Fernando da Mota Lima

Se eu fosse um homem sábio, minha vida seria regida pelos princípios que abaixo especifico:

1 – O sentido da minha vida seria fundado no meu eu. Um dos erros mais insensatos em que incorremos é o de fundar esse sentido em algo fora de nós. Com o perdão da terminologia pedante, traduziria este princípio como o da autonomia ontológica.

2 – O ser deve realizar-se regido antes pela vontade do que pelo desejo ou o prazer. O desejo privado de potência é a via mais curta para a nossa infelicidade.

3 – Nunca aprisionar a realização do ser em um ideal absoluto, seja ele o amor, o poder, a família, a riqueza material, a utopia política, a religião… Como forjar, com base na nossa condição contingente e falível, qualquer coisa absoluta e perfeita? No entanto, esse ideal impossível, observável nas nossas concepções filosóficas, políticas, religiosas etc, atravessa a história humana como um rio vertendo desilusão, sangue e catástrofe.

Comentando livremente os princípios acima, menciono quatro homens que, no meu entender, realizaram o ideal de sabedoria condensado nos princípios acima expostos:  Sócrates, Epicuro, Montaigne e Spinoza. Embora fosse cristão, Montaigne elegeu Sócrates como seu modelo, não Cristo. Aliás, acho que Sócrates está para a tradição filosófica ocidental assim como Cristo está para a tradição cristã.

Transpondo o comentário para o mundo em que vivemos, penso que as tendências culturais dominantes desdobram-se no lado avesso dos princípios acima expostos. Se estou certo e os princípios que postulo têm alguma validade, resta logicamente concluir que estamos vivendo na contracorrente de qualquer possibilidade de uma vida sábia. Traduzindo de um modo mais corrente, cavamos nossa infelicidade enquanto nos iludimos supondo viver em conformidade com “qualidade de vida” e outros clichês publicitários. Embora tanto falemos em autonomia e liberdade individual, em liberdade de escolha e outros belos ideais, pouco notamos o quanto vivemos regidos pela heteronomia ontológica, para dizer o avesso do que acima designei como autonomia ontológica.

Quanto à relação entre a vontade e o desejo, friso nada ter contra este. Pelo contrário, seria ótimo vivermos em conformidade com nossos desejos, ou realizar nossos desejos mais importantes. O problema é que a cultura hedonista dominante no presente promove a ilusão sistemática da realização do desejo, não importando qual seja. Num mundo reduzido ao império da mercadoria, realizar nosso desejo significa, trocando em miúdos, ter o poder de comprar. No caso, não só confundimos o ter com o ser, mas vivemos como se o princípio da nossa potência de realização do desejo, qualquer desejo, residisse no nosso poder de compra.

Em suma, ter é ser e ter é deter a potência de comprar. Esta me parece ser a fonte primacial da nossa infelicidade, da nossa insatisfação que se nutre do consumo insaciável. Somos infelizes e permanentemente insatisfeitos porque somos prisioneiros de uma ordem de funcionamento da realidade fundada na busca insaciável do desejo. O desejo não pode nunca alcançar sua satisfação, pois assim o funcionamento do sistema de consumo se esgotaria. Esta lógica, expressa em termos de mercado, é extensiva à totalidade da nossa experiência subjetiva, já que ela foi aprisionada pelas regras universais do mercado. Num mundo onde tudo tem preço, perdemos a noção do nosso valor não monetário. Não é portanto à toa que nosso valor passa a ser mensurado pelas leis do mercado. Tudo aparenta reduzir-se a duas perguntas que governariam nossas vidas: qual é o seu preço? Por quanto você se vende?