Comecemos por lembrar que a concepção do homem como um ser dual – constituído de corpo e de alma – vem dos gregos antigos, cujo pensamento é matriz, até hoje, da filosofia e da cultura ocidentais. A partir dessa concepção é que surgiram as criações mentais de profetas e líderes religiosos – cristãos e espíritas – relativas às almas: imortalidade, julgamento (com o prêmio do céu ou o castigo do inferno), reencarnação e mediunidade. O objetivo deste texto é submeter à razão crítica essas ideias.
Camões, em belo soneto à eterna amada Catarina, prematuramente morta, roga-lhe: “Se lá no assento etéreo onde subiste / Memória desta vida se consente / Não te esqueças daquele amor ardente / Que já nos olhos meus tão puro viste”. É sobre essa dúvida em relação à permanência, numa “outra vida”, de memória desta – ponto omisso na doutrina cristã – que queremos fazer a primeira reflexão.
E o que observamos? Em caso positivo, as almas bem-aventuradas não estariam livres para desfrutar a “eterna beatitude” merecida. Sofreriam com a lembrança de seus entes queridos, com a preocupação com o destino dos pósteros, e, na hipótese de ciência dos fatos correntes, com o desconforto de não poder interferir nas suas desventuras. Em caso negativo, desapareceria o sentido do julgamento: as almas condenadas não saberiam por que estariam padecendo no inferno, nem as limpas de pecado, a razão do seu prêmio celestial. Teriam todas novas individualidades, recebendo benesses ou penas sem consciência de qualquer justiça, ou de eventual misericórdia.
Outra questão delicada surge quando procuramos compatibilizar o destino das almas após a morte com os dogmas do “juízo final” e da “ressurreição da carne”, que constam, inclusive, da principal oração dos católicos. Desde o momento em que, muito depois de Cristo, as autoridades eclesiais estabeleceram que tal destino seria consumado logo após o falecimento dos fiéis, pelo simples motivo prático de que um julgamento tão remoto teria pouca influência nas opções humanas entre a virtude e o pecado, o problema aflora: então o “juízo final” seria apenas homologatório? E enfim, cumpridas as sinas de todos os espíritos, por que haveriam de ressurgir os corpos?
Nos casos da reencarnação e da mediunidade, criações do espiritismo, a situação é ainda mais embaraçosa. Se os espíritos reencarnados não têm consciência de sua vida corporal passada – e, neste caso, é provado que não têm – o sentido de compensação de sofrimentos vividos, ou de expiação de antigas culpas, desaparece. E aqueles que invadem os corpos dos médiuns, ou ficam rondando os seres de carne e osso, tentando interferir em seus problemas, cumprem uma tarefa que nem sempre pode ser entendida como nobre. Por que motivo? Em relação a quem? Com que finalidade? Por quanto tempo? Tudo ficaria ao arbítrio individual do próprio espírito vagante?
A crença na imortalidade das almas só traz problemas a quem exercita a razão. E, como dizia Sócrates, “para onde a razão nos levar, como uma brisa, para aí é que devemos seguir”. Se se deseja algum consolo final para as agruras da vida terrena, melhor contar com um grande repouso, um sono profundo, sem sonhos e sem prazo para o despertar. A ideia de uma alma imortal pode ser tão inquietadora quanto a de um corpo imortal. E neste último caso, a dimensão da tragédia já foi bem demonstrada por Simone de Beauvoir, ao explorar a lenda medieval do Conde Fosca, o homem que não conseguia morrer, sendo condenado ao sofrimento interminável de ver a decadência e a morte de todos os seus entes queridos.
Só o extraordinário desenvolvimento e a sofisticação do cérebro humano podem explicar essa orgulhosa obstinação do homem em negar a sua própria contingência e a sua própria efemeridade. Pois a verdade é que haveremos de passar, enquanto indivíduos, como tudo o que é vivo no universo. Resta-nos a alegria da descendência, que propagará a nossa espécie, e até mesmo o consolo da dissolução corporal, que nos devolverá ao seio da mãe-natura. Estaremos voltando à “pátria da homogeneidade”, na feliz expressão poética de Augusto dos Anjos.
Meu caro Clemente: onde você vê orgulho humano, tendo a ver fraqueza, necessidade de ilusão. É muito doloroso, para muitos insuportável, aceitar o fato de que a nossa condição é contingente, isto é, não somos necessários. Nascemos, vivemos e morremos. Você sabe que o catolicismo acusa os filósofos através da história quando eles argumentam em defesa da nossa mortalidade. Isso sim, diria um católico, seria uma prova de orgulho e arrogância.
Acho que seu último parágrafo, salvo o orgulho acima mencionado, poderia ser assinado por um filósofo estoico. Tomo a liberdade de corrigir um lapso que em nada afeta a substância do seu artigo: o nome da amada de Camões era Dinamene, não Catarina. Um abraço, Clemente.
Gosto muito da forma leve, agradável com que Clemente Rosas trata as mais intrincadas questões filosóficas. No caso, a abordagem consoladora da recorrente aspiração à imortalidade (da alma, quando nada) está muito bem colocada; até porque é mais sadio baixar as expectativas. Oportuna, também, a lembrança de Augusto dos Anjos; a expressão citada, a encaminhar a ‘chave de ouro’ do soneto, abre o último terceto do belíssimo poema Debaixo do Tamarindo, em que o poeta celebra “árvore de amplos agasalhos” do quintal paterno: “Voltando à pátria da homogeneidade,/abraçada com a própria eternidade,/a minha sombra há de ficar aqui.”
