Fernando Dourado

Anoitecendo em Estocolmo.

Anoitecendo em Estocolmo.

17 de setembro – Tarde intensa de trabalho e troca veemente de ironias. Amadores, isso é o que são. É bom manter distância dessa tribo por medo de contágio. Pois bem, não é que terminei sendo alvo de todas as antipatias e mesquinharias da alma humana? Mas não vou me vitimizar, já passei da idade, se é que a tive um só dia. Logo, o melhor é esquecer. Como vou fazer uma viagem rápida amanhã, verifico as pendências e vejo que preciso ainda dar uma entrevista para um jornal. Concluo-a e acho que vai dar tudo certo. Isso feito, pensei, por que não sair para me divertir um pouco? Quer saber? Aulas, tudo bem. Entrevistas sobre elas, por outro lado, sempre me deixam de pé atrás porque já vi muito jornalista dar ênfase ao que não merece e deixar passar o principal. Nada aborrece tanto o ser humano quanto isso, salvo ser roubado. Mas não haverá de ser o caso, senti firmeza nas perguntas.

Fomos jantar na parte alta dos Jardins, já depois das dez da noite. A hostess me recebeu em festa, mas fui logo dizendo que estava voltando de teimoso que era, e que, da última vez, as alheiras estavam encharcadas e o cozinheiro merecia a guilhotina ou o equivalente dela em Portugal: aulas de castelhano intensivas, diárias. Ela disse: pode deixar, dessa vez vai sair tudo direitinho, seu Dourado. Meu amigo – um montanhês ensimesmado -, vive dizendo que eu tenho que aprender a tratar bem a senzala. Fato é que ele não sabe perceber a mescla equilibrada do tom autoritário e do carinho subjacente – isso só o nordestino percebe. E, em certa medida, o gaúcho também. Mineiro, é mais difícil, é gente mais encruada. Mas não me alongo em explicações antropológicas rasas e passamos à mesa.

Resolvi pedir a degustação de sete pratos a muito bom preço, desde que dividida para dois. E assim começamos com uma sopa fria de abacaxi com perninhas de lula salteadas. Em seguida, um enorme camarão no ponto, tenro e sabendo a curry. Depois, uma nesga de bacalhau com grãos de bico, bastante delicada. Por fim, foi a vez da morcela com maçã verde – tão boa quanto nunca se fez igual no Brasil. Vale dizer que a farinheira estava tão bem defumada que nos sentíamos em Chaves, entre as aldeãs. E sua excelência a alheira, dessa vez veio sequinha e com grelos durinhos. Por fim, comemos duas lâminas de bom queijo da Serra da Estrela com marmelada. A sobremesa foi uma degustação de toucinho do céu, salame de chocolate com nougat e encharcada de ovos moles. Lavamos tudo isso com duas garrafas de espumante brut  a bom preço e, de teto aberto, assim aplacamos o calor inclemente da noite sob as raras estrelas.

Vou recomendar esse lugar, disse o amigo empolgado. Nem a cacete, rapaz. Esse endereço tem que ser guardado a sete chaves. Caso contrário, logo não encontraremos lugar para nós mesmos e os preços vão disparar. Se essa paleta de porco preto cai nos ouvidos de um pernambucano sequer, isso aqui vira local de romaria, o endereço se torna endêmico. O recifense é o povo mais fissurado em culinária lusitana que existe. Se duvidar, é mais do que os próprios. Não esqueça, o gatilho inflacionário está pronto para nos catapultar a dois dígitos. E por aqui ficamos. Passei o resto da madrugada lendo sobre a China, e fumando um charuto – o que não deveria por causa da asma. Ainda tomei um gole de conhaque Ararat, armênio, uma delícia que trouxe da Rússia. Bem que podia ter aproveitado a paz da noite para fazer uma malinha sumária de um terno e três camisas, mas uma sanha de procrastinação enfermiça remete tudo à última hora.

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18 de setembro – Acordei acelerado, disparei telefonemas e lembrei que não tinha providenciado algumas coisas para a volta, dia 24. Entre elas, um horário com Selma – que corta meu cabelo há uma década; pegar a roupa na lavanderia e encomendar uma apresentação básica sobre o Sudeste Asiático para uma empresa de publicidade. É que ao regressar desse bate-e-volta, terei que ir para São José dos Campos no mesmo dia, mal parando em São Paulo. Sentei ao computador e distribuí então algumas instruções. Isso porque preciso viajar às três da tarde, logo convém sair de casa ao meio-dia pois hoje é sexta-feira e não quero – nem posso – me expor a riscos na Marginal engarrafada. Cadê o monotrilho de que tanto falaram? Patranhas.

Uma notícia boa: a Folha de Pernambuco publicou uma singela homenagem que fiz a Paulo Gustavo, agora imortal, que tomará posse na mesma noite na Academia Pernambucana de Letras. E eu que lhe tinha prometido que estaria lá para abraçá-lo pelos tantos anos de amor à nossa malbaratada língua. Pelo menos, o artigo saiu e, quem o leu, viu que ali também rendi uma homenagem a uma parte de nossa infância quase Banderiana. Rememorei o período em que saltávamos da lotação e conversávamos sobre o futuro. Eu era leve a atlético. Bem diferente desse gordo arfante e de juntas doloridas que me fazem pagar, desde já, os pecados que ainda espero cometer. O pior é que sou como papai: não acredito em medicina. Muito menos em médico jovem, ou seja, de menos de 50 anos.

Atenildo está atrasado e telefono ameaçando pegar outro táxi. Puta que o pariu, rapaz, você sabe que eu sou doente por pontualidade e me faz uma presepada dessa? Ele sabe disso, mas me jura que já está na alameda Campinas, virando a rua de cima. Chega cabisbaixo, chateado com o esporro, mas o poupo de vitupérios e apupos. São Paulo é isso mesmo e dez minutos não chegam a matar. Mas provoco: olha que o Uber está chegando, vocês vão ficar a água sem pão desse jeito. Quando vi que o trânsito não estava tão ruim, relaxei e começamos a conversar sobre a psicologia feminina – a mais vã das ciências e a preferida dele. Ele fica por conta quando eu digo: mulher é isso, cara. Se não quiser esses aborrecimentos, é tempo de se converter e arranjar um namorado. Pai me mata, ele diz.

Fiz o check in em minutos e fui para o lounge da empresa para tentar trabalhar antes da decolagem. Enchi um copo de vinho bojudo de espumante seco, gelado e me isolei numa sala onde celulares, crianças e animais são proibidos. Um chato veio me cumprimentar, mas dispensei sob a alegação que estava afônico. Ainda me desejou melhoras, o cretino. Abro Será? e vejo uma foto que João Rego pescou. É do antigo colégio Padre Félix e ilustra uma crônica de João Humberto – este cada vez mais nostálgico à medida que encosta nos 60. Cacete, o que faço aqui, hein? Meu lugar hoje era lá, no balneário recifense. Fui me servir de mais bebida e comecei a me sentir melhor.

Embarquei e me acomodei com um monte de jornais e livros, mal olhando para o vizinho. Mas um português puxou papo e, depois de alguns prolegômenos, disse uma verdade solar: o Brasil é um caminhão descendo desgovernado ladeira abaixo. E que, de todos os grupos de estrangeiros que conhece, só quem consegue trabalhar bem aqui são os italianos. Se forem sicilianos, ainda melhor. Eis uma verdade cristalina. Quem disse que português é burro? Ele está certíssimo. Só mesmo quem vem de uma sociedade cheia de vícios e dada a jeitinhos e gambiarras pode suportar essa sanha legiferante e o panorama de incerteza jurídica que perpassa até os tempos de bonança. Italianos adoram. São brechas regulatórias que lhes permitem jogar como gostam: no contra ataque.

Sobrevoamos Mossoró no entardecer quando terminei os jornais e decidi ver Stromboli. Que filme extraordinário; que cena linda a dos pescadores de atum e que interpretação maravilhosa de Ingrid Bergman. Para quem está a caminho da Suécia, é alvissareiro. Abro a caixinha de remédios e, consternado, vejo que só levei o de combate à hipertensão. Esqueci, portanto, o desgraçado do Frontal. Leio: “A dosagem de Frontal deve ser gradualmente reduzida, visto que a suspensão abrupta de qualquer agente ansiolítico pode resultar em sintomas similares aos mesmos sintomas que são objeto do tratamento. Os sinais e sintomas de suspensão abrupta podem incluir: ansiedade, agitação, irritabilidade, tensão, insônia e, ocasionalmente, convulsões”. Era o que me faltava. Mesmo assim, dormi.

Acordei com uma turbulência desesperadora. À direita, mais a nordeste, Casablanca, no Marrocos. Ao sul, Lanzarote, nas Canárias e, a noroeste, Funchal, na Madeira. Águas tépidas, teoricamente agradáveis para nadar, se sobrevivermos ao choque. Anoto as coordenadas da morte a lápis numa mesinha embutida no braço da poltrona: 12,192 metros; 6930 quilômetros percorridos; 1077 faltantes e voando a 887 quilômetros por hora a velocidade do solo. Fica o lembrete para os escafandristas da posteridade, caso não achem a caixa-preta. Concluo: voamos 7 horas e 59 minutos e são 23:55 na origem; 3:55 no destino – onde não chegaremos. Mas então o avião estabilizou e todos suspiraram. Senti uma frustração. Tomei um chá e escrevi um pouco mais. Serão seis dias sem tomar o remédio.

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19 de setembro – Cheguei a Lisboa e fui direto para o salão Victória e sentei ao computador. Deparo com um aborrecimento atrás do outro e um deles é que uma amiga francesa está nas últimas. O marido não diz do que se trata, mas desconfio da besteira que ela andou fazendo. Pobre mulher. Desde que a filha morreu, não pensava em outra coisa. Isso não me surpreende sequer um pouco, mas devo reconhecer que o ocorrido foi mesmo brutal. E ela não é mulher de se consolar em batas de padre ou em sessões de mesa branca. Leu muito Voltaire para se confortar com a fé. Não obstante poder ver o túmulo da filha praticamente da sacada do apartamento, adquirido com esse propósito, ela ainda vai lá todo dia e se senta na pedra de granito. E ali vai atualizando-a do mundo.

Mas também tem notícia simpática. Saiu uma entrevista minha no Jornal do Commercio.  Minha mãe vai falar de minha cara bovina, como faz há quarenta anos. E vai dizer que tinha que ter escolhido outros óculos para a ocasião. Para ela, foto é coisa seríssima, digna de pose. Era paramentados que iam todos ao estúdio de seu Esperidião, em Garanhuns. Tomo mais uns copos de espumante. Pego então um monte de jornal e sigo direto para o portão, onde embarco para Estocolmo. Ainda tenho quatro horas no ar pela frente. Isso significa que só chegarei à cidadezinha à noite, pois esta fica a duas horas de trem do centro da capital. Vida de corno essa que escolhi. Tem horas que fico pensando se não teria feito melhor negócio se tivesse me dedicado a escrever e pintar.

Estocolmo está linda; a temperatura, ótima. A água é de um lindo azul-cobalto e se vivem as últimas horas do verão. Muitos voos chegam da área mediterrânea em Arlanda. Diz a lenda que as suecas bronzeadas na bunda, passaram o verão em casa. As que estão com a bunda branca, viajaram. Dia curto esse, me roubaram cinco horas de fuso. Chego ao hotel acanhado e tomo uma sopa. Aqui não sou louco de beber que vou à bancarrota. Amanhã, tenho um brunch com dois diretores de projeto. Por trás disso, nada menos que um dos cheques mais gordos que o Brasil passará. Honrando o esforço pátrio, consegui que essa turma trabalhasse num domingo, o que já foi uma proeza. Fico insone, é claro, não tenho remédio. Leio sobre a China e me reviro. Vamos ver se os suecos serão pontuais.

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20 de setembro –  Que homens cansativos, que sujeitos previsíveis. E, ao mesmo tempo, como são corretos e cordatos. Menos mal que já trabalho com esse povo há mais de trinta anos, caso contrário enlouqueceria. Especialmente se privado de meu remédio. Eles parecem saídos dos filmes de Bergman. No fundo, morrem de medo de dizer alguma coisa que pareça presunçosa – o que é uma forma de presunção – e, o que é o pior, enrubescem com minhas perguntas diretas. Os pontos que enfatizarei com o cliente brasileiro serão os clássicos. Na Suécia, ao contrário do que é comum em alguns rincões brasileiros, não há distanciamento de poder e as hierarquias são horizontais. A cultura de planejamento é levada a sério, da mesma forma que se buscam obsessivamente saídas consensuais para os impasses.

É, mas um deles sabe que os gerentes brasileiros gozam de poderes excessivos e isso o preocupa. Fique tranquilo. Passarei a mensagem de que até mesmo o presidente da empresa é, antes de tudo, um primus inter pares. Reforçarei que o uso do tempo na Suécia é na base ativo-linear, bem diferente do emprego médio do tempo brasileiro que é circular e multiativo, logo dado a dispersões -, mesmo no setor aludido que é do mais alto high-tech. Foi uma conversa boa, mas não posso me demorar sobre ela por conta de cláusulas de confidencialidade. Passei a tarde estudando e pestanejando até a hora do jantar. Fui dormir com um prato de langostins no vapor e dois copos de destilados. E, até pela falta do remédio, sonhei.

Ah, esse sonho merece parênteses. O sonho se dividiu em duas partes. Na primeira, Sulamita – baixinha, deliciosa, olhos azuis e loiríssima -, me acompanha até o carro e se despede com um beijo mais caloroso do que o normal. Eu não tenho pressa de sair e pergunto por Aaron, o marido dela – o sabra que ela trouxe de Israel há mais de vinte anos, dos tempos que ainda estudava veterinária. Ela fez um gesto de desdém delicioso e disse que ele não era do ramo e que, portanto, já não estavam juntos. Ademais, não somente vinha sendo um zero à esquerda como marido, mas tinha revelações graves a fazer. Aaron, sem que disso jamais ela desconfiasse, tinha uma família em Nablus, na Cisjordânia. Gente ligada a beduínos palestinos, cuja tradição era ritualizada e cheia de códigos.

Quando descobriram que ele era casado no Rio de Janeiro, o patriarca o ameaçou de morte se ele não doasse metade da fortuna que amealhara no Brasil à parte ultrajada. Então Sulamita teve que arcar com mais esse dissabor, dentre outros. Especialmente porque a fábrica fora fundada por seu pai. Então, colocou a mão em meu ombro e disse que, por outro lado, vinha sendo bom. Estava agora mais livre e se sentia tão atraída pela vida quanto nos tempos de estudante. Acordei, fui ao banheiro urinar e voltei para dormir, fascinado por revê-la com nitidez depois de mais de dez anos. Podia não ser nada. E, de fato, era só um sonho. Mas então veio mais: uma inusitada sequência, a parte dois.

Isso porque quando retomei o sono, Sula reapareceu de cabelo curtinho – era melhor longo -, e caminhamos pela grande feira setorial que visitávamos juntos em Milão. A certa altura, esbarramos com costureiros famosos que queriam tirar fotos com ela e lhe dizer o quanto estava linda. Um mais ousado – não homossexual e de sotaque cearense – tentou lhe fazer uma corte, mas não deixei que progredisse. Passado esse momento, o que aconteceu? Combinamos de passar o Carnaval juntos e, faceira de tudo, ela mostrou uma foto que tirou em duas peças num baile recente. Num arroubo incontido, suspirei. Então Sulamita começou a perguntar em série: é isso o que você quer? É isso o que você quer? É isso o que você quer? Num tom que foi num crescendo que eu já não podia conter. Nem me conter.

Na sequência, os rostos se aproximaram lentamente e eu já podia lhe aspirar o hálito libidinoso e mentolado, e sentir a pequenina língua molhada que se insinuava entre meus lábios. Então, despertei, empolgado e triste. Fui até a cortina, abri a janela para saber onde estava. Era o último fim de semana de verão dos suecos, quando todos ganham as ruas com um entusiasmo febril para armazenar na pele o calor dos raios frios que logo haverão de sumir, banindo o hábito estival da pouca roupa e dando por finda a estação dos sorrisos. Eu estava sem o remédio dá duas noites. Menos mal que a abstinência me brindara com um sonho ousado e bem narrado. O que seria feito dela. Será que ainda vive com aquele cara rude e catingoso? Vá entender mulher. Fechei a janela e, em vão, tentei dormir.

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21 de setembro –  Registrei-me num hotel mal localizado em Estocolmo, mas era o único onde o preço me pouparia a consciência diante do esfarelamento do real. Tem que saber tirar o lado bom da coisa – a proletarização da classe média será um dos legados tangíveis da demissionária. O hotel, apesar de minimamente confortável, se chama New World e é uma quase espelunca chinesa, sem recepção nem sequer um bar para servir um copo d´água. Fica localizado em cima do mercado de descarga de frutas e cargas frigorificadas. Tenho que andar vinte minutos para chegar à estação de metrô de Ästerberg, mas não sou homem de frescuras nem de queixas. Tenho horror a melindres, aliás. Tem hora de curtir e hora de ser espartano. Estou há décadas acostumado a essa esquizofrenia.

Passei mais uma noite insone e despertei cedo para comer pão sueco, queijo báltico com grãos de pimenta, salame, cereais e laticínios – tudo que pudesse debelar o sono infernal que sentia. A meu lado, só motoristas de caminhão que me olhavam de soslaio. De onde saíra aquele colega de terno e gravata? Muitos eram turcos e lhes perguntei sobre o que viram nas estradas de lá para cá. Levas e levas de refugiados, disseram. Isso é só o começo. A Europa estará de cabeça para baixo em dois anos, garantiram. Uma bala no momento certo contra a pessoa certa poderia poupar milhões de vidas. Mas onde estão os estadistas do gatilho, só faltaram perguntar. Merkel, das mulheres a melhor, armou uma bomba de tempo para explodir no coração da Europa – dizem com pragmatismo.

Interessante que os motoristas são relativamente jovens, mas todos extremamente obesos, em seus corpos em formato de pera. Passam o dia sentados, certamente distraindo a boca com alguma guloseima e, pelo que vejo comerem, não têm a menor preocupação com o que seja saudável. Mas, porra, quem sou eu para ficar pensando essas bobagens? Os caras têm trinta anos e por certo contam com uma boa faixa de impunidade etária pela frente. E eu que tenho o dobro dessa idade? Levanto preocupado, sei que o remédio faz falta para dar senso de proporção às coisas. Já me vejo infartando no metrô. Pelo menos terei morrido na Suécia. O fato é que lhes invejo a profissão como nenhuma outra.

Almoço na cidade e vou à minha livraria preferida. Como é pré-temporada para o Nobel, os candidatos expõem seus livros exaustivamente nas prateleiras porque por ali transitam muitos dos jurados. Um japonês fotografa pilhas imensas de reedições coloridas de Murakami. É um país todo torcendo por um desfecho. Nem o Brasil torce tanto pelo fim da era Rousseff quanto os nipônicos por seu escritor pop-star. Converso com o fotógrafo e digo que gosto de Murakami, mas que meu candidato se chama Amós Oz. Ou, na mesma vertente, David Grossman. Embora seja uma injustiça brutal que qualquer outro israelense – incluindo Yeoshua ou Aharon Appfefeld – deixe Oz em segundo plano. Deveria ser uma premiação coletiva e o Safra gerenciaria a rentabilidade.

Cai uma chuvinha eu apresso o passo na saída de Odengatan para não me atrasar. O embaixador Marcos Pinta Gama me espera para uma audiência e encontramos vários pontos de convergência, ainda que não claramente explicitados, como pede o protocolo. Noblesse oblige. Na verdade, queremos trocar impressões sobre a situação do Brasil na Suécia no bojo do contrato celebrado, mas a conversa é eivada de metáforas. Por trás do diplomata alto e elegante – mais parece um escandinavo – paira o retrato da Presidente de faixa verde e amarela, cuja visita oficial à Suécia ele está empenhado em organizar. Aquela foto ali é tão deslocada quanto seria um despacho de macumba numa sinagoga. Evito o olhar dela que me dá urticária.

Presente à sala, o jovem Primeiro Secretário Benedito Ribeiro, que já trabalhou em Tóquio com o Embaixador Marcos Abbot Galvão, meu candidato a Chanceler e veterano de boas conversas em Brasília, há mais de trinta anos. Agora ele está na OMC. Outro amigo da velha guarda, o Paulo de Oliveira Campos, assumirá Paris em breve. A ele devo muita conversa boa sobre o Japão, lá por 1985, quando era Ministro-Conselheiro. Enfrento mais uma noite em claro, sempre mergulhado nos livros e amaldiçoando a hora em que deixei os comprimidos em casa. Logo eles já não farão mais falta, mas as olheiras me perpassam o rosto de búfalo-cafre. No bojo da matéria que saiu no JC, chega muito e-mail do Recife de gente interessada em aprender mais sobre negociações interculturais. Criei um problema.

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22 de setembro – Madruguei para pegar o trem que sai da estação central de Estocolmo para o aeroporto de Arlanda. Logo, hoje não tive conversa com caminhoneiros sobre os descaminhos das estradas europeias. Chego ao aeroporto e vou direto para o lounge da SAS e devoro dois jornais enquanto tomo uma xícara de café, pão sueco, geleia de amora e um queijo amarelo meio sintético. Embarco num Embraer da LOT – companhia aérea polonesa – para Varsóvia, onde me espera meu amigo Artur – ex-cônsul da Armênia em São Paulo e agora um próspero homem de negócios na Europa do Leste. Vejo com alegria que já está se virando no polonês, além de falar bem inglês, russo, armênio e português. Passamos rapidamente na casa dele e me apresentou a nova esposa.

Que princesa, Artur. Conheceu-a pelo Facebook, também é armênia, tem trinta anos, é belíssima e nunca tinha saído de Yerevan. Está felicíssima em Varsóvia e já conhece a cidade mais do que ele. Dou os parabéns. Uma mulher daquela estirpe era tudo do que ele precisava. Essas mulheres têm o frescor de estar descobrindo o mundo e terminam por nos contagiar com sua alegria e achados. A anterior era uma figura sinistra e agora trabalha no cerimonial da Presidência da República, em Yerevan, emprego que ele conseguiu. É assim que se faz. Zé Dirceu era mestre em pendurar os cachos dele no erário. Ele não entende a analogia e eu a traduzo. Ele ri com alegria e vamos caminhar pela região do velho Gueto de Varsóvia que ele não conhece direito.

Mostro-lhe mais algumas ruas que me são caras de duas décadas. Especialmente a Krochalma, onde viveu Isaac Bashevis Singer e, por um curto período, um ex-sogro, já falecido. Levo-o também à Senatorska e aos Jardins Saxônia. Enquanto caminhamos, falamos das possibilidades de exportação do Brasil – agora com um dólar de quatro reais. Digo cruamente: eles acabaram com a indústria brasileira; se comportaram como se estivessem para se tornar um emirado tropical. Tivemos a maldição do petróleo antes mesmo de tê-lo. Ele diz que eu pareço cansado e falo do remédio. Levo-o para almoçar no restaurante judaico Pod Samsonen onde, em véspera de Yom Kipur, tomo uma sopa de beterraba; como meio-ganso assado com maça e emborco uns tragos de vodka.

É incrível o quanto ele sabe pouco do que resta da Varsóvia judaica, mas é compreensível. O holocausto dele é outro. É o armênio e ele me fala da grande exposição que fizeram esse ano na rua principal do centro velho da cidade sobre o centenário do Genocídio, perpetrado pelos turcos – povo por quem ele não tem a mínima simpatia. Assim como torce o nariz quando falo das belezas do Azerbadjão. A geopolítica da região é qualquer coisa de fascinante. Esse ano ainda quero ir à Armêmia e à Geórgia e talvez possamos fazer isso juntos, a depender dos negócios. Combinamos algumas ações e paramos num bar do Cáucaso para um café forte e uma dose de conhaque Ararat – armênio – que ele sabe ser meu favorito. Despedimo-nos com saudades e voltei a dar as felicitações pelo novo casamento.

Entrei direto para a sala VIP da Star Alliance do aeroporto Chopin, de Varsóvia, e me servi de espumante gelado. Comecei a escrever porque a correspondência está atrasada. Como mantê-la se quase durmo sobre o teclado? Depois de quatro dias, acho que é melhor suspender o remédio de vez. Aliás, não sei nem desde quando o tomo – dois anos, talvez – e qual foi a alegação. Os sonhos são sempre de uma nitidez impressionante. O aeroporto é um primor e penso em comprar uns defumados para meus primos, mas já preciso correr para o portão. Sou o último passageiro para Paris. Sento na poltrona e quase desmaio. Uma criança ucraniana chora tão alto que todo meu enlevo pelos meninos daquela idade que desencadeou a aparição de um pequeno na praia de Bodrum, se evaporou por completo.

A mãe me olha feio. Quase digo. Se fosse meu, juro, eu o trancaria no banheiro e ele só sairia quando parasse de urrar. Estava com dor de ouvido? Pois bem, todos nós estamos com dor de ouvido. Tenho uma pedagogia toda especial para crianças, admito. Mas pela minha cartilha elas jamais podem perturbar um adulto. Jamais. Não, decididamente minhas reações estão exacerbadas e o remédio deve ainda estar dando os coices derradeiros. Normalmente, eu ficaria simplesmente revoltado, mas dificilmente positivaria minha reação com um ato de desagrado explícito. Agora, não. Agora eu olho, encaro, faço muxoxos, xingo em russo e faço que tampo os ouvidos com os dedos. Fica difícil saber quem é a criança, diriam alguns.

Chego a Paris e me alojo num hotel perto do aeroporto que á a coisa mais transada que vi nos últimos anos. O check-in é automático, os corredores são decorados de frases de viajantes (na porta de meu quarto tem um provérbio argelino que diz “Qualquer problema começa a ser resolvido com uma caminhada”); o bar funciona 24 horas; o restaurante idem e o bom gosto da decoração é à toda prova. Só fiquei nele por conta da promoção, mas confesso que, pela conveniência, ele valeria o preço cheio. Um pequeno tablet na cabeceira cria as situações mais malucas que se deseje no ambiente. Até os filmes pornô são um desafio tecnológico. Pois com uma tela de altíssima resolução ao pé da cama, as protagonistas precisam realmente ser muito bem cuidadas. E, é evidente, mulheres bem cuidadas fazendo coisas inimagináveis e pretensamente vulgares são muito atraentes para o espectador.

Se não posso dar o nome do restaurante português de São Paulo, não tenho problemas em recomendar esse hotel na Grande Paris. Chama-se Citizen M e está próximo à saída do terminal 1 do Charles de Gaulle. É talvez o melhor hotel de aeroporto do mundo, pelo menos o mais charmoso. O quarto bem transado, contudo, não me permitiu dormir, ainda por conta do remédio. Então, li e escrevi. No breve cochilo, pensei no longo dia que começara em Estocolmo, continuara por Varsóvia e terminava agora em Paris. Fernando, amigo velho, já não tens trinta anos para fazer uma estripulia dessa num só dia. Quando conhecerás teus limites? Na UTI? E chega de ver esses filminhos. No dia seguinte, tinha que acordar cedo e deixar aquela cama deliciosa.

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23 de setembro – A quarta-feira está bonita e desperto um pouco ressacado porque, a certa altura, desci até o bar e tomei uns copos generosos de Heineken. Bronca pequena. Tomei o RER e fui até o hospital visitar o meu amigo. A esposa dele saiu do coma, é verdade, mas ele disse ter lido em seus olhos que da próxima vez ela se empenhará mais pelo sucesso da empreitada. Nada de quarenta comprimidos de tranquilizante, senão oitenta. Tudo, tudo na vida perdeu o tempero, o encanto, diz ele. A filha poderia ter sido o que quisesse. Poderia ter pedido aquilo com que sonhasse e ele lhe teria colocado os maiores devaneios aos pés. Uma doença traiçoeira não deixou que essa vida principesca progredisse.

Despedi-me com as palavras de apoio próprias do momento e lamentei não poder vê-la porque sei que sempre consegui lhe arrancar um sorriso. Triste, que fosse, mas sempre um sorriso. Ela dizia que o universo de interesse da menina tinha muito a ver com o meu. E, das vezes que saímos de concertos juntos, ela me segurava o braço como se estivesse na companhia da amada filha. Passei rapidamente pela minha livraria preferida no Boulevard Saint-Germain e assuntei com Daniel, dos melhores livreiros da capital, o que tinha de excepcional e que coubesse num orçamento de 150 euros. Peguei duas gemas a 70 e economizei o resto para a próxima. Ao meio-dia em ponto me reuni com uma ex-aluna de Dakar no Café de Flore que mais parece Naomi Campbell. O que queria?

Pois bem, ela participou de um programa que dei na FGV e desde então manteve contato. O que ela tanto queria? Então me contou de parcerias de exportação-importação com a China e queria saber quando eu estaria disponível para fazer um workshop sobre o que ela chama de Chinafrique na Casa dos Estudantes do Senegal. Ora, posso indicar alguém. Perplexa, ela ouviu o apanhado que dei sobre a situação brasileira que ela conhecera em momento de euforia. Mais parecia que eu estava narrando um filme de terror e ela arregalava os olhos, incrédula. À medida que a conversa se desdobrava, eu me lembrava que ela tinha sido das mais ativas alunas no âmbito político e tudo lhe interessava. Mais c´est pire que chez nous, Fernando. Eh, oui, ma Chérie!

Corri para o trem RER e voltei ao hotel para pegar minha malinha. Lá recebi mensagem de minha editora preferida me apertando os prazos por razões de força maior. Quem já pensara em desposar Luiz Gonzaga quando era criança, por certo uma hora teria tanta ousadia compensada a contento. Pois bem, está noiva e tem mais de 40 anos. Mazel tov, como diriam os judeus – hoje empenhados em seu Dia do Perdão. Como vou fazer para entregar um artigo decente em menos de 24 horas – prazo que ela me deu. Mas para tudo na vida há uma saída e respondo com um e-mail de parabéns e prometo ser pontual. Na quinta-feira, ao meio-dia, ela receberá minha contribuição quinzenal. Às cinco da tarde, já estava no balcão de check in do aeroporto. Pela proa, Frankfurt.

Ninguém em sã consciência pode negar que o aeroporto de Frankfurt seja um dos melhores do mundo. Mas como o conheço muito, sei bastante bem que a sinalização peca por redundância e, algumas horas, por deliberada omissão. Certo é que achei minha sala e enchi um copo de Sekt, a versão local do Champagne. Instalei-me então numa cabine de trabalho, não sem antes xingar a atendente por não termos salsichas no lounge daquele colosso. Ora, as salsichas com pepino e salada de batata são o que há de bom. O que havia? Frango indiano e Leberkäse de ave. Fiz greve de fome em protesto e continuei me servindo de taças copiosas de Sekt. Encaminhei as primeiras linhas desse artigo e me perguntei: por que não dividir com os leitores de Será? as auguras da abstinência do Frontal?

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24 de setembro – Chego a São Paulo em plena escuridão da madrugada da quinta-feira. Dormi feito um saco de pedras e mal lembro de ter ido ao banheiro uma vez à noite. Nessa hora, pedi uma água tônica cheia de gelo e uma salada de salmão. Sobrevoávamos o grande vão do Atlântico e estávamos a mais de sete horas do pouso. Tempo para dormir mais e digo à aeromoça que, se estiver dormindo, que não me desperte para o café da manhã. Minha malinha foi das primeiras a sair e, agora com dia claro, pegamos a Marginal desimpedida.

Atenildo me conta que fez um calor infernal enquanto eu estive fora e isso me desanima mais do que dólar que se encaminha para as faixas medianas dos quatro reais. Criminosos. Biltres. Tomo um café da manhã na padaria e dou uma passada no escritório. Não tenho tempo de cortar o cabelo para chegar chique amanhã à minha aula em São José dos Campos. Atenildo parece desanimado quando eu digo que ele me levará lá hoje. É que uns parentes chegarão da Paraíba. Nada posso fazer. O foco todo agora é a aula que darei sobre a Escandinávia.

Lavínia foi para Aracaju e esqueceu o celular. Tenho um almoço ao meio-dia marcado com um cineasta argentino que quer discutir um tema de roteiros. Chega pelas mãos de um amigo e eu fiquei de definir o local. Mas antes disso, preciso mandar o artigo pra Será? Relei-o – chama-se Longitudes -, mas concluo que meus detratores – que são muitos – dirão que busquei o caminho fácil. Isso porque, na quinzena anterior, já publicara Latitudes. Abomino fórmulas, mesmo as melhores. Resolvo, então, mandar esse texto sobre os últimos dias.

Isso porque me ocorre: quantos será que não tomam esse famigerado Frontal? Será que alguém vai se interessar por desventuras em Lisboa, Estocolmo, Linköping, Varsóvia, Paris e Frankfurt em seis dias? Abro a mala e lá pego o paletó leve para ir ao almoço. Fico fulo quando levo alguma peça de vestuário que não cheguei a usar. Quando apalpo o bolso, me vem a surpresa. Lá estava – lá esteve o tempo todo – a caixinha do remédio. Caralho. Tanto sofrimento por tão pouco. Com raiva, atiro-a de janela abaixo e entro no chuveiro.

Resolvo que vou almoçar com os amigos no mesmo restaurante português onde tudo começou. De lá, diante de um copo de Prosecco, revisarei o texto que prometi mandar para Teresa ao meio-dia da quinta-feira. Noivas são noivas, temos que lhes conhecer as suscetibilidades. Lá chegando, a calorosa hostess me cumprimenta efusivamente. Seu Dourado, tem uma semana que não aparece. Ontem mesmo comentei: deve estar no Recife e não nos disse nada. Não, querida, não fui ao Recife. Como dizem por lá, não mereci. Logo vi, disse ela. É muito longe para ir e voltar assim.

E, então, pedi a bebida e disparei o texto com quase nada de atraso.

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