Fernando Dourado

John Everett Millais' Ophelia (1852).

John Everett Millais’ Ophelia (1852).

Boa noite, pessoal. Sou o Dr. Eleutério Poliano, mas me chamem de Poli. Espero que estejam dispostos a viver esse momento com serenidade, mas com comprometimento. Será da coesão desse grupo que vamos sair fortalecidos para encarar o desafio que nos reunirá de hoje em diante, sempre às quintas-feiras. Como os veteranos já perceberam, metade da roda está composta por novatos. A presença deles é fator de motivação e, embora ninguém substitua os que se foram, eles nos consolam pela perda de Hosana que faleceu durante as férias. Outra ausência notável é a de Narciso, esta por razões mais felizes. Ele decidiu voltar à terra natal – a linda praia do Espelho, na Bahia, com que sonhava acordado. Para quem chega agora, uma dica: não há pressa em falar nem obrigação de se expor. Muitos até preferem escutar os mais experientes. Depois, se estiverem à vontade, podem abrir o coração. Temos uma regrinha de ouro: Sinceridade, Simplicidade, Simpatia, Solidariedade e Sintonia. Falar o que se sente, de forma direta e, sobretudo, ouvir atentamente o outro, sem interrompê-lo. Vão por mim, é nessa troca que mora a magia de nossa dinâmica. Sairemos daqui tão fortes quanto o colega mais fragilizado. Temos chá na mesinha e toalete ao fundo, passando a porta vermelha. Obrigado a Francisco pelas guloseimas. Foi muito gentil ter trazido uma lembrança do sexagésimo aniversário, Chico. Parabéns. O roteiro é o de sempre: nome, ou como gostaria de ser chamado, e o histórico da dor de cada um. Hoje todos começarão como se estivessem aqui pela primeira vez. Isso facilitará a integração. No final de cada fala, arrematamos com nosso lema: o suicídio pode esperar, só a vida é para já. Não estourem o tempo, cada um tem mais ou menos o que me coube: um minuto e pouquinho. Assim todos vocês terão uma janela e, só então, passaremos à segunda rodada. Quem se habilita a abrir?

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Vamos lá, companheiros, eu sou a Berenice Paz, ou Berê. Estou honrada em fazer parte do grupo, embora, como todo mundo, imagino, eu preferisse estar de fora. Desculpem, estou confusa. Bem, eu venho da militância política e vejo o Brasil de hoje como um lugar muito complicado para se viver. Desculpem se não posso ser mais clara sobre o que faço, mas tenho razões para achar que posso ter chegado ao fim da linha. Aqui nessa assembleia, pretendo encontrar a paz que só me restou no nome. Conseguirei? Não sei. Negócio é o seguinte: o jogo do poder é renhido, ali não tem santo. Quando a gente menos espera, está lá dentro e fica difícil até de sair. Eu ando com medo de ter a vida mal interpretada por essa onda de moralismo que tomou conta do judiciário. Por esse terceiro turno, entendem? Temo perder o que ganhei e que, aliás, sempre declarei. Ando tão paranoica que fico simulando situações e, até onde consigo ver, eu tenho álibi para tudo. Nem que tenha que usar um amigo ou familiar. Todo dia preparo alguém. Mas o fato é que o ordenamento jurídico do país está de ponta cabeça. Parece a Rússia de outros tempos. E pensar que eu já fui – e que ainda me considero – uma comunista de carteirinha. É bem irônico. Ultimamente, eu inverti as horas de trabalho porque só durmo depois das nove da manhã e, à noite, me distraio com meu neto. Enfim, quem está a meu lado conhece a natureza aflitiva do anoitecer, mas procuro tocar a vida. É como se eu tivesse um aneurisma à deriva dentro do corpo, desses que podem nos derrubar ao subir uma escada. Ou como se olhássemos o céu à procura de um asteroide do tamanho do Pão de Açúcar a caminho da Terra, voando a milhares de quilômetros por segundo. Francamente, o arbítrio desconhece os limites do bom senso e, não se iludam, isso afeta todos vocês também. Lembrem de Maiakovski e as rosas do jardim. Preciso de ajuda pois mulher sofre em dobro. Como é mesmo? O suicídio pode esperar, só a vida é para já.  O problema é: até quando?      

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Sou Anahyde e apesar de Dr. Poli insistir que isso não tem importância, gosto de dizer que sou a mais velha daqui. Já passei dos sessenta de Chico, nosso aniversariante, há um tempinho e, nesses últimos dez anos, venho driblando a vontade de me suicidar. É incrível como o exercício desse convívio nos ajuda a usar o verbo certo com naturalidade. Como podem ver, tenho um rosto esquisito e a fala fanhosa. Vocês ficariam surpresos se vissem uma foto minha quando jovem. Era bonitinha, apesar do nariz enorme. O que me traz aqui é que, com a morte de meus pais – armênios muito amorosos -, achei que era hora de me submeter a uma plástica. Tinha metade da vida pela frente. Fiz então a primeira cirurgia no Rio e não preciso nem dizer pelas mãos de quem. O resultado foi ótimo e me senti no céu. Então, resolvi que meu nariz poderia ser ainda mais gracioso. Quem sabe, assim, um tantinho arrebitado. Não voltei ao Dr. Ivo porque sabia que ele me mandaria para um psiquiatra. Uma vizinha me recomendou uma cirurgiã conhecida. Lá fui eu atrás da perfeição. Quando a área desinchou, vi que a parte central de meu rosto estava reduzida a duas cavidades doloridas – tipo focinho de porca –  e minha voz estava nitidamente afetada. Esse tom de fole que vocês ouvem até hoje é o resultado de anos de fonoaudiologia. Então voltei ao Rio e fiz a terceira cirurgia. A equipe fez o possível para consertar o estrago e eu jurei que nunca mais faria outra operação. Resumo: ano passado eu passei pela nona intervenção e hoje uso uma prótese sintética. É isso mesmo: eu perdi meu nariz. À noite, tenho que tirá-la e nessa hora tenho saudades da Anahyde que fui. Quando escurece, sou tomada de puro pavor – como a Berê aqui – e me dopo para dormir na solidão do apartamento. Vivo quebrando o espelho. O Poli diz que é auto-rejeição. Luto para não fazer besteira. Vocês me darão força. Ouvi-los aqui me fará lembrar que o suicídio pode esperar, só a vida é para já. Desculpem se choquei alguém.

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Sou o Nestor e me chamam de Capixaba. Em português claro, eu já pensei em me matar, daí minha presença hoje. Estou aqui também porque é um investimento barato. Mesmo podendo, eu não pagaria por terapia individual. O que me motiva a viver é a perspectiva de um dia ficar rico e calar a boca dessa gentinha medíocre que vive em lugares da moda. Mas antes de sonhar com a solução – que já tenho -, falemos do problema. Como o Poli disse para ser direto, vou ao fato. Dizem que sou um baita sovina, um mão fechada. Essa atitude, segundo minha irmã, é doentia e sabota o que a vida teria de bom para me dar. Será? Não sei. Parafraseando um intelectual, ela diz que eu sei o preço de tudo e o valor de nada. Mas é só o meu jeito de ser. Se me dão um presente, vou logo verificar o preço. Nasci assim. Por exemplo, esses salgados que seu Francisco trouxe, desencadeiam em mim todo um pensar financeiro. É um condicionamento, se quiserem. Os risoles são de uma padaria conhecida e custam seis reais e cinquenta a unidade. Ora, ele trouxe uma bandeja com quarenta e três. Dá uma média de mais de três unidades para cada um aqui. Então, penso: se eu como meus três e, discretamente, levo mais dois no bolso, economizo o jantar. Por outro lado, concluo: se isso foi a sobra da festa, significa que ele gastou na padaria uns mil reais. Tirando outro tanto de bebidas, o patamar financeiro dele é mais alto do que o meu. Mas não tão elevado quanto o da oradora que me antecedeu. Quer farejar o dinheiro? Olhe os acessórios como cinto, sapato e relógio. Rico só usa dos bons. O que mais? Há muito tempo não tenho namorada porque nada que acarrete despesa me interessa. Nem sendo Gisele Bündchen. Tampouco quero ser gigolô, até por princípio. Não bebo – nem de graça – e deixei de fumar porque é um vício caro e o governo não merece meus impostos. Uns dizem que eu valorizo muito o pouco que dou e desconsidero o muito que recebo. Mas, enfim, os bares estão cheios de psicólogos vazios. Essa é velha, desculpem. Vamos ao refrãozinho? O suicídio pode esperar, só a vida é para já. Satisfeitos? Sem aplausos, por favor.     

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Boa noite, podem me chamar de Jussy. Sei que aparento ser feliz, mas saibam que não sou. Quando era adolescente, meu pai perdeu tudo. Depois de uma infância tranquila, vendíamos balinhas de coco na escola para comprar uma roupa melhor. Trabalhei desde cedo e sonhava em voltar a ter uma vida boa. Dinheiro pra mim sempre foi importante, mas não como para o Capixaba aqui. Era para gastar mesmo. Foi então que apareceram uns caras mais velhos que se interessaram por mim. Ora, eu já não era menina, tinha meus vinte anos e terminei me envolvendo com um político de mais de cinquenta, casado e cheio da grana. Como homem, um fracasso, tipo bobalhão. De coração, até que não era má pessoa, apenas frágil e manipulável. Mas isso me convinha em alguma medida. Ocorre que essa história de ser a outra me fazia mal e meu nome estava na lama. Naquela época, não era como hoje. Alguma coisa em mim pedia para eu pular fora. Mas com ele eu me sentia segura para ajeitar a vida da família, viajar e fazer compras. Foi então que eu conheci um cara realmente apaixonante, de idade próxima à minha. Apesar do temperamento, era um homem de sucesso e gostava de mim. Começamos a namorar, o deputado me infernizou a vida e passamos por momentos de tensão. Armando, o novo, me perguntou mais de uma vez se eu ainda tinha algum enrosco passado – acho que ele percebia alguma coisa – e eu resolvi sustentar uma mentira. Disse que estava tudo rompido quando, na verdade, na cabeça do deputado, ele era meu dono. Fiquei nesse jogo duplo durante um tempo e chorava toda noite. Até que Armando me pegou numa mentira e voltei à estaca zero. Fui expulsa de casa e perdi o homem de minha vida. Agora me apareceu uma doença muito grave. Meus cunhados me afastaram de minhas irmãs, a mamãe morreu. O que eu fiz de mim mesma? Me diverti um pouco, mas não fui feliz. De onde vou tirar a força que não tenho numa hora dessa? O plano de saúde não aceita bolsa Fendi em pagamento, não é? Para todos os efeitos, fui só uma puta. Apesar disso, vamos lá: o suicídio pode esperar, só a vida é para já. Perdão, gente.

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Meu nome é Dagoberto. Até um cego pode ver que tenho obesidade mórbida e já peso 225 quilos. Tudo aconteceu muito rápido. Até a Copa da África do Sul, em 2010, eu pesava a metade e era só o mesmo gordinho normal da vida toda. Nessa época, conheci um cara que terminou me tungando um dinheiro para investimento num desses programas de habitação do governo. O negócio não saiu. Ele então disse que ia me devolver o dinheiro e eu lhe dei um prazo. Então comecei a engordar de raiva. Pedia duas pizzas de promoção toda noite. As mulheres pararam de me olhar e eu percebi. Tinha gente que baixava a cabeça quando me via. E o cara me enrolando. Até que comprei uma faca enorme, dessas que cortam barriga de atum e decidi que ia matá-lo. Uma amiga brincou: a comida da cadeia é ruim, cuidado. E daí? Só assim perco peso, eu disse. A essa altura, eu já tinha desenvolvido essa pança, o pinto se retraiu e comecei a ter dificuldades até para limpar a bunda. Calçar a meia ou subir a ladeira viraram suplício. O médico falou que eu estava diabético, mas isso não me importou. Importava matar o filho da puta, com o perdão da expressão. Então, acho que ele sentiu que estava fodido, que era uma questão de ocasião e começou a me pagar a conta-gotas. Eu continuei engordando mesmo assim. Disse pra mim mesmo: quando ele terminar de pagar, eu começo uma dieta no mesmo dia. Mas sei que agora está além de minhas forças. Já não posso viajar, durmo sentado, tenho falta de ar, sair de casa é um martírio e mesmo que eu perdesse 100 quilos, ainda assim seria um gordo num mundo em que somos odiados. E depois, teria que fazer cirurgias. Fui demitido e agora estou no pior dos mundos: obeso mórbido e pobre. Gordo tem que ter dinheiro ou inteligência. Então, sonho com um almoço com tudo o que eu gosto – estrogonofe, batata palha, cerveja, filé à Parmegiana, rabada, feijoada e o escambau – e, depois, dou um tiro no coração. Hoje eu sei: deveria ter matado o cara, foi ele quem destruiu minha vida. Antes que eu termine, queria dizer ao Capixaba que se apresse. Já comi cinco empadinhas e tem só mais algumas de sobra. Já ia esquecendo: o suicídio pode esperar, só a vida é para já. Falou.

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Meu nome é Constantin. Ou Costel, se quiserem. Eu nasci num lugar de que ninguém ouviu falar. O pai de Anahyde talvez soubesse onde era, mesmo assim nunca botou os pés lá. Desde criança, eu bebia um golinho de destilado de ameixa e só fiquei embriagado de cair quando a bebida foi adulterada pelos ciganos da vizinha província da Bessarábia. Foi no mesmo porre em que meu primo ficou cego. Vivo no Brasil desde os anos setenta onde cheguei como refugiado político. Minha mulher morreu logo depois porque não se adaptou ao calor e, no fundo, acho que era comunista – sem o relógio suíço da D. Berê, já que o Capixaba alertou para um ponto bom. Enfim, ela estava satisfeita com a vidinha que a gente tinha. Já eu não podia ficar lá ou me matavam. Viúvo, comecei a namorar. Para mim, tanto fazia. Contanto que elas não me torrassem a paciência depois das cinco da tarde que é quando eu começava a beber. Sabe como são as mulheres, não é? No começo, aceitam tudo e dizem que é normal que a pessoa queira relaxar. Depois o discurso se transforma. É quando percebem que não vamos mudar, só piorar. Há muitos anos que estou aposentado e há pouco mais de quatro – desde as onze horas do dia 11.11.2011 – estou limpo, sem beber. É claro que a vida perdeu muito do sentido. Não há hora em que eu não pense em tomar uma pinga. Mas sempre deixo para o dia seguinte. Já fiz muita besteira. Quebrei louça, bati em filho e esmurrei o vigia. Com a minha filha, então, eu não falava há anos. No último Natal, ela apareceu em casa com uma lésbica que apresentou como namorada. Naquela noite, quase voltei a beber, mas meu filho me pediu de joelhos que resistisse. Desde então, penso em me matar de vergonha. Especialmente depois que vieram me dizer que ela ficou assim por minha causa. O que eu tenho a ver com essa perversão? Mil vezes bêbado do que degenerado. Para que mais preciso de saúde? De que me adianta viver uns anos, estando privado do que gosto? Meu filho trabalha no mundo, numa empresa de telefonia. Quanto a ela, eu já pedi que não venha sequer a meu enterro. Por que não tomar um porre e depois me matar? Como é mesmo – estou sem óculos? Sim. O suicídio pode esperar, só a vida é para já. Saúde.

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Meu nome não vem ao caso, podem me chamar de Gringo. Moro no Brasil há uns vinte anos, mas ainda tenho um pouquinho de sotaque, reconheço. Sou um dos novatos de que o Poli falou e, sinceramente, não sei se vou voltar na próxima quinta-feira. Desculpem a franqueza. Já estou medicado contra compulsões e uma delas é a do suicídio. Talvez por ter nascido em Oak Park, Illinois, perto da casa de Hemingway, eu tenha crescido com a obsessão pela morte brutal. Mas não quero romantizar o que pode ser só uma doença. Já passei dos cinquenta e tenho a saúde sob controle. Tenho muito medo de ter um derrame ou doenças incapacitantes. A vida comigo foi só mais ou menos, não fiz nada de especial, fracassei um pouco lá e aqui, mas até nisso fui opaco. Temo dias negros pela frente, como quase todos aqui. Então, o suicídio é uma ideia recorrente. Penso em me matar com arma de fogo, nossa modalidade preferida. Acho de mau gosto quem opta por afogamento porque o sofrimento é grande. Digo isso porque já tentei. Intoxicação por pesticida funciona, mas é próprio de meios rurais e isso é absurdo para quem vive numa cidade de prédios tão altos quanto essa. Talvez a combinação de remédios seja o ideal. Só não consigo entender quem se enforca. Ora, para isso é preciso ter muita habilidade motora. Enfim, brincar é minha forma de lidar com o medo, entendem? Sinceramente, acho que a maioria de vocês não vai se matar. Filho gay, bêbado, espertalhona e gente que não gosta do corpo é o que o mundo mais tem. Sovina, nem se fala. Eu mesmo conheço um cara que bebe a própria urina por temer desperdício. Outro não usa desodorante por supor que ninguém nota a fedentina. Enfim, eu acho que meu caso é talvez o mais grave porque eu não tenho nada de muito anormal. Só mesmo o desejo íntimo de escolher minha hora e de não me angustiar a todo instante com a dúvida. Desculpe se feri alguma regra. Obrigado. Ah, claro: o suicídio pode esperar, só a vida é para já. Eu gosto de aplausos, vamos lá.                      

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Eu sou o Célio e sou meio tarado, tenho sexo na cabeça o tempo todo. Desde os doze anos meu grande prazer é me masturbar. Tenho quase quarenta, é só fazer as contas. Andei tendo uns probleminhas com a justiça, mas isso ficou para trás. Quando saí da hospedaria, como se diz, meu pai sugeriu que eu fosse viver com meu irmão em Portugal. Fazer um curso, começar do zero, essas coisas. Não deu certo. Chegando lá, fui direto ver os anúncios de putaria na internet. E não consegui pensar em mais nada. Fiquei louco de ver como eles gostam de mulher peluda. Está em toda chamada. Nada de grelinho tosado tipo sushi ou mesmo pelado. Os portugueses gostam mais da aranha do que da rã – como eles mesmos admitem. Eles curtem também tetas enormes, como um melão de beira de estrada. Uma coisa normal lá é a propaganda do anal. Isso nunca foi grande tabu para elas, um cara me contou. Ele disse que tinha um tal Salazar que vigiava a virgindade da galera, portanto a porta de trás era liberada pra salvar as aparências. No Brasil, hoje isso já é geral. Eles lá também têm muita oferta de dupla. Virou fetiche mundial, a indústria é uma só e conheci casos aqui no Brasil em que o cliente saía com duas irmãs. Um cara até me falou que saiu uma vez com gêmeas, mas isso é falta de imaginação. Pra que querer duas iguais? Agora que todo mundo perdeu o medo, elas anunciam que fazem oral até o fim. Outra coisa: pode parecer estranho que puta anuncie beijo na boca, não é? É que isso é comum aqui, mas não no resto do mundo onde é considerado pornografia. Elas beijam de língua só os maridos. Até anotei umas expressões: “oral em brasa”, “cavalona e gruta quente”, “oral molhado”, “dona de casa ardente de desejos, faço tudo o que tua mulher não faz”, “educada, bom rabo, rica chicha, greludinha”, “boas mamas, anal guloso”. Tem coisas que não entendi nem meu irmão quis explicar: “minete molhadinha” e “ratinha úmida”. Melhor parar por aqui, Poli, já vi que não agradei. Pessoal, eu pensei em me matar quando estava na cadeia. E continuo pensando. Lá, eu juro que sofri pra caramba. Judiaram muito de mim e eu mal posso me ver no espelho, foi vergonhoso. Vamos lá: o suicídio pode esperar, só a vida é pra já.

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Sou Milena. Dirigi três horas para chegar aqui, viu? Eu posso pretextar muitas razões, mas a principal é que a vida ficou vazia depois que meu filho morreu. Sempre tivemos uma situação financeira boa, meu marido e eu – já que esse tema aqui interessa tanto. Casei novinha e ele também. Éramos imaturos e tive um casal de filhos. Com a morte dos sogros, íamos a cada três meses à Disney. As crianças perdiam aula e eram criadas por babás. Meu marido bebia e com o tempo eu fiquei sabendo que ele tinha outras. Por que não? Meu consolo era viajar para o Rio ou Miami com as amigas e então comprava até o cartão de crédito empenar. Voltava para casa com três, quatro malas cheias de roupas de grife. Se eu disser que tenho mais de cem pares de sapato que nunca usei, ninguém acredita. Vestido com etiqueta, então nem se fala. Até que Leo brigou feio com nosso Leozinho e, arrependido por tê-lo humilhado em público, deu a ele um carro alemão. Ele nem habilitação tinha, coitadinho, mas andava sempre com dinheiro para molhar a mão dos guardas. Uma madrugada, o telefone tocou. Meu marido estava num torneio de pôquer no Caribe e fiquei em choque por dias, nem lembro do enterro. Não me separei por falta de força. Hoje Leo gasta todo o tempo e dinheiro que tem – e ainda é bastante – em jogo, virou profissional. Joga em casa, no computador, no clube e em viagens. Minha filha engordou muito, está quase como o Dagoberto, e criou um culto em memória do irmão. Eu não tenho vontade de nada. Nem de namorar, nem de trair, nem de chorar. Fico até com inveja de Jussy – é Jussy, né? – que pelo menos conheceu um amor de verdade e lutou pra ter alguma coisa. Se sua doença estivesse em mim, talvez eu me sentisse abençoada, juro. Leozinho para meus pais era um neto problemático e eles têm mais dez para curtir. Dizem que ele está melhor lá em cima do que aqui. Então eu também quero partir. Já tentei pintar, estudar inglês e até fazer análise. Quando me apaixonei pelo terapeuta, levei uma bronca dele que saí de lá mais rasa do que o chão. Meu filho me quer perto dele, mas vou voltar aqui. Tentar é importante, de repente se faz a luz. Mas me convençam de que o suicídio pode esperar, só a vida é para já.

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Meu nome é Ricardo e eu estou bem impressionado com o que ouvi. Acho que cada um de nós traz na bagagem um pouco dos elementos lançados aqui. Pensando assim, meu caso talvez seja simples e, até por isso, preocupante. Vou ligar o alerta a partir de hoje. Eu tenho antecedentes de suicídio na família. Dos dois lados. Algum filósofo disse que essa é a única questão que realmente se impõe. Parece frase de efeito, mas é intrigante. Ultimamente tenho pensado muito em minha mãe que se matou numa noite de Natal. Passamos boa parte de nossa adolescência de olho nela. Ela podia estar feliz, beijando estranhos completos na rua, que, perplexos, ficavam ruborizados. Mas sempre que a coitada abria o piano e inundava a sala com Schubert, era sinal que tínhamos que fechar as janelas. Literalmente. Aliás, só morávamos em andares baixos. Até as empregadas sabiam desse código de família. Quanto mais ela via nosso sofrimento, mais ela chorava. Um ciclo desses podia durar uma ou duas semanas. Depois ia passando e ela ficava dias no quarto, sob alegação de enxaqueca. Então tudo voltava ao normal e ela nos afagava com aquele sorriso triste, de quem voltou de uma longa viagem. Da parte de meu pai, as reações são menos românticas e ele ainda está vivo, apesar de fortemente medicado. Mas sua mãe, minha avó, se atirou num poço na Sicília e ninguém nunca encontrou carta que explicasse o desvario. Só sabemos que não foi acidente porque ela vivia insinuando que terminaria como a mãe dela, minha bisavó. Vejam, eu sou um profissional realizado, gosto de minha segunda mulher e me dou bem com nossas crianças. Não tenho estados melancólicos agudos, ninguém sequer imagina que eu esteja aqui. Dos presentes, só reconheci uma pessoa – acho que a mesma que todo mundo. Lamento não ter mudado o mundo ou não ser querido como um esportista ou um bombeiro. Mas isso não faz lá tanta falta depois de certa idade. Para todos os efeitos, felicito Poli pela iniciativa. O suicídio pode esperar, só a vida é para já.

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Valeu, Ricardo, mandou bem. Eu sou a Bete e acho que nunca, em 22 anos de vida, vi tanto nojo junto. Pela primeira vez me dá até vontade de viver e os cortes que faço periodicamente no meu corpo – as lacerações auto-infringidas de que fala o imbecil do psiquiatra – são quase um fetiche inocente, quando comparados com essa miséria humana. Alguns de vocês são o que professor de português chamava de escumalha, de rebotalho humano. Desculpem o desabafo. Não, me deixe continuar, por favor. Não queria indicar a quem me refiro, mas como me sinto diretamente atingida, vou dar minha posição. Eu sou lésbica, sapatão, e acho que quem vê nisso um grande mal não tem o que fazer neste mundo. Tem mais é que encher a cara e sair por aí garatujando suásticas. Posso até ter ficado com dó de uma ou outra pessoa aqui, mas tive a alegria de ver que a petralha está borrando o tailleur. Comunista de carteirinha? Carteirinha Chanel, minha filha? Faça-me o favor. É bom ver também que o irmão-siamês dela, o muquirana, já está ardendo no inferno sem nem precisar morrer. Também tem gente a quem eu recomendaria castração química, se pudesse. Eu tenho muito asco desse mundo, mas não é pelas razões que vocês alegam. É por ver crianças encontradas mortas na areia da praia e uma porrada de gente atravessando a pé cinco países em busca do que, bem ou mal, todo mundo aqui tem de sobra. Mas nem tudo nesse mundo é redondinho, sei disso. Eu mesma recebi na minha casa uma refugiada haitiana que comeu de meu arroz com feijão durante mais de um mês e que, semana passada, sumiu sem nem agradecer. Levou tudo o que eu tinha de valioso. Vou sair daqui com mais certezas do que dúvidas, isso está fora de questão. Como eu já estou indo mesmo – apesar de ainda termos, teoricamente, duas pessoas mais para ouvir -, eu sugiro que alguém vá ao lavabo e veja pela porta se o tal Francisco, o aniversariante, não está passando mal. Desde que o gordo estava falando – desculpa, esqueci teu nome – ele estava aqui ao lado, suando muito, até que se levantou e se trancou no banheiro. Na religião de meus pais, os suicidas são enterrados em alas à parte. Sorte a deles, eu concluo. Se o suicídio não é para já, melhor esperar. Mas bem longe de vocês. Agora fui. Até nunca.

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Nesse momento, se ouviu uma detonação de arma de fogo no banheiro. Não, não foi uma quinta-feira como as outras.