Paulo Gustavo

Leitores em biblioteca pública, logo após bombardeio pelos alemães. Londres, 1943.

Umberto Eco nos diz que os jornalistas ou a opinião pública possuem uma certa obsessão pelo fim do livro. É verdade. Até no libertário maio de 1968, escritores e estudantes se uniram para gritar: “Livros nunca mais” (ECO E CARRIÈRE, 2010). De minha parte, acredito que essa obsessão pelo fim do livro é uma espécie de revanche às encarnações do livro opressor, símbolo de autoridade. Uma revanche de antigas crianças à imposta e muitas vezes autoritária disciplina do livro. Pois é fato que, mesmo sendo um ícone de nossa civilização, a figura do livro traz e trai a ambiguidade da liberdade e da opressão. Nesse sentido, a obrigatoriedade do livro, com toda a sua força oracular e reguladora, é um emblema que para muitos arruinou uma liberdade provavelmente idealizada.

Marshall McLuhan foi profético em antecipar que toda a tecnologia eletroeletrônica da comunicação seria inclusiva e multissensorial. O livro, nesse novo contexto, seria deslocado de sua posição central no mundo da cultura, embora tenha sido “a primeira máquina de ensinar e também a primeira utilidade produzida em massa”. E a imprensa, por sua vez, como antes já escrevera Lewis Mumford em Técnica e Civilização, foi a primeira indústria e serviu de modelo para todas as outras.

Para o sociólogo Manuel Castells, autor da célebre trilogia Sociedade em Rede, a  internet tem desbancado livros de referência e enciclopédias, pois livros-texto “oferecem extraordinário potencial para publicação eletrônica”, assim como revistas on-line a serem publicadas por instituições científicas.  Por outro lado, Castells afirma que “não parece que a demanda do livro clássico, impresso, esteja declinando — afinal, um invento de uso muito fácil e portátil”, ressaltando que o produto em si “provavelmente não mudará de maneira substancial no futuro previsível” (CASTELLS, 2003). Pesquisas de nossos dias na Europa e nos Estados Unidos parecem dar razão a Castells, pois apontam que os chamados “e-books”, ao contrário do que alguns imaginaram, não têm deixado para trás os livros impressos: pelo contrário, são estes que têm a preferência do público, inclusive dos jovens.

Uma opinião semelhante à de Castells seria expressa por Umberto Eco ao nos dizer que “ou o livro permanecerá o suporte da leitura ou existirá alguma coisa similar ao que o livro nunca deixou de ser, mesmo antes da invenção da tipografia. As variações em torno do objeto livro não modificaram sua função, nem sua sintaxe, em mais de quinhentos anos. […] O livro venceu seus desafios, e não vemos como, para o mesmo uso, poderíamos fazer algo melhor que o próprio livro. Talvez ele evolua em seus componentes, talvez as páginas não sejam mais de papel. Mas ele permanecerá o que é” (ECO E CARRIÈRE, 2010).

Não obstante a acessibilidade das novas formas eletrônicas de leitura, é de se notar que a própria abundância digital possibilitada pela Web termina gerando uma necessidade de refinamento, de filtragem, de seleção, a exemplo do que acontece tradicionalmente no mundo do livro impresso. Sobre isso, Michael Dertouzos, do Laboratório de Computação do MIT, já nos alertara desde 1997:

Embora seja igualitário, nobre até, haver a possibilidade de todos escreverem o que quiserem e publicar isso livremente […], o resultado será o mesmo: uma enorme pilha de info-junk que a maioria de nós não se interessará em ler. Aqui também sentiremos necessidade de intermediários da palavra escrita, das artes visuais e dos espetáculos, bem como das novas formas de criação que surgirão. […] Portanto, os intermediários não desaparecerão. (DERTOUZOS, 1997).

É oportuno lembrar que muitos teóricos e analistas não veem um sentido concorrencial entre o livro e a internet. É o caso de Michel Melot em sua obra “Livro,”: “Condena-se ao erro aquele que pretende comparar o livro com o computador. Suas lógicas são diferentes, ainda que elas compartilhem da escrita e da leitura. São dois mundos, e nada indica que um deve excluir o outro” (MELOT, 2012). Melhor assim. Por outro lado, não custa também lembrar o óbvio: o próprio livro enquanto objeto também tem se beneficiado das novas tecnologias de impressão, todas elas impulsionadas pela Revolução Digital. O que acarreta uma qualidade ímpar e tem rebatimentos em todos os tipos de livro, em especial nos livros que abrigam imagens, ilustrações e fotografias.

Sempre olhamos pelo retrovisor — dizia McLuhan — quando encaramos à frente uma nova situação desafiadora. Por isso, ele nos lembrava que os automóveis também tiveram a sua fase de “carruagem sem cavalo”, uma vez que a carruagem integrava o antigo quadro de referências dos transportes humanos. Por isso, penso, junto com alguns estudiosos, que um e-book não é um livro, é uma outra coisa, embora inspirada no que conhecemos como livro, ou seja, o códice, que alguns supõem criado por ninguém menos que Júlio César. A história do livro nos diz que, mesmo depois de dois séculos de criada a tipografia e iniciada a era gutemberguiana, ainda havia quem quisesse e adquirisse livros manuscritos. O próprio códice — esse icônico objeto da nossa cultura — levou quatro longos séculos para se firmar como mídia dominante.

Enfim, tudo indica que ninguém estará vivo para testemunhar, se vier a ocorrer, a morte do livro. Até hoje, seus inimigos têm morrido primeiro. Vida longa ao nosso códice de cada dia!

Paulo Gustavo

Referências

CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2003

DERTOUZOS, Michael. O que será. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

ECO, Umberto; Carrière, Jean-Claude. Não contem com o fim do livro. Rio de Janeiro: Record, 2010.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2000.

MCLUHAN, Marshall. McLuhan por McLuhan. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.

MELOT, Michel. Livro,. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012.

MUMFORD, Lewis. Technics and civilization. Harcourt Brace, 1934.