Frederico Toscano (*)

Iluminura com músicos nas Cantigas de Santa Maria, século XIII-XIV.

Iluminura com músicos nas Cantigas de Santa Maria, século XIII-XIV.

Continuando com nossa viagem na fascinante história da música, conversamos no artigo anterior sobre as origens da música e sua evolução até o primeiro milênio da nossa era. A transição da música da Idade Média para a do Renascimento é mais difícil de identificar, pois estilos musicais se desenvolveram gradualmente e de diferentes formas pela Europa. Em termos de arquitetura, pintura e escultura, pode-se dizer que o Renascimento teve início na Florença do século XV, num movimento de redescoberta e valorização das referências culturais da antiguidade clássica, que inspiraram mudanças deste período em direção a um ideal humanista e naturalista.

Obras de compositores influentes como Guillaume Dufay (1397-1474) e Josquin Desprez (1450-1521) mudaram consideravelmente o estilo musical no fim do século XV e início do XVI. Considera-se, geralmente, 1450 como o ano adequado para separar a música medieval da renascentista. Considera-se em geral que a música renascentista estende-se até as experiências de Claudio Monteverdi (1567-1643) e seus contemporâneos com os novos gêneros “barrocos” da ópera, da sonata e do concerto no início do século XVII, embora países como a Inglaterra tenham permanecido num rico período de “Renascimento” musical até duas ou três décadas mais tarde.

A música que subsistiu a partir do ano 1000 se voltou para o sagrado. O chamado “cantochão” (parte musical liturgia católica, em latim ou grego) foi de longe o tipo mais comum de música sacra durante esse período, sendo entoado em todas as igrejas, mosteiros, catedrais e capelas. Era uma música monofônica, ou seja, música com apenas uma única linha melódica, e podia ser cantada por uma ou várias vozes. A maioria dos músicos de igreja tinha que saber de cor centenas de cantos, como parte de seu treinamento musical, mesmo depois do monge beneditino Guido d’Arezzo (c. 992-1050) ter criado a pauta musical (vide artigo anterior).

Criada ao longo desse período, a música secular (sem temática religiosa) e monofônica (com melodia sem acompanhamento) só foi julgada digna de ser preservada, em coleções escritas, a partir do século XII. Os compositores seculares mais famosos (que não serviam à Igreja) eram os trovadores (artistas de origem nobre que compunham e entoavam cantigas) e os bardos (comentados no artigo anterior) na França medieval.

A música e poesia em geral expressavam ideais do chamado “amor cortês” – e aqui um parêntese para esse conceito importante. O amor cortês era uma ideia europeia medieval de atitudes, mitos e etiqueta para enaltecer o amor, e que gerou vários gêneros de literatura medieval, incluindo o romance. Surgiu nas cortes de duques e príncipes das regiões onde hoje se situa ao sul da França, em fins do século XI. Em sua essência, porém, o amor cortês era contraditório, mesclando o erótico e o espiritual: um amor ao mesmo tempo ilícito e moralmente elevado, passional e autodisciplinado.

Voltando à música em si, pouco se sabe sobre como ela era interpretada, mas é possível que as canções fossem acompanhadas por uma viela (precursora do violino com cinco cordas), que produzia certo som que lembra uma gaita de foles. O surgimento das formas polifônicas de composição (músicas com muitas vozes), a partir do século XII, aconteceu nas igrejas, com cantores improvisando sobre o cantochão e adicionando outras partes vocais em ocasiões especiais, como Natal ou Páscoa.

Leonin (c. 1150-1201) e Perotin (c. 1160-1236), da catedral de Notre-Dame em Paris, são considerados autores do primeiro livro de música (para duas, três e quatro partes) a circular de forma manuscrita. Por volta do século XIII, um amplo repertório polifônico já era encontrado nas maiores igrejas da Europa, e formas seculares de música também eram compostas em várias partes. No século XV, a música polifônica difundiu-se, passando a integrar celebrações religiosas e cortesãs importantes.

Ao lado de novas formas seculares ou profanas de canção no século XVI, como o madrigal, a música instrumental alcançou outro status, sendo muito mais registrada do que na Idade Média. Durante o Renascimento, cresceu o envolvimento das classes mercantis na música; a invenção da impressão da música por Ulrich Hahn (c. 1425-1478) e Ottaviano Petrucci (1466-1539) permitiu que as partituras fossem vendidas e distribuídas com mais facilidade, fidedignidade e menor custo que nunca, embora grande parte continuasse a ser reproduzida na forma manuscrita.

Ricos mecenas do século XVI encomendavam música vocal e instrumental para todo tipo de combinações musicais. No Renascimento, nasceram “famílias” de instrumentos que abrangiam vários tamanhos de um mesmo tipo (um conjunto de flautas doces, violas da gamba ou vozes), embora conjuntos mistos de cordas, sopros e vozes também fossem formados. As danças, como a majestosa pavana e a saltitante galharda se tornaram bastante populares.

A música vocal profana era escrita nas línguas nativas e, em geral, tinha um tema amoroso. O madrigal nasceu no século XVI e destacou-se pelo uso da descrição musical acompanhando o texto, conhecida como “imagem sonora”. No madrigal, a música era aplicada a uma determinada palavra expressando o seu sentido. Assim, por exemplo, atribuía-se à palavra “riso” uma passagem com notas rápidas, como numa gargalhada. Na palavra “suspiro”, aplicava-se uma nota que recaía numa nota inferior. Uma melodia crescente correspondia à palavra “céu” (elevando-se para o alto, cada vez mais aguda). A música “descia” para corresponder à palavra “profundo”.

