusalém. Diga a tia Alicinha que não haverei de esquecer o cartão…Efetivamente, teria uma quantidade de coisas para te contar – todavia considero-os sentimentos tão sutis e de fineza tal que não encontram encaixe em linhas de caráter informativo e tolhidas pelo tempo. O que tenho sobretudo a dizer é que não os esqueci e que guardo para mais tarde o relato desta saborosa empresa. Uma alemã gostosa de Bonn que esteve aqui por três semanas e com quem bati longos papos, me escreveu convidando para passar uns dias de outubro com ela, lá na capital mesmo. A colheita de maçãs teve início hoje de madrugada e a interrompemos por volta das onze horas, ocasião em que o serviço metereológico de Haifa noticiou estarmos a 43 graus centígrados. As noites, por outro lado, chegam a descer a 16 graus. Tenho muita vontade de estudar e estendo minhas leituras às mais diversas áreas. E você, já pegou a mania das livrarias? Amanhã subirei mais uma vez o cobiçado Golã e ficarei 3 dias por lá, juntamente com outros seis voluntários, ajudando um kibutz menor que Ayelet HashaHar adotou. Chama-se Afik e situa-se a metros da fronteira síria. Vou arranjar uma brecha nas horas para lhes mandar algumas notícias de Jerusalém. Quanto ao mais, tudo é extraordinário e pergunto-me às vezes se vocês supõem que eu porventura pudesse estar preenchendo melhor o momento presente. Que caminho percorrido desde a chegada em Londres até hoje! Escreva com mais assiduidade e encaixe um parecer geral sobre os membros mais polêmicos da família. Com muitas saudades, F”

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Budapeste, 27.02.1978 – “Hoje é meu terceiro dia na evocativa capital da Hungria e não posso esconder meu entusiasmo diante das realidades e particularidades deste bloco diferente e único. Tenho feito longos passeios ao longo do cais do Danúbio e explorei a cidade praticamente toda a essas alturas. Estou hospedado na casa de uma família húngara e ontem à noite fui com a menina do casal até uma taverna animada na rua Victo Hugo, à base da mais autêntica música cigana. Amanhã já não dormirei na escura rua Gogol de onde levarei caras lembranças…estarei outrossim na Ioguslávia e desenvolverei em Belgrado o mesmo ritmo de programa.

Vocês já devem ter recebido uma carta que rabisquei às pressas em Viena contendo um endereço na Turquia – despachem as cartas o quanto antes que dentro de dez dias eu chego lá. Bem, o tempo é curto e estou indo agora mesmo visitar o Parlamento. Essa semana mandarei notícias detalhadas. Beijos e saudades, F”

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Belgrado, 01.03.1978 – “Ainda ruminando as bizarras e memoráveis particularidades da Hungria, eis que me encontro em terras do Marechal Tito. Dispensável é dizer que já me entusiasmam as matizes orientais que a viagem está tomando. Belgrado, por exemplo, já deixa aparecer no quadro moderno de sua estrutura a torre de uma mesquita – minarete -, e os ciganos disseminados ao longo dos mercados públicos, já são sintomas indubitáveis que atestam a progressiva distância que vai me separando da Europa ariana propriamente dita. Já estão bem para trás as fragrâncias envolventes dos suaves perfumes, as línguas maviosas e conhecidas assim como os letreiros a iluminar as ruas. Porém, eis que um universo igualmente convidativo escancara suas portas seculares. A Turquia está a caminho! Uma vez em Istambul, terei ao lado esquerdo a Ásia e ao lado direito uma Europa metamorfoseada em cujas terras já me encontro. Belgrado é gostosa, quase latina e não respira a atmosfera pesada da República Democrática da Alemanha nem mesmo da Hungria; há livre trânsito pelas fronteiras, os serviços públicos são da melhor qualidade e eficiência; a terrível e já doentia burocracia do Leste já é temperada com um sorriso e não é à toa que Breznev tem olhos grandes nessa direção. A Ioguslávia tem, em contrapartida, uma obsessão pela sua frágil inviolabilidade territorial e o Marechal Tito é uma constante. Estou muito contente com os contatos que faço e com o muito que aprendo. Porém, os apelos do mundo árabe já me são muito fortes e, de uma semana para cá, têm povoado meus sonhos. Já cantei em prosa e verso o meu reencontro com Israel – não me saem da memória os momentos que já passei na Cisjordânia e só o fato de dentro em breve rever Jericó, Nazaré, Belém e Hebron me leva a uma plenitude de espirito inédita. Falemos no entanto de nossas realidades: estou tratando de eliminar a barriga fazendo flexões abdominais diárias. O peso continua, para meu espanto, por volta de 89 kgs e estou muito bem tratado assim como financeiramente bem. Fiz ontem um longo passeio pela parte moderna da cidade e, sentado em dado momento num parque, percebi que estou ficando preocupado com a  falta de notícias. Efetivamente, vocês podem imaginar o quanto é desagradável remeter cartas em quantidade sem saber que tipo de realidade elas encontram do outro lado do mundo. Para colmatar (sic) isso, espero que a Turquia me receba com algumas novidades. Beijos e saudades, F”

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Cairo, 16.03.1978 – “Fui ontem pela segunda vez à planície de Gizé e fiquei durante muitas horas contemplando o panorama das pirâmides juntamente com a parte antiga do Cairo. Tenho a felicidade de flagrar o Egito num momento árduo de sua milenar história e queria desde já lhes tranquilizar no que concerne ao brutal ataque “fedayim”  a um ônibus de Haifa. Isso não merece preocupações maiores de nossa parte, pois a segurança só terá a ganhar. Escreverei de Israel uma carta detalhada dando conta de tudo. Darei uma passadinha em Ayelet HashaHar para matar as saudades e conto com uma carta de vocês por lá. Ao lado de meu nome, escrevam (Arrival: 29.3.78). Quanto ao mais, tudo em ordem e deem esse endereço a Roberto Abdala. Ele já foi instruído. Beijos e saudades, F”

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