Clemente Rosas

Liberal por circunstância

Nos idos de 1930, minha família era constituída, essencialmente, de partidários ou simpatizantes da Aliança Liberal. Avô paterno, secretário de finanças do presidente João Pessoa.  Avô materno, intermediário na tentativa de aliciamento, para a causa, do irmão marechal (que se limitou a manifestar simpatias, mas sem engajamento).  No entanto, pelo lado de minha avó materna contavam-se uns poucos “perrepistas”.  Assim eram chamados os adeptos do Partido Republicano Paulista – PRP, do presidente da república Washington Luiz (nada a ver com o Partido de Representação Popular – PRP, dos integralistas, criado por Plínio Salgado, anos depois).  Meu tio-avô Samuel era um deles.

O assassinato do presidente da Paraíba (era esse mesmo o título), no Recife, provocou uma comoção incrível na cidade que hoje leva o seu nome.  O carisma do impulsivo líder era tal que a bandeira do Estado passou a ter as cores do luto e do seu sangue, além da suposta e enigmática legenda de rebeldia contra as imposições do Governo Federal.  E até um hino hagiológico – ainda bem que hoje esquecido – foi composto, falando na esperança da pátria em sua “ressurreição”…  Seu corpo, à espera do embarque para o Rio de Janeiro, onde morava sua família, foi velado na catedral metropolitana, dia e noite, por multidões inconsoláveis, enquanto ardiam, pela cidade, algumas casas de perrepistas.

A medida do fanatismo dos carpidores do morto pode ser avaliada pelo episódio protagonizado por meu tio Nelson e seu companheiro de vida boêmia, João Y Plá.  Liberais, porém com senso crítico, atiçado naquele momento pela euforia alcoólica, puseram-se à entrada da igreja.  E João Y Plá gritava:

– “Péu!”

E aqueles que ainda tinham a cabeça coberta tiravam automaticamente os chapéus.

Novo comando gaiato:

– “Êlho!”

E todos caíam de joelhos…

Pois bem.  Num ambiente como esse, meu tio-avô Samuel entendeu de circular pela cidade, à procura de algum improvável correligionário, com quem desabafar frustrações e inconformidades.  E acabou num bar, sentado próximo a um afrodescendente, lídimo representante dos liberais mais exaltados.

Suprema imprudência!  No calor da conversa, estimulado por alguns drinques, passou a desqualificar os adeptos de João Pessoa, como desocupados e desordeiros.  E culminou com um repto ao seu interlocutor:

E você, o que é que faz da vida?

O negrão respirou fundo, compenetrou-se e respondeu:

– Faço muita coisa.  De dia, visito o cadáver de João Pessoa.  De noite, mato perrepista!  

Puxando a peixeira, riscou a mesa com a ponta dela, e arrematou:

– E o senhor?  É “perré” ou é “liberá”?

Meu tio-avô sobreviveu para contar, em casa, essa história, razão por que podemos deduzir que a Aliança Liberal conquistou, naquela noite, mais um adepto, ainda que circunstancial e temporário.

Correligionários de ocasião

Vinte anos depois, um dos filhos do meu “herói macunaímico” neste causo, de mesmo nome, viveu experiência comparável, da qual se safou, talvez, com maior galhardia.  O Samuca, bebedor de longo curso, de cachaça divertida e bem conversada, era esperto o suficiente para tal.  Dois pequenos episódios preliminares ilustram esses dois atributos.

O primeiro: em uma de suas libações, aproximou-se de certa orquestra, de passagem por João Pessoa, e com viagem já marcada para o Norte.  Para não perder, de pronto, a alegre convivência, num tempo em que não havia sequer ligação telefônica entre os Estados, embarcou com os músicos para Belém do Pará.  A família só foi saber dias depois.

O segundo é mais circunstanciado.  Despachante aduaneiro competente, foi procurado certa vez por professor que regressava da Europa, de navio, após longa temporada de estudos, trazendo vasta biblioteca, que precisava ser desembaraçada.  Cuidou de tudo, até mesmo transportando a carga de livros do professor na carroceria de sua camioneta, e, ao ser perguntado sobre os honorários, respondeu:

Sou um admirador da ciência e da cultura.  O senhor não me deve nada.

Espantado, o professor insistiu:

– Deixe-me, então, oferecer-lhe, pelo menos, um dos meus livros. 

Escolheu, rabiscou o oferecimento e fez a entrega do livro escolhido: “Cura-te pela Psicanálise”.

Comentário de Samuca:

– Quem sabe ele não ficou pensando que eu era doido?

Voltando à nossa história, em 1950, a disputa política pelo governo da Paraíba foi das mais inflamadas.  Pela UDN, Argemiro de Figueiredo, vindo da aristocracia rural e com reduto em Campina Grande. Pelo PSD, José Américo de Almeida, ex-secretário do governo de João Pessoa, candidato das camadas médias da sociedade e preferido pela maioria esmagadora dos pessoenses.  Era o tempo dos grandes comícios, que, quando próximos um do outro, geravam conflitos entre eleitores exaltados.

Foi nesse ambiente da capital paraibana, em bar cheio de “americistas”, que Samuca, já bem “calibrado”, apareceu na porta e bravateou:

– Quem for “argemirista” aqui apareça!

Sentado em uma mesa, chapéu na cabeça, paletó jaquetão abotoado, mal disfarçando os volumes dos dois lados do corpo – o revólver e a peixeira – estava um tipo característico.  Corpulento, rosto quadrado e acobreado de sertanejo, levantou-se lentamente.  Dirigiu-se até o suposto desafiante, cruzou os braços sobre o largo peito, e falou:

– Cidadão, eu sou filho natural de Campina Grande, estou aqui de passagem, e sou eleitor do Doutor Argemiro.  O que é que vosmecê quer comigo?

Samuca só teve alguns segundos de vacilação.  E deu prova de sua esperteza:

– Meus parabéns, meu correligionário!  E vamos à luta!

Tempos depois, em momento de inflexão em sua vida, Samuca abandonou completamente a bebida, e viveu ainda muitos anos, como grande palestrante nos círculos de alcoólicos anônimos.

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