Cresci num mundo assolado pela incultura intelectual. Um dia, sem que ninguém me guiasse, cheguei por acaso a uma estante de livros e esse fato mudou radicalmente minha vida. Através dos livros, dos autores que li e transfiguraram minha vida infeliz e corroída pela rotina e o tédio, passei a ver o mundo com outros olhos. Graças à literatura, expandi imaginariamente os horizontes de minha vida e a solidão, que até então fora uma fonte de sofrimento e carência, tornou-se um modo intraduzível de convívio simbólico com mundos remotos e sonhados, não obstante reais para o ser extraviado que eu era.
Mais tarde descobri a figura do intelectual como agente de transformação política da realidade e me persuadi de que ele era a consciência de um mundo alienado, um mundo no qual sempre me senti estrangeiro. Os intelectuais que então me pareciam modelares foram combatentes de ditaduras e tiranias, defensores, por conseguinte, da liberdade e de um mundo mais justo, quando não utopicamente além das formas de dominação que têm castigado a história humana através de milênios. No século XX, muitos desses intelectuais foram marxistas militantes, nas suas muitas e variáveis facções, ou pelo menos companheiros de viagem, com perfil ideológico igualmente variável.
Despertei para a política exatamente quando irromperam os anos de chumbo da última ditadura brasileira. Mero companheiro de viagem, eclético e cético por formação e talvez temperamento, nunca aderi ao marxismo. O mundo dividido pela guerra fria enfim desintegrou-se em 1989. Embora há muito fosse crítico com relação ao marxismo, foi depois disso que conheci as formas mais brutais das tiranias impostas em nome do comunismo ao longo do século XX.
Lendo a historiografia mais recente, renovada pela revelação de arquivos até então inacessíveis, notadamente no que foi a União Soviética, tomei consciência mais precisa dos horrores perpetrados em nome de belos ideais utópicos que marcaram de forma profunda a minha geração e algumas precedentes. Esse balanço crítico, também uma revisão de minhas ilusões humanistas, convenceu-me de que os intelectuais são antes cúmplices e agentes da tirania do que a consciência libertária da sociedade. Em suma, não mais me iludo com eles. O que me conforta na minha descrença é saber que são desmascarados também por intelectuais. De tudo resta, portanto, minha percepção do intelectual como figura ambígua.
No momento em que escrevo, assisto no Brasil a mais uma traição dos intelectuais, em especial os acadêmicos. A expressão “traição dos intelectuais” é uma alusão, claro, ao livro famoso de Julien Benda. No meu entender, e sigo aqui parcialmente a noção do intelectual adotada e defendida por Benda, o papel do intelectual é defender os valores universais do espírito orientados para a busca da verdade, ainda que esta seja sempre parcial e até enganosa. Por isso o intelectual sempre trai sua função quando se converte à militância em nome de uma causa ou ideologia particular. O exemplo mais catastrófico dessa traição consistiu na adesão do intelectual ao comunismo no século XX. Iludido pela crença de servir a uma concepção científica da história, ele negou a religião compreendida no seu sentido tradicional e sagrado para converter-se a uma religião secular que nunca ousou dizer o seu nome.
Muitos intelectuais continuam recusando veementemente essa noção de religião secular. Críticos impenitentes das formas tradicionais de religião, que para eles não passam de formas de conformismo político e alienação humana, teimam em defender e adotar teorias sociais teleológicas, ou indissociáveis de um finalismo utópico, como se fossem baseadas em fundamentos científicos e portanto puramente seculares. A matriz dessa concepção é, claro, a obra de Karl Marx. Marx e Engels, e no rastro deles uma infinidade de seguidores intelectualmente admiráveis, presumiam haver descoberto os mecanismos objetivos do desenvolvimento histórico das sociedades, redutíveis a leis científicas. O materialismo histórico e científico, formulado por ambos, seria a expressão da teoria soteriológica que, no frigir das fantasias revolucionárias, é apenas a transposição do céu judaico-cristão para este mundo.