Durante a Idade Média e o Renascimento, aqueles que compunham música eram em geral contratados para fazer algo mais, como, por exemplo, trabalhar como sacerdotes. Para compor e escrever música, era preciso ser musicalmente letrado em certo nível, sobretudo para a composição de polifonia (técnica que usa duas ou mais vozes preservando melodia e ritmo individualizados). As pessoas que recebiam educação eram empregadas pela Igreja, vivendo em mosteiros ou conventos, ou por membros da nobreza.

A Reforma Protestante, no século XVI, teve inevitáveis consequências para a música. Os reformadores destruíram o máximo possível de composições católicas, substituindo-as por estilos novos e mais diretos, sobretudo na Inglaterra. Isso gerou incontáveis encomendas para os compositores ingleses do período.

Principais compositores

Uma figura feminina se destaca na música do século XII: a escritora, poeta, poeta, líder religiosa (canonizada pela Igreja Católica), diplomata e compositora Hildegarda de Bingen (1098-1179), que deixou a mais antiga coletânea de obras musicais assinadas. Suas realizações são notáveis – e únicas para uma mulher da época. Sua música contemplativa é composta de linhas homofônicas de textos religiosos; não se trata de cantochão, mas de uma forma específica que explorava padrões curtos variados e repetidos.

Por se tratar de um padre, é surpreendente que Guillaume de Machaut (c. 1300-1377) seja autor de tantas canções sobre amor não correspondido. O infeliz amor por uma adolescente, a nobre Péronne, inspirou sua música secular e poesia em Le voir dit. Seu característico estilo musical inclui melodias intricadas e dissonância sombria. Contudo, foi a Messe de Notre Dame em quatro partes que determinou sua reputação como compositor importante. Quem tiver mais curiosidade sobre a arte musical de Machaut pode visitar o ensaio (com áudios) publicado neste link: http://euterpe.blog.br/historia-da-musica/o-ultimo-poeta-musico-e-sua-missa.

Guillaume Dufay (1397-1474) foi um músico belga de talento imensamente admirado em toda a Europa. Suas composições incluem exemplos de quase todos os gêneros musicais da época, entre eles algumas das mais antigas e primorosas missas, como a missa “L’Homme Armé”, e canções profanas, como “Adieu ces bons vins de Lannoys”. Mesmo sendo um compositor medieval, a obra de Dufay antecipa o estilo mais expressivo e o horizonte harmônico mais vasto do Renascimento.

Josquin Desprez (1450-1521) foi celebrado em vida e postumamente como um dos maiores músicos do Renascimento. Contribuiu para diversos gêneros, incluindo motetos, missas e chansons francesas e italianas. A ampla difusão de sua música tornou-se possível com a invenção da impressão de partituras no começo do século XVI, e hoje sabemos mais sobre sua música do que sobre sua vida. A missa “Pange Lingua” é uma das mais sofisticadas e belas obras do compositor.

A carreira musical de Thomas Tallis (c. 1505-1585) atravessou os reinados de quatro reis ingleses: Henrique VIII, Eduardo VI, Maria I (católica) e Elizabeth I (protestante). O período assistiu a grandes mudanças na vida religiosa e no estilo musical. Boa parte da produção de Tallis foi eclesiástica, embora tenha escrito algumas obras seculares. Sua flexibilidade como compositor certamente garantiu sua permanência como figura de proa na música inglesa. O moteto Spem in alium talvez seja a obra mais conhecida de Tallis.

Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594) talvez seja o nome mais familiar de todos os compositores do Renascimento tardio, e sua música sacra é amplamente considerada o pináculo do estilo contrapontístico, de sonoridade rica e flutuante. Centenas de suas obras sobreviveram ao tempo, muitas das quais foram publicadas durante sua vida. Embora a maioria delas tenha sido produzida para uso no culto religioso, também compôs cerca de 100 madrigais, seculares e sacros. Seu domínio do contraponto influenciou a produção de sucessivas gerações, que usaram sua obra como modelo. A música de Palestrina caracteriza-se por elegantes linhas melódicas em todas as partes vocais. A missa “Papae Marcelli” é uma de suas obras-primas e homenageia o papa Marcelo II.

Católico em terra protestante, a reputação de William Byrd (c. 1540-1623) era tamanha que o livrou das sérias consequências de manter sua fé sob a lei inglesa. As obras religiosas de Byrd mostram uma refinada técnica contrapontística, especialmente no uso da imitação. Sua principal realização foi a fusão do contraponto renascentista com elementos expressivos da música inglesa. Desde sua redescoberta no século XX, as obras de Byrd tornaram-se muito apreciadas pelos músicos, que as consideram o auge da música britânica do Renascimento.

Giovanni Gabrieli (1554-1612) e seu tio Andrea Gabrieli (1532?-1585) foram compositores prolíficos e inovadores do período final do Renascimento. As obras corais para vozes e instrumentos de Giovanni, sobretudo as destinadas para serviços religiosos, fazem uso de uma ampla variedade de texturas e efeitos acústicos. Embora grande parte de sua produção seja sacra e vocal, ele também compôs várias obras para teclado e madrigais.

Esta lista não é exaustiva, existindo inúmeros outros compositores de excepcional talento neste período, como Philippe de Vitry (françês, 1291-1361), John Dunstable (inglês, 1390-1453), Johannes Ockeghem (belga, 1414-1497), Jacob Obrecht (holandês, 1457-1505), Clément Janequin (francês, 1485-1558), John Taverner (inglês, 1490-1545), Orlande de Lassus (belga, 1532-1594), