Biden

Biden

A maioria dos eleitores americanos acha que Joseph Biden, atual Presidente dos Estados Unidos, está velho demais para ser Presidente por mais um mandato. Até os eleitores do Partido Democrata, o partido de Biden, gostariam que fosse mais novo o seu POTUS (o que lá se usa normalmente para indicar “President Of The United States). Claro que esse argumento é usado mais pelos opositores do atual governo, sobretudo aquela parte do eleitorado americano que até hoje acredita na afirmativa do ex-Presidente Trump de que as eleições de 2020 foram fraudadas, aqueles que foram convencidos de que têm um Presidente ilegítimo.

Como debater com essa gente, que alguns estimam compor quase um terço do eleitorado americano?  Esses já traduziram o “velho” para “demência senil”, para “trôpego e gago”. Dá para menosprezar como etarismo? Dá para convencer alguém de que mais idade pode ser menos energia, porém mais sabedoria? Será? O problema é que, independente dos fatos, parece que a narrativa colou. Além de que há alguns fatos que já não se podem ocultar, e que estão sendo brandidos pela oposição e até lembrados por membros do Partido Democrata. Donald Trump, o candidato dos Republicanos, que de novo desafia Biden em novembro de 2024, está na frente nas pesquisas de opinião. Ainda que Trump seja apenas 3 anos e meio mais novo que Biden, é a idade de Biden que virou tema da campanha eleitoral.

É narrativa. Nesta era em que narrativas parecem contar mais que fatos. Mas por que começou? E por que já circula há algum tempo, desde as prévias dos dois partidos? Biden, aos 81 anos, é de fato o mais velho POTUS da história dos Estados Unidos. Mas não há prova médica, ou qualquer outra, de que Joe Biden tenha alguma fragilidade incompatível com o exercício da Presidência do país. E, legalmente, só existe a restrição de que o Presidente precisa ter no mínimo 35 anos, não há limite na outra ponta.

A narrativa da senilidade começou a se espalhar junto com um vídeo de 1º de junho de 2023 em que oficiais ajudavam o Presidente Biden a se levantar do chão. Nesse dia, o Presidente Biden foi a estrela da cerimônia de graduação da Academia da Força Aérea, e já ao final, tropeçou em um saco de areia e acabou no chão. Nem se machucou. Mas já não foi mais lembrado o enérgico discurso que fez aos graduados, e nem que acabara de entregar pessoalmente os diplomas.

A pecha piorou quando o Procurador Geral dos Estados Unidos, Merrick Garland, tornou público, em fevereiro deste ano, o relatório de uma investigação sobre retenção de documentos secretos oficiais. Biden teria ficado com tais documentos e feito comentários sobre eles depois de deixar a Vice-Presidência, que ocupou de 2009 a 2017. Tal relatório, preparado como confidencial pelo advogado especial (“special councel”) encarregado do caso na Procuradoria Geral, Robert Hur, “levantou evidência de que o Presidente Biden intencionalmente ficou com e comentou material classificado após sua vice-presidência, quando era um cidadão particular”. Isso é crime e, aliás, corre contra o ex-Presidente Trump um processo pelo mesmo crime, desde que o FBI descobriu que Trump levara caixas de documentos classificados da Casa Branca para Mar-a-Lago.

O advogado Robert Hur decidiu que Biden não deveria ser processado, pois “a evidência não permite concluir pela culpa de modo a excluir alguma dúvida razoável”. E justificou: “num julgamento, o Sr. Biden provavelmente se apresentaria ao júri como um idoso compreensivo, bem-intencionado, com uma memória fraca, como se apresentou a nós quando o entrevistamos”.

Os advogados de Biden haviam alegado que ele se esqueceu de que havia levado os documentos. Quando o Procurador Geral Garland tornou público o relatório, em 8 de fevereiro deste ano, causou uma confusão dos diabos, e Robert Hur já não pode andar sem seguranças. A Professora de Direito de Harvard, Jeannie Suk Gersen, ao relatar sua entrevista com Robert Hur, mostra porque o relatório deixou furiosos tanto membros do Partido Republicano, quanto do Partido Democrata (Jeannie Suk Gersen, Why Robert Hur Called Biden an “Elderly Man With a Poor Memory”, The New Yorker, 22 de março de 2024). Biden, indignado, convocou imediatamente uma conferência de imprensa. Aos repórteres, respondeu à caracterização de Hur: “Sou bem intencionado e sou um homem idoso e – raios! – sei perfeitamente o que estou fazendo” (…”I know what the hell I’m doing”). Revoltou-se com a observação, no relatório, de que não se lembrou do ano em que morreu seu filho: “How in the hell dare he raise that.”

Robert Hur foi convocado a depor perante o Congresso. Republicanos acusaram o relatório de “facilitar” com o Presidente apesar dos indícios de criminalidade. Ignoram, ou fingem ignorar, que a investigação da Procuradoria Geral sempre foi uma faca de dois gumes, e que uma condenação de Biden no caso teria reforçado a probabilidade de uma condenação de Trump por ficar indevidamente com caixas de documentos classificados. Democratas alegam que, como não conseguiu justificar a abertura de processo contra o Presidente, o relator decidiu prejudicá-lo politicamente. E, no entanto, nem “senil” nem “incapaz” foram palavras que apareceram no relatório em referência a Biden. A Casa Branca, que considerou a referência à memória de Biden “desnecessária, provocadora e preconceituosa” teria preferido a recomendação de processá-lo? Para o Departamento de Justiça, o relatório cumpriu as exigências legais.

Mas, e as eleições? Trump está na frente nas pesquisas, mas no sistema americano o que decide não é a maioria do voto popular. Não se sabe se Trump tem maioria também nos maiores colégios eleitorais. Aguardava-se o impacto que teria o tradicional “Discurso sobre o Estado da União”, lido por Biden em 7 de março na sessão conjunta do Congresso. Foi aplaudido quando deu seu recado a Putin. Alertou que a liberdade e a democracia estão sob perigo no mundo. E nos Estados Unidos? Não chegou a tanto? Tratou de incutir confiança no público, “para continuar sendo a economia mais forte de mundo”. Falou da lei do aborto e defendeu o direito à escolha, tratou da crise na saúde, vacinas, emprego recorde, consumo e “Buy American”, do crédito tributário de 800 dólares por pessoa para a saúde, financiamento de moradias, e lembrou dos seus 46 mil projetos de infraestrutura. Também falou das malparadas negociações bipartidárias para a segurança das fronteiras e contratações em massa de funcionários para lidar com a imigração. Enfim, tentou definir a pauta do que precisa ser discutido numa campanha eleitoral.

O desempenho foi regular. Ao que parece não mudou o clima da campanha. Ao menos a imagem de Biden não piorou. Resta a esperança dos debates anteriores à votação, em que um Trump destemperado possa dar uma derrapada. Claro que seria melhor que o visual e a voz de Biden fossem mais jovens. Claro que a idade de Biden não é a ideal e, assim, como observou um analista no The New York Times, não há como fugir do assunto. (Frank Bruni, The Overlooked Truths About Biden’s Age, 28/03/2024). Mas acrescenta: Biden não é Atlas, é POTUS. A presidência não é missão solo. É trabalho de equipe, e o time que um presidente reúne importa muito mais do que quantas horas por dia ele pode trabalhar ou fazer discursos. Um presidente é tão bom quanto os assessores em torno dele, cuja escolha depende de bom senso e não da força da voz.

Na verdade, o que essa contagem de aniversários de Biden está escondendo é a verdadeira escolha. Biden comprovadamente tem muito mais bom senso que Trump, é aquele que tem o devido respeito pela democracia e é uma pessoa com princípios. Frank Bruni, do NYT, argumentou que é preciso desmascarar a mentira de quem diz que vai com Trump porque Biden é velho.

A idade não é a métrica para comparar Biden e Trump.  Quem vai com Trump não o faz porque este se movimenta com mais força e fala mais alto. O provável é que goste do que Trump promete, talvez a redução de impostos para as corporações e os ricos, talvez a grosseria, intempérie e imprevisibilidade, a ostentação e pouca cultura, a sonegação de impostos, talvez as medidas radicais contra imigrantes, sua simpatia por ditadores e autocratas, seu desprezo a leis, regras e procedimentos acordados. Para quem gostaria de um Biden mais novo, optar por Trump é inimaginável.