Por certo, a opinião mais corrente é a de que a religião é benéfica aos homens, na medida em que prega a caridade, a temperança e a compaixão. E também, como tantas vezes ouvi de meus familiares, por constituir um freio aos nossos impulsos de violência e de sexo, condenáveis aos olhos de Deus. Mas reconheçamos que este segundo entendimento tinha curso mais fácil há meio século, quando só se admitia o amor físico após legitimado pelo padre e pelo juiz.
Hoje, quando o tabu da virgindade das moças já não existe, e estamos livres da pena perpétua do casamento indissolúvel, é chegado o tempo de desmistificar supostas virtudes como a castidade, além de demonstrar que, apesar de sua pregação de paz, as religiões têm servido também à guerra, à escravidão, à tortura e ao massacre de inocentes. Qual, enfim, o seu contributo para a humanidade? Um bem ou um mal?
É preciso ressalvar, de pronto, os casos exemplares das vidas inteiramente dedicadas ao serviço dos “próximos”, e até das imolações, ao serviço de Deus. Entre tantos santos e beatos que reverenciamos, destaco, apenas como exemplo, o caso do padre polonês, canonizado por João Paulo II, que, na 2ª Guerra Mundial, ofereceu-se para morrer em lugar de outro prisioneiro, pai de família, que lamentava o destino a ele imposto pelos nazistas. Mas cumpre-nos levantar “o manto diáfano da fantasia”, para expor “a nudez forte da verdade”: os extermínios das Cruzadas, as fogueiras da Inquisição, o beneplácito à escravatura dos nativos do Novo Mundo, como também as “jihads”, as “fatwas” e os massacres indiscriminados de “infiéis” pelos fundamentalistas islâmicos. A religião tem sido, e continua sendo, o substrato de tudo isso. Retire-se, por exemplo, o componente religioso do interminável conflito árabe-israelense, e o seu principal combustível desaparecerá, abrindo-se a porta para a tão sonhada coexistência pacífica.
Valendo-me da observação cínica, mas infelizmente verdadeira, de Stálin, de que a morte de milhões é apenas uma estatística, enquanto a de um indivíduo isolado pode ser vista como uma tragédia, reporto dois casos emblemáticos de fanatismo religioso. Quando os espanhóis invadiram o Peru, com os canhões e os cavalos que tanto aterrorizaram os incas, o chefe destes, Atahualpa, foi ao seu encontro, pacificamente, cercado de nobres e de numerosa guarda de honra. Um padre maluco ofereceu-lhe uma bíblia, para que a beijasse. Sem entender nada, o imperador jogou ao chão aquele “presente” indigno. Foi o bastante para que toda a comitiva fosse trucidada, sem resistência, como um rebanho de carneiros, e Atahualpa arrancado da sua liteira, preso, e depois condenado à morte. Batizado com o nome de “Juan”, para não ter o destino da morte na fogueira, foi executado, como bom cristão, pelo “garrote vil”, método hispânico ainda mais cruel do que a forca.
O outro caso é o do menino italiano Edgardo Mortara. Em 1858, esse garoto de seis anos, que havia sido batizado, sem o conhecimento dos pais judeus, por uma babá de 14 anos, católica e analfabeta, foi sequestrado pela guarda do Vaticano, e nunca mais devolvido, apesar dos apelos da família e da indignação da comunidade internacional. Para que, uma vez batizado, não fosse criado por judeus, pecadores irremissíveis, o Papa o educou no Catolicismo e o fez frade, pela glória de um Deus exclusivo dos cristãos.
Pode-se argumentar que, nestes casos, trata-se de fanatismo religioso, condenável também pelos verdadeiros crentes. Mas a lógica nos ensina que temos aí uma relação entre gênero e espécie. Se não houvesse religião, poderia haver fanatismo religioso? Sublata causa, tollitur effectus.
Na verdade, e voltando ao tema por onde começamos, o grande mal causado à humanidade pela religião cristã foi o de gerar, para a criatura humana, o conflito entre corpo e alma, entre o natural (onde se situam o prazer e o sexo) e o espiritual (feito de privações e mortificação). Pois, na fórmula do apóstolo Paulo, “o que a nossa natureza humana deseja é contra o que o Espírito quer… os dois são inimigos”. Esse absurdo conflito de um ser dividido é que está na base das neuroses, da histeria, do masoquismo, do mal estar na civilização referido por Freud. E acrescento: também da intolerância e dos fundamentalismos.
Para concluir, reflitamos que a religião, como qualquer produto do cérebro humano, tem os seus lados de sombra e de luz. Já que, por múltiplas razões – históricas, sociais e psicológicas – teremos de conviver, sem prazo previsível, com ela, minha esperança é de que a claridade prevaleça.
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Embora ache que essas grandes desgraças q têm assolado a humanidade têm suas causas mais profundas nas razões econômicas, reconheço que as religiões têm feito, muitas vezes se perder até a lógica econômica na condução desses conflitos, fazendo-os agravarem-se e alongarem-se além do necessário.
Tenho, contudo, uma dúvida: parece-me que essa história da influencia das religiões nas desgraceiras da humanidade são muito mais fortes no hemisfério ocidental e no Oriente Médio do que no Extremo Oriente. É fato, ou mera má informação minha?
José Claudio,
Você está certo quando diz que as religiões no Extremo Oriente não estão na raiz dos problemas nacionais. Conquanto correta a observação do autor de que o Islã chegou à Indonésia, passando pela Índia e Malásia – de onde paulatinamente vai perdendo a virulência desvairada que toma forma no Paquistão -, sua pergunta se referia à Península Coreana, ao Arquipélago Nipônico e ao vastíssimo universo da civilização chinesa – com eventuais ramificações pelo Sudeste Asiático. É isso?
Assim sendo, reitero que você está correto. À margem do circuito das grifes monoteístas do Oriente Médio, essa parte do mundo vê no confucionismo, por exemplo, uma tabulação de pérolas de sabedoria que levam o homem à virtude; e a coletividade à paz social. As ambiguidades não deliberadas, mas que refletiam os tempos do grande sábio, se resumem ao pilar de obediência aos pais, aos mais velhos, ao Estado e ao adiamento da fruição dos prazeres. Mesmo nos tempos de Mao, a China nunca escondeu o respeito por essa vertente cultural.
Xintoístas e budistas acorrem a seus templos nos dois lados do Mar Amarelo e queimam incenso em grandes feixes que adquirem nas datas especiais. Fazem isso com compostura, um sorriso e bastante singeleza e, até nas vertentes cristãs, as igrejas dessa parte do mundo se adequam ao padrão da busca da harmonia e da pregação em voz baixa. A exceção que confirma a regra foi marcada pelo advento do reverendo Moon, cuja marca se espelha na esperteza do chamado evangelismo de prosperidade. O mesmo que assola as redes de televisão brasileiras.
É claro que o Império do Meio – é assim que se chama China em chinês, na mais etnocêntrica das culturas – não tolera os monges tibetanos, devotados que são a esse grande homem que é o Dalai Lama – residente em Darmsala, na Índia. Mas nesse caso a questão é política e se deve à resistência que os tibetanos opõem à ocupação da província pela etnia “han”. Logo, pouco tem de religiosa. Ademais disso, temos condomínios quase laicos como Hong Kong que, de tão plurais, acham consenso mesmo em torno do Deus dólar.
Observo-os de perto há 32 anos e já estive muitas vezes na região. Nunca, jamais, vi ninguém se sair com expressões do tipo “graças a Deus”ou “que Deus o acompanhe” – comuns na fala diária dos monoteístas. O que eles têm em profusão são pequenas supertições. Pagarão o triplo por um terreno se ele tiver bom “feng shui” – uma localização adequada entre correntes de água e de vento. Os hotéis omitem o quarto andar – do terceiro se vai ao quinto – porque o ideograma do numeral é o mesmo da morte. Branco é cor de luto e por aí vai.
Poderia te contar dezenas de casos que corroboram sua arguta observação. Até onde sei, ninguém mata ninguém em nome de Deus e o tremendo progresso dessa parte do mundo se deve ao respeito equilibrado ao físico, o mental e o espiritual – em proporções tanto quanto possível iguais. Educação é um valor extremo e poupança é outro. Um grego – quem mais – em Seoul estaria tão à vontade quanto um gorila num iglu. Isso dito, fico por aqui. Aliás, se fosse oriental, teria aprendido a ser mais econômico nas explicações.
Mas sou de Garanhuns, o que posso fazer?
Um abraço,
Fernando
Meu caro Clemente: quando o assunto é religião, gosto sempre de lembrar uma observação profunda de Chesterton: Quando as pessoas deixam de acreditar em Deus, passam a acreditar em qualquer coisa. Embora dê razão à crítica racionalista da religião feita por Marx e Freud, entre muitos outros, acho que no plano da realidade humana quem está certo é Chesterton. Ao fazer a crítica radical da religião, Marx fundou, à sua revelia, uma poderosa religião secular. Algo semelhante se aplica a psicanálise de Freud, embora ambos aleguem basear-se rigorosamente na ciência. A religião é uma ilusão, como diz Freud no seu ensaio famoso, mas continua e continuará viva. Não acredito que a humanidade consiga um dia libertar-se da ilusão que ela própria criou para suportar o peso da nossa existência contingente.
Fernando: No meu caso, a “crença substituta” é apenas no futuro da humanidade, e na capacidade do homem de, algum dia, livrar-se da superstição. E reconheço o “componente religioso” do marxismo e do freudismo. Alías, meu último artigo desta série é justamente sobre essas mitologias modernas.
José Cláudio: Lembremo-nos que foi no Oriente Médio que surgiram as três principais religiões da humanidade: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Mas também que o islamismo expandiu-se para o Leste, envolvendo a ìndia e a Indonésia.
Grato pelos comentários.
Na realidade ilustre escriba Clemente Rosas, em meu modesto ponto de vista, desde os primórdios a religião foi o ponto de partida para a discórdia. Sempre haverá quele que acredita em seu próprio ensinamento ou em sua maneira de ensinar.
Quanta gente e quantos povos foram destruídos em nome da religião´ou de Deus e dos profetas em que acreditavam? Cruzadas Inquisição. Agora, cada chefe de cada religião, se preocupa em pedir desculpas pelo passado. Resolve? O que de fato existe, é um contraste entre a crença e a religião.