Fernando Dourado

 

Mosaic mural in the main square of Tirana, representing an interpretation of the history of the Albanian people from the Illyrians to the Proletarian Dream.

Mosaic mural in the main square of Tirana, representing an interpretation of the history of the Albanian people from the Illyrians to the Proletarian Dream.

        a)  A caminho de Tirana – Ismail Kadaré – A herança de Enver Hoxha    

Apesar do cancelamento do ônibus, Felipe manteve atitude relaxada, pois sentia que teria um dia especial. Para confirmar o bom presságio, advindo na paisagem inusitada da rodoviária, eis que um biscateiro grego da estação de Tessalônica lhe apresentou uma boa alternativa para a Albânia. E fez mais. Por um euro e um cigarro, carregou a mala cinzenta até uma parada imperceptível para não iniciados e, passados quinze minutos, a van enfumaçada já se dirigia à fronteira, por uma estrada desértica e asfaltada. Para trás, ficava a cidade do cais fervilhante e aquela gente que dignificava o ócio. O problema seria o som do bouzouki que quase o ensurdeceu nas dez horas de trajeto até Tirana. Para compensar o infortúnio, a chuva fina perpassou a manhã, o que o ajudou a dormir. À tarde, descansado, viu o sol iluminar com fulgor um cenário inesperado.

Assim, depois das formalidades ocas do controle de passaporte, chegou a hora de contemplar a paisagem escarpada que se descortinava por trás do pára-brisa encardido. Como se atravessasse uma enorme divisa natural, viu adiante um lago turquesa. Sem apreensão, mas com fascínio, bordejou ravinas temerárias e viu águias em sobrevoo lento. Por toda parte, havia sinais de desabamento e eram dezenas os memoriais aos mortos na lama gelada do acostamento. Com ares de livro de Ismail Kadaré, as bocas das minas abandonadas rivalizavam com as casamatas de concreto que ali se contavam às dúzias. Delas, um passageiro albanês contou um fato interessante e que ele não haveria de esquecer, tantas vezes reproduziu a narrativa desde então. Pois para que servem as viagens? Acaso não somos as histórias que contamos?

A verdade por trás das casamatas é a seguinte. Quando Enver Hoxha quis dotar o país de um sistema de defesa bom e barato, um militar de baixa patente e ambições elevadas, levou ao líder o projeto de construir as pequenas tendas de cimento que, à distância, pareciam naves extraterrestres pousadas nos poucos lugares planos das cercanias. Para defender a idéia, disse que seriam tão resistentes a ponto de suportar tiros de canhão. O camarada Enver pediu-lhe então que entrasse numa delas e mandou que se efetuassem disparos furiosos, desses que reduziriam a uma cratera os abrigos convencionais. Pois bem, o bom soldado saiu de lá empoeirado e cambaleante. Ganhou medalhas e uma promoção. O detalhe de somenos foi que ficou surdo e nunca mais voltou a ouvir Chopin. Sequer os discursos de Hoxha – o maior dividendo da deficiência.

       b) Centro de Tirana – Lei parla italiano? – O decote da recepcionista   

Uma vez em território albanês, o motorista parava em todas as cidades para deixar passageiros. A maioria deles era formada por empregadas domésticas em trajes de domingo. Todas ciosas de impressionar a família depois de um período de trabalho no exterior, possivelmente na própria Grécia. Já escurecia quando chegaram a Durrës cuja praia Felipe achou bela. De lá, levaram menos de uma hora até o centro de Tirana onde se despediu calorosamente do chofer. Apesar das muitas queixas que fizera, não havia como não cumprimentar um sujeito com quem dividiu tantas horas de trajeto.  A grande praça lhe pareceu caótica, mas acolhedora, e as mulheres eram simpáticas e prestativas. Meninos pedintes treinavam na calçada para alçar voos rumo a Paris e Berlim. Se os lamentos funcionavam ali, o que não dizer da Madeleine ou Alexanderplatz?

Entregue à própria sorte no centro daquela capital – a antepenúltima da Europa onde nunca colocara os pés -, perguntou a um par de moças sorridentes como podia chegar ao pequeno hotel. Elas indagaram se podiam responder em italiano. Como constataria nos dias subseqüentes, são muitos os albaneses que o falam perfeitamente, mesmo que jamais tenham colocado os pés do outro lado do Adriático, sequer para contrabandear cigarros desde Bari. As mocinhas o escoltaram até o destino – uma mansarda caindo aos pedaços com ares retrô. Na pequena escada que levava à recepção, uma grossa corda de fios de alta tensão descansava sobre os degraus. “Gatos” e gambiarras por ali davam uma mostra do engenho local. Ao longo dois dias, ouviria auto-elogios sinceros ao improviso; à inventividade e à burla esperta. Pouca água os separa da Itália.

No balcão, nada podia chamar tanto a atenção quanto a recepcionista. Não era propriamente bonita, mas tinha aquele apelo das italianas dos anos 60. Era um simulacro de Sophia Loren sem os belos olhos. Pelo contrario, usava óculos de brechó,  era quase feiosa, mas tinha uma bela fenda de decote e era espadaúda em seu tailleur xadrez. Nos dias seguintes, diria que os pais eram macedônios. Tanta exuberância não a impediu de dar a Felipe um quarto onde o wi-fi era precário; o chuveiro uma lástima e o aquecimento, nulo. Mas nada disso obliterava a sensação de que estava onde queria estar. Assim era a vida. Sabia por longa rodagem que nenhuma situação resiste a dois dias até que venha a adaptação – a capacidade do ser humano que mais cultivava. Era própria do reino animal? Era provável. Salvo nos humanos, para perda de filhos.

c) Mundo cão – Kunun – Noivo profissional

Muito pior do que o hotel, era a localização temerária dele. Pois para caminhar da avenida principal até lá, havia de se cruzar becos escuros; gente sussurrando sob a fedentina dos pórticos abandonados e, sobretudo, a possibilidade palpável de levar uma coronhada e ser depenado em plena Tirana. Os homens jovens eram até gentis, mas não era fácil distinguir quando queriam pegar um trouxa ou, de fato, dar prova de amizade. Como era de se esperar, se jogava muito lixo na rua, mesmo numa área densamente povoada. Cães vadios e hostis se contavam às dezenas e convinha evitar as matilhas. As casinhas-caixote multicoloridas quebravam a opressão da uniformidade e a monotonia do paisagismo socialista. Fato é que na noite da chegada, Felipe dormiu tão bem que não sofreria de sonolência durante a tarde seguinte. Nem na outra.

Desde que engordara muito, dormir bem se tornara exceção à velha regra. E foi com esse pensamento que deambulou pelas ruas sob a chuva fina e persistente. Durante o passeio, rememorou o cara que ele fora até poucos anos antes, quando mantinha o peso sob equilíbrio. Isso terminou porque se deixou levar pelo ódio com a sordidez de um sujeito e passou a alimentar dentro de si a fórmula que os albaneses consagram: o kunun. Trata-se de uma dívida de sangue inescapável, como se lê nos livros de Ismail Kadaré. Nesse contexto, não adianta a pessoa devedora pensar em fugir. Isso, aliás, sequer passa pela cabeça do culpado. O kunun tem que acontecer. A tradição tem grande beleza, apesar da truculência. O mais belo era que o código mandava a vítima em pessoa tirar o sangue do infrator. Só de pensar a respeito, Felipe empalidecia.

De resto, passou um domingo dedicado às galerias de arte e chegou a gostar muito de duas telas, mas elas tinham preço mínimo de duzentos euros e isso era muito para ele. O primeiro bom almoço da temporada em Tirana consistiu de frutos do mar. De olho nos convivas do restaurante, constatou que os albaneses, como a maioria dos povos mediterrâneos, bebem proporcionalmente pouco. Não é como a turma de cima dos Bálcãs. Uma garrafa de vinho fazia a festa de cinco convivas. Pediu uma inteira para si e o garçom ainda tentou dissuadi-lo. “É muito, signore”. Saciado, ele caminhou até o hotel e se deteve numa conversa com a recepcionista. Como era exuberante e sedutora. Pena que não ficava um minuto só. O noivo, desempregado, dava plantão no sofá, exalando fumaça e contrito de ironia. Ao preço justo, ele a cederia por meia hora.   

         d) O capo – A próxima etapa – Boxe na televisão

Depois de um passeio noturno, Felipe se perdeu no labirinto dos becos. No meio da escuridão reinante, deparou com um bando de jovens atrevidos. Deliberadamente agressivos – isso era visível. Quando um deles se aproximou sob a vista dos demais para pedir um cigarro, ele varreu com um olhar clínico a gangue de descuidistas e achou com presteza o macho-alfa da súcia. “Ciao”, saudou. E fez um sinal como se estivesse pedindo permissão ao capo para decidir se dava ou não ao rapazola o cigarro em questão. Aquele acolheu bem o gesto de respeito e o reconhecimento da liderança. Com um gesto mal treinado, aquiesceu. Mas Felipe sabia que não podia ter errado o alvo. Se tivesse interpelado o chefe errado, os comparsas o abordariam e iriam querer mostrar serviço ao ultrajado. Códigos do submundo, ele intuiu com acerto.

Os demais dias correriam bem. O corpo pesado não o impedia de fazer longas caminhadas e de cavar espaço para espreitar nas rodas de velhos que assistiam às partidas de xadrez nas praças públicas açoitadas pela água, sob uma copa de guarda-chuvas solidários. Lá pela noite do quarto dia, começou a se informar sobre como chegaria a Skopje, na Macedônia. Mas cada vivente tinha uma opinião diferente. Todo mundo tinha um primo para quem telefonar e se informar. No fundo, os homens procuravam desvelar uma brecha para fazer negócios. Por que não? Que mal há nisso? Mas Felipe estava determinado. Atravessaria a fronteira da Macedônia por terra, apesar de muitos lhe recomendarem pegar um avião. Isso ele não faria por hipótese alguma. Os planos para os Bálcãs ainda iam longe. Disso só ele sabia, mas sem nada detalhar.

Munido de frutas, relaxou diante da televisão. A programação era patética, mas divertida. Por alguns minutos, acompanhou uma peleja de boxe medíocre entre um português e um albanês – que lutava em casa.  Cômica foi a coreografia da entrada dos dois marmanjos no ringue e hilariantes os rapapés dos hinos nacionais; as mulheres com as plaquinhas; os presidentes das confederações, enfim, a armação toda para que todos faturassem solidariamente uns cobres. Até o juiz holandês entrou na farsa. Foi divertidíssimo. Ao despertar, acorreu à amiga da recepção que trajava o mesmo tailleur da chegada. É certo que a cada dia ele estava mais amarfanhado. No sofá, o noivo-cafetão se envenenava com nicotina. No final, por quarenta euros, um taxista simpático o levou ao ponto de passagem da fronteira. Fizera bem em viajar com a luz do dia.  

       e)  Motorista descolado – Na Macedônia – Raul, o concertista

O trecho final da viagem à Albânia lhe ficaria na memória como dos mais memoráveis. Isso porque foi um passeio entre lagos, picos nevados e bucólicas cenas rurais. O motorista extrovertido trabalhara em Londres por alguns anos e chegara com quarenta mil libras esterlinas de poupança. Escolhera uma esposa albanesa e agora tinha carro próprio, um filho, casa confortável e trabalho divertido. Irritava-se com a corrupção dos guardas de trânsito, mas recentemente se articulara com um bom esquema de proteção. Ao final, Felipe saltou com a mala no alto do desfiladeiro e se despediu efusivamente. Fez, então, a pé o trajeto de quase um quilômetro até o controle terrestre. Os fiscais foram simpáticos diante de um passaporte brasileiro, o primeiro que viam naquele ponto, segundo disseram. Olhou para a Albânia. Sabia que um dia voltaria.

Já na Macedônia, ele engatou uma conversa em alemão com outro taxista que o levou até a parada do ônibus para Skopje, bem diante de um posto de gasolina. Ou seja, como não daria para pegar o transporte na rodoviária às treze horas, ele o atalharia meia hora mais tarde, já fora da cidadezinha. No horizonte, assomavam os minaretes das pequenas mesquitas. No ponto aprazado, um casal apontou o grande veículo branco mal ele despontou. A senhora que o orientara tinha as mesmas feições de Madre Teresa de Calcutá, a filha mais ilustre da terra. Felipe veria muitas vezes aqueles traços em mulheres de todas as idades. Até a dentição irregular. Quando o caminho ficou branco de neve, pararam por vinte minutos. A paisagem lembrava a Eslovênia, apesar de ambas estarem nos pontos extremos da finada Confederação Iugoslava.

Na primeira caminhada que fez pelo centro oriental da cidade, escutou o sotaque cantado de um amigo mexicano que fizera na Grécia. Era o pianista clássico Raul de la Mora. Com ele, Felipe passeou por um par de horas e foram até a velha estação de trem, até hoje destruída pelo terremoto e transformada em museu. Depois sentaram, comeram um kebab  chocho e trocaram coordenadas. Há quanto tempo não conversava assim com um latino? Talvez dois meses. Raul lhe falou de Schubert. Sifilítico aos 25 anos, ele morreria aos 31. Em seis anos de doença, compôs com a maturidade de quem viveu décadas. Raul fora aluno de Claudio Arrau. Foi à catedral de Santiago tocar piano em 1991, quando do velório de corpo presente do grande pianista que fora seu mestre. Felipe saiu do jantar direto para a cama do hotel Super 8 e adormeceu.

 

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