Fernando:
Agradeço mais este comentário, mas quero esclarecer a questão secundária do nome da amada de Camões. E faço isso mais animado por ver que as referências poéticas dos meus textos têm sido do agrado de quem me lê, como o novo e ilustre comentarista Marco Antônio Pontes.
Vocês certamente conhecem o belo soneto camoniano que começa: “Quem vê, Senhora, claro e manifesto / O lindo ser dos vossos olhos belos / Se não perder a vista só em vê-los / Já não paga o que deve a vosso gesto”. Pois bem, Elizabeth Barret Browning retomou a questão na perspectiva da Senhora dos Belos Olhos e compôs uma resposta a Camões, que o grande Fernando Pessoa traduziu: “P’ra a porta onde não surges nem me vês/Há muito tempo que olho já em vão/A esperança retira o seu talvez/Aproxima-se a morte, mas tu não./Amor, vem/Fechar bem/Estes olhos de que disseste ao vê-los:/O lindo ser dos vossos olhos belos”. E prossegue em dezenove estrofes do mesmo nível desta!
E como Fernando Pessoa intitula esta extraordinária composição poética? CATARINA A CAMÕES!
Esta foi a minha fonte, meu caro Fernando. Se estou enganado, gostaria que me esclarecesse como.
Abraços aos dois.
Clemente: agora percebo o atalho erudito que você pegou. Você foi a Elizabeth B. Browning, que até onde sei é a única poeta inglesa que foi íntima da literatura portuguesa. Aliás, isso me lembra o poeta romântico inglês Robert Southey, apaixonado pelo Brasil ao ponto de escrever uma história do nosso país. Li essa história na minha juventude. Tomei a liberdade de fazer a correção, Clemente, porque você alude ao soneto talvez mais famoso de Camões: “Alma minha gentil…”, inspirado por Dinamene, a amante que ele perdeu num naufrágio. Segundo a lenda, que você deve conhecer, entre salvar a amada e o manuscrito dos Lusíadas, que trazia no navio para Lisboa, ele preferiu o manuscrito que o imortalizou. Isso prova, se é verdade, que alguns homens são capazes de fazer qualquer coisa pela literatura ou qualquer outro valor ou glória abstrata. Quantos homens não sacrificaram mulher e família para militar num partido e salvar a humanidade? Duvido que uma mulher ponha esses valores acima dos amores concretos e individuais. Um abraço, Clemente. Ah, Dinamene foi um mito amoroso da minha juventude. Por isso nunca a esqueci.
Grande mestre Clemente. Veja quanto sou abusado, ao comentar o seu escrito. Faço-o por ser seu admirador. Como acredito firmemente na reincarnação, pois, sendo Deus o próprio amor, não condenaria seus filhos e sim, dá-lhes a chance de uma reparação, mas evitou as lembranças de vidas pretéritas.
Um trovabraço de admiração.
SAGA HUMANA
w. j. sOLHA
Pra Marx,
a História não é como a onda do mar, que se repete indefinidamente, mas duas vezes, somente,
fazendo das suas, primeiro, como tragédia, depois como a comparsa, a comédia,
ou farsa,
mesmo que isso não ocorra na terrível rima de Nagasaki & Hiroshima com Sodoma & Gomorra.
E nem é preciso um estudo pra ver que – tanto nas grandes, como nas mais come-zinhas coisas – há,
também,
nas entrelinhas,
repetições de tudo.
O motoboy que apeia e ergue o capacete pra cabeça, sem pose de herói,
lembra,
embora com ele em nada se pareça,
Alexandre
o Grande,
que desce do cavalo e ergue o elmo que lhe cobre o rosto,
como que pra mostrá-lo.
E quantos escaparam, curvados, nas entrelinhas de arames farpados,
indo a pé, durante dias, nas entrelinhas das ferrovias!
Quanto o clarão do fusilamiento que emborca Lorca, lembra,
nas entrelinhas de fogo,
como num jogo,
o que a tantos mata, na mesma tramoia, no tres de mayo de mil ochocientos y ocho,
de Goya!
Quanto a imensa, maternal ternura de uma leoa, lembra
a da mal-encarada varoa,
na Armênia, Romênia, Chechênia
que,
por mais que lhe doa,
se aferra ( nobre, na guerra, com arma pesada nos braços ), às filhas e aos netos e a seus pobres espaços!
Quanto o povoado,
aglomerado de solidões,
tem das megalópoles,
mesmo nas multidões.
Quanto as useiras e vezeiras caveiras,
com provisórios egos ( e assessórios, sem os quais seriam surdos-mudos cegos ),
mais a dinâmica mecânica de seus sistemas – esqueléticos e digestórios; musculares, circulatórios; reprodutores, respiratórios – , lembram… ciborgues
o que reduz a robôs
nossos queridos Rimbauds,
Newtons, Picassos, Truffauts,
Mozarts, Kants, Cocteaus,
e Borges.
Pra Leonardo – com a calma da sabedoria lhe era um fardo – a Terra vive
e tem alma.
Daí a ira dos raios
e dos trovões e vulcões,
e a das cordilheiras
do mar,
quando – em vagas e trambolhões, a se exaltar – perdem as estribeiras.
É o elã
nada moderno
de Rodin,
quando,
no desespero da criação – terrível – da complexa e multitudinosa, incrível Porta do Inferno,
de grande beleza,
ele é uma força da natureza!
Nunca iria supor,
tentando Portas e Portas
e escrevendo certo por linhas tortas
que,
ao culminá-la com a figura de Dante a encimá-la,
faria O
Pensador,
que é – à parte – o seu retrato e o da arte
no máximo esplendor,
síntese do que é – filigrana por filigrana – seu próprio papel na complexa e multi-tudinosa,
magnífica, trágica, tormentosa, cômica
saga
humana!