Se esse suposto procedimento científico fosse de fato adotado pelos intelectuais que se supõem seguidores de uma concepção científica da história, seria muito fácil desmenti-la. Bastaria submeter a história do comunismo às leis postuladas por Marx e Engels. A primeira evidência que salta aos olhos é que nenhuma revolução comunista seguiu nem de longe a escrita traçada pela teoria marxista. Se ela se cumprisse, a revolução teria irrompido nas economias mais avançadas do capitalismo (Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos…). Ora, ela irrompeu precisamente na periferia do capitalismo, fato que em nada abalou a fé dos comunistas. Aliás, todos foram profetas malogrados. Marx, Engels, Lenin e Trotsky, entre tantos, nunca se cansaram de profetizar a revolução na Alemanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos…
A história humana é tão indissociável da indeterminação e do imprevisível que a revolução alemã, tão ardentemente sonhada por Lenin e todos que comandaram a Revolução Russa, resultou na ascensão de Hitler e do nazismo, graças em parte às lutas autofágicas da esquerda alemã: comunistas, social-democratas e anarquistas. Enquanto se matavam, os primeiros seguindo fielmente a política imposta por Stalin, abriam o caminho para Hitler e suas tropas brutais chegarem ao poder. Enredo semelhante ocorreu na guerra civil espanhola, culminando na vitória de Franco e seus seguidores fascistas, que impuseram à Espanha uma longa ditadura. Também no contexto espanhol se repete o que aconteceu antes na Alemanha sob as ordens de Stalin: os comunistas suprimiram seus aliados anarquistas e socialistas facilitando assim a ascensão de Franco. Quem leu o livro de George Orwell com olhos livres, há muito sabe disso. Por pouco Orwell, combatente do grupo anarquista POUM, não foi assassinado. Desde então tornou-se inimigo intransigente de Stalin e do comunismo.
Em suma, as reviravoltas e desastres da história foram tão imprevisíveis que a teoria marxista da história teria sido completamente descartada, se de fato fosse concebida como formulação científica e submetida à prova dos fatos. Como acima observei, é apenas uma religião secular que não ousa dizer o seu nome. De resto, no Brasil continua fresca e renovável, ironicamente nos segmentos mais intelectualizados, sobretudo na universidade pública. Bastaria considerar a crise política e econômica que no momento sofremos. A esquerda tradicional, nas suas múltiplas facções, inventa narrativas golpistas e toda sorte de explicação delirante para justificar o injustificável. É inútil contrapor-lhe os argumentos racionais do tipo que acima intentei esboçar. Razão e fé são ontologicamente excludentes. Por isso desisti de argumentar.
Brilhante. Parabéns pela análise.
Só para reflexão, o que é um “intelectual”????
Hoje, qualquer pessoa com uma minúscula formação de orelha de livro e que consegue decorar três ou quatro frases bonitas e os nomes de alguns escritores famosos já se autodenomina “intelectual”. Também se incluem indistintamente desta categoria cantores, dançarinos, pintores e outros bons ou maus artistas, independentemente do seu conhecimento da história, da filosofia, das coisas da humanidade.
Pior ainda, nossos formadores de opinião, intelectuais, jornalistas e artistas, dissimuladamente ou por omissão, estão cada dia mais distantes dos interesses da população brasileira, tergiversam confortáveis e insipientes nas sombras de redomas geo-midiáticas e/ou na burocracia pública. Já não defendem utopias ou direitos, defendem verdadeiras fantasias, placebos ou pilulas tranquilizadoras de consciências, como Criança Esperança e outros projetos sociais de abrangência e efetividade duvidosa e/ou inócua.
Historicamente de concreto podemos constatar o seguinte Axioma do Subdesenvolvimento “A sociedade que negligencia educação fundamental pública de excelência a suas crianças será sempre vulnerável, politicamente instável, socialmente pobre, com elites medíocres e corruptas.”
Livre Iniciativa, competitividade e meritocracia trazem prosperidade, o resto é esse cartório de privilégiados políticos, comparsas e apadrinhados, é o progredir aos espasmos, sempre limitado pelos que andam na frente e fazem seu dever de casa com dignidade e decência para com os seus.
Excelente análise! Precisa e clara. Acho que retrata o sentimento da maioria que dedica-se aos estudos da sociologia, política e filosofia, e vê um debate tão pobre, recheado de dogmatismos, dentro dos locais onde o pensamento crítico deveria ser a regra. Parabéns.
Caro e querido Fernando!
Rendendo a homenagem devida ao estilo sempre elegante e cativante (o que não é uma novidade em tudo o que você escreve) do texto, confesso que fiquei meio cabreiro com a afirmação de que, no momento, “assisto no Brasil a mais uma traição dos intelectuais, em especial os acadêmicos”…
Bem, como ainda sou um deles, ainda que um pequeno e retraído intelectual de província, fiquei com uma provocação me coçando a ponta da língua e terminei não resistindo à tentação de fazer como o finado e saudoso Henfil: Nomes! Quero nomes!
Abração,
Luciano
Meu querido Luciano:
Incorrigível no seu estilo da dissimulação, você se revela antes de tudo pelo avesso. Pelo menos quando fala de si próprio, o que é de resto frequente. Não leia nisso uma crítica negativa, pois um dos meus heróis, Montaigne, fundou um gênero, que praticamos, falando de si próprio. Mas conviria lembrar que falava sempre de si próprio buscando expressar o que há de universal na nossa singularidade. Mas vamos ao que você me cobra. O intelectual trai sua condição quando trai a verdade objetivamente aferível. Você sabe que não me refiro a nenhuma verdade universal ou absoluta. Refiro-me a verdades de fato. Confesso praticante da empiria, você não precisa de quem lhe reze o terço. Encurtando a passada, o editorial assinado por Sérgio Buarque, assim como o breve discurso de Cristovam Buarque justificando seu voto no senado em favor do impeachment, condensam as evidências empíricas imediatas que poderia apresentar em defesa do que chamo de a traição dos intelectuais. Você sabe que historiadores renomados, assim como intelectuais que muito admirei, estão comprometendo seu nome e obra publicando livros ou se pronunciando publicamente contra um processo legal, mas também político, que chamam de golpe. Comparar o processo movido pelas instituições democráticas contra o governo Dilma Rousseff com o golpe de 1964 é pura e simples traição do papel do intelectual. É corromper a linguagem política, que se torna inútil quando a semântica é enxovalhada de forma tão acintosa. É o que chamo de orientação ideológica sectária. Por isso desisti de argumentar contra esses intelectuais. Eles pontificam nas universidades brasileiras. São tantos, Luciano, que seria impossível declinar nomes. Mas você sabe muito bem de quem falo.
Amigo Fernando:
Meus melhores cumprimentos pelo artigo. Nada teria a acrescentar e, muito menos, contestar. Mas, para não ficar só na louvação, faço-lhe uma glosa: eu não falaria em “traição da esquerda tradicional”, porque, simplesmente, não considero o PT como um partido verdadeiramente “de esquerda”. Lula, sua principal figura, nunca o foi – uma das provas foi a sua resistência a promover o retorno dos exilados da ditadura, fato bem comprovado por vários depoimentos. Outra foi o abandono do partido por tantos dos seus fundadores, esquerdistas assumidos. Entendida a Esquerda hoje como, essencialmente, uma moral, os propagadores do discurso do “golpe” são, na verdade, usurpadores e traidores do ideário da Esquerda.
Grande abraço do seu amigo esquerdista (reciclado).
Meu caro Clemente:
Concordo com todas as críticas que você faz ao PT. Aliás, já escrevi no mural do Facebook que ele desacreditou as melhores tradições da esquerda (da qual, como você, também me sinto participante) ao destruir o capital ideológico e ético com o qual era identificado.
Explico melhor o uso da expressão “traição dos intelectuais”, procedente do livro famoso de Julien Benda. Em primeiro lugar, muitos dos intelectuais de esquerda, militantes ou associados ao PT, optaram pela cega tutela ideológica contra todas as evidências que liquidaram o capital ético do partido. Em segundo, a adesão ou cumplicidade com o PT vai além dos intelectuais militantes do partido. As universidades, sobretudo as públicas, aliaram-se servilmente ao PT, além de tramarem narrativas golpistas e similares, para usar o jargão relativista que corrompe a cultura acadêmica, promovendo atos de censura à liberdade de pensamento e difamando muitos dos que lutam para manter as instituições democráticas e punir a corrupção que se instalou em todas as instâncias de poder. É claro que há resistências e reações individuais, mas o discurso e o poder institucional hegemônico estão francamente nas mãos de petistas e associados.
A universidade brasileira estava identificada com outra tradição política. Apesar da nossa tradição autoritária, ela foi no geral uma força decisiva nos projetos de mudança qualitativa do Brasil. Como personagem e estudioso, você pode testemunhar sobre isso muito melhor do que eu.Quando ela silencia contra um poder corrompido ou se submete à tutela de um partido, ela e seus intelectuais traem as funções fundamentais da inteligência pautada pelo humanismo democrático: a defesa das instituições democráticas em geral e a defesa da liberdade de pensamento e expressão, em particular.
Clemente: Volto para sugerir que você leia a resposta que escrevi acima ao comentário de Luciano Oliveira. Sugiro-lhe essa leitura adicional por acreditar que ela, somada ao que lhe escrevi, fundamenta melhor minha crítica à traição dos intelectuais.
Gente !!!!! Do que vale ser intelectual numa sociedade que não oferece educação fundamental publica de excelência a suas crianças ????. Indignem-se senhores !!!! Competência só existe onde existe competição em alto nível. Velhas trincheiras estacionárias tipo direita e esquerda, só servem ao propósito de quem quer criar confusão e se aproveitar.
Axioma do atraso e do subdesenvolvimento “A sociedade que negligencia educação fundamental pública de excelência a suas crianças será sempre vulnerável, politicamente instável, socialmente pobre, com elites medíocres e corruptas. Junto com os diversos setores da sociedade os intelectuais ajudam formar a curva de prosperidade de uma nação, todo ponto acima e fora dessa curva se transforma em elite privilegiada.
Magno texto, Fernando. A tristonha intelectualidade que submete a verdade – no definição que você adota no texto – ao credo esquerdista é ainda mais patética quando situa o PSDB no espectro ideológico de direita e, para defender ou relevar as canalhices e a incompetência dos governos do PT, afirma que elas se devem às concessões exigidas por setores-da-direita-reacionária (um mantra!) e que o PT e Lula não são de esquerda. Ora, só no mesmo abaixo do Equador que a social-democracia porcamente tropicalizada pelo PSDB não é considerada esquerdista; mas, de fato, o PT e Lula não são de esquerda, nem de direita – são oportunistas, a roupagem populista e carismática de que as “esquerdas puras” precisavam para finalmente chegar à presidência. Assim, o PT, sem ter exatamente uma teoria política definida mas com uma praxis política singular (anômala e aberrante), amalgamou sim os esquerdismos mais rombudos florescidos na idiotia comunista latino-americana, repaginada com um protuberante antissemitismo, reforçada pelo antiamericanismo bocó e costurada por bandeiras estranhas à esquerda tradicional, como o feminismo e a igualdade racial, mas que se fazem necessárias quando o pensamento de esquerda percebeu que os proletários se uniam, sim, mas para comprar a casa própria e viajar nas férias com os pacotes da CVC. Flutuando numa galaxia distante da realidade, a academia coagulou o pensamento, imolando-o num altar das imposturas ideológicas que substituíram a especulação intelectual, a investigação sobre a verdade e, vamos combinar?, a dignidade.
Já a havia lido, Fernando. E me declaro plenamente esclarecido. Na verdade, não fiz um reparo ao seu artigo. Apenas uma glosa, nas duas primeiras acepções da palavra, como constam do Dicionãrio Aurélio.
Abraço.
O comentário será simples. Publiquei na minha página do facebook, para que mais pessoas se deliciem com sua obra. E nos outros comentários; está, aí uma boa reflexão na pergunta de Raymundo de Oliveira: Só para reflexão, o que é um “intelectual”????
Meu caro Nealdo Zaidan:
Li o comentário de Raymundo de Oliveira, a quem sou grato pela leitura, propondo a pergunta que evitei enfrentar de forma direta. Ele próprio esboça uma resposta e por certo todos temos alguma noção refletida ou não do que seja essa figura complexa e discutível que é o intelectual.Evitei a questão porque há muitos modos de conceituar o intelectual. Adentrar por esses labirintos seria tarefa para um outro artigo, que com certeza suscitaria infinitas variações e sobretudo divergências. Há dois sentidos do termo implícitos no meu artigo. O primeiro compreende o intelectual enquanto formulador de teorias e ideias que influenciam o movimento da história. Seria o caso de alguns que cito nominalmente: Marx, Engels, Lenin, Trotsky…
Outra categoria de intelectual compreende aqueles cuja função na sociedade é antes de tudo assimilar ideias e teorias, além de profissionalmente difundi-las. Esse tipo de intelectual opera antes de tudo na universidade e noutras instituições culturais. Sei que minha resposta não é suficiente, mas esclarece melhor o conceito de intelectual que usei.