Fernando Dourado

Os amigos do velho Coentrão

Zoya Samoilenko: Conversation in a Train Compartment (1923).

Zoya Samoilenko: Conversation in a Train Compartment (1923).

 

O que para uns é pesadelo, para outros é puro prazer. Dia desses, numa degustação de vinhos, descrevi uma viagem que fizera à região do Douro na companhia de dois livros e uma mochila. Para espanto até de comensais portugueses, falei da alegria de sacolejar num pequeno trem por Paredes, Penafiel, Bustelo e Vila Meã. Mas por que não alugou um carro? Ora, eu tinha várias razões para não tê-lo feito, mas não as enumerei. Sendo a principal delas, aqui entre nós, a de que queria ouvir o falar divertido e vivaz dos aldeões que subiam e desciam da Maria Fumaça em Recesinhos, Livração e Marco de Canaveses. Ademais, que pressa tinha eu de chegar, em pleno sábado, à quinta entre Lamego – terra de lindo santuário e divino presunto – e Peso da Régua? Por que não adiar o prazer do reencontro com amigos e me ilustrar sobre o intangível da região? Isso porque sempre me pergunto: quem viverá a vida por mim?

A melhor parte, contudo, não contei à assistência – tantas já foram as trapalhadas de minhas errâncias por esses mundos. Mas aconteceu entre Juncal e Mosteiro, quando dois sexagenários se colocaram frente a frente, ao lado da janela, e, vendo que eu lia um livro em inglês, se sentiram à vontade para conversar sobre o programa insólito que os aguardava. Ambos estavam a caminho de um velório em Alegria – cruel ironia -, distante uma hora dali, onde na véspera falecera o Coentrão, um companheiro da malta. Remexendo no embornal de juta, tiraram de lá uma garrafa sem rótulo e se serviram em copinhos que o cobrador lhes conseguira em Aregos. Fadigados com o rumo da prosa, na altura de Ermida, decidiram me incluir. Mister, mister. Ao me voltar, apontaram a garrafa. Assenti com prazer e um deles veio com o tinto já pela metade e um sorriso inteiro. Agradeci em língua de Camões, bem entendido.

A expressão de ambos não poderia trair susto maior. Mas então eu falava português? Como assim, se estava lendo em inglês – ou seria alemão? -, e tinha o fenótipo de um visigodo da Baixa Idade Média? Que espécie de lusitano era esse? Acaso conhecia o velho Coentrão? Não seria o genro sumido, aquele que desposara a rapariga Catarina, então quase uma miúda, e que a deixara pela pesca nas costas do Canadá? Ora pois, mas não morrera numa tempestade? As tentativas que eu fazia para esclarecer eram vãs e comecei a incorporar o personagem. Até que em Barqueiros, tivemos uma avaria mecânica. Dado o calor, o motorneiro nos recomendou tomar a fresca na plataforma pois levaria boa hora até a conclusão do reparo. Consegui, então, uma garrafa para retribuir a gentileza. A essa altura, no entanto, falávamos sobre naufrágios ao largo da Terra Nova. Eu me sentia o próprio pescador evadido, agora ressurrecto. O que é a verdade? O que convém a ambos, dizem os orientais. Pois bem, eu seria quem eles quisessem que eu fosse.

Já estávamos em Caldas de Moledo, e razoavelmente altos, quando consegui, afinal, dizer que não era o pacóvio do genro e que precisava me despedir porque, depois de Godim, na estação da Régua, ia desembarcar. Mas tamanho foi o entusiasmo em saber, afinal, que eu era brasileiro – o primeiro que conheciam -, que me rogaram acompanhá-los a Tua onde estava instalada a capela ardente de Coentrão. O motorista me levaria de volta. Arrependi-me de ter aceitado e, para esquecer o erro, bebi mais um copo até Pinhão. Quando, com alívio, os vi seguir, Luís ainda berrou da janela: viveste em Coimbra? Não, não. À distância, quando eu já localizara o único táxi da pequenina gare, ele ainda fez um galanteio: mas falas bem português, ô pá. No destino, lá veio meu amigo com uma garrafa. Não, bradei, fica pra depois. A tarde só chegava ao fim e o marulhar suave do Douro cortava o silêncio do sábado.

 

Ahmed, Hassan e Ibrahim

 

O primeiro diz: “Se não posso estar no campo e me sentir admirado pelo que faria com a bola nos pés, por que não provocar grande comoção no mesmo recinto com uma cartucheira de explosivos? Esta se presta a três finalidades primorosas. Primeiro, o público do Stade de France se voltará para mim. E, por um tempo, não para o gramado onde gente como eu – ou quase – ganha milhões de euros para se divertir. Por que só eles? O que têm até os africanos que eu não tenha? A segunda é que, na miséria de meus horizontes, cravo uma vaga chance de ter acesso ao paraíso e às virgens de que fala nosso Instrutor. É verdade que não sei bem o que farei com elas e fico nervoso só de pensar. O máximo que conheço nesse terreno é o carinho tenso dos velhotes que me pagam por uns afagos nas noites de inverno das Buttes-Chaumont. O terceiro consolo que me trará o fim rápido será que me livrarei de ser humilhado pelas mãos da polícia e, alegria das alegrias, burlarei os fornecedores de drogas para quem trafiquei e a quem já não tenho como pagar. Alahu Akhbar“.

Diz o segundo: “Minha escolha é pessoal. Quem não se conforma em empanar o brilho do futebol, pode se valer da naturalidade de seu jeitão parisiense para adentrar um lugar cool, até recentemente pertencente a judeus e com cara de grande sinagoga kitsch – o Bataclan. Como disse nosso Mestre, esse é meu trunfo. Ter o ar débrouillard de um local. Especialmente com essa calça Hugo Boss que compramos para a ocasião. Disse ele: os infiéis adoram juntar as palavras mal e banalização. Que o façam mais uma vez. E agora por um bom motivo. Isso me permitirá agir com a respiração controlada do irmão que embicou com o jato numa encosta dos Alpes. Sobre aquele palco lá estarão, de microfone na mão, mais alguns dos ocidentais que se comprazem com minha insignificância. Gente que nasceu e cresceu sob o sol da Califórnia enquanto aqui, na periferia parisiense, as assistentes sociais me empurravam para tediosas aulas de matemática. Mais do que isso, lá dentro estarão dezenas de meninas que normalmente desprezariam minha elegância, meu sotaque de subúrbio e as batatas fritas engorduradas que eu poderia oferecer. Por uma noite, sua sharmota, você vai me respeitar e temer. Por Alá.”

Arremata o terceiro: “Abortei a missão e minha vida agora vale menos do que ontem. Antes, até sexta, tinha um grande propósito e, a essa altura, eu teria sido aclamado como caçador, e não visado como presa. A caminho da ação, me ocorreu que esquecera de apagar uma pista que deleitaria os investigadores: um exemplar do “O Islã para leigos” que tinha comprado no verão, quando fui designado para a missão. Disse o Professor que era um caminho mais ameno, já que eu fracassara no do Alcorão, não tendo passado das primeiras Suras. Meu árabe caseiro não dava para tanto. Ademais, a vida estava que era uma merda. Estava cansado de bater carteira de brasileiros na Gare du Nord. No fundo, lamento por minha mãe que passará por maus bocados. De resto, odeio todos os pais do mundo, a começar por mim e pelo meu – que nunca conheci. E de quem minha mãe mal se lembra. Agora estou aqui, escondido numa tecelagem abandonada de Roubaix-Tourcoing, na fronteira belga, sem acesso ao outro lado. Faz frio, os cães logo vão chegar e quando os flics encostarem, eu saberei o que fazer. Quem estava naquela brasserie do Boulevard Beaumarchais mal imagina do que escapou. Falhei. Já ouço os latidos, é tarde. Até nisso, fui um échec.

 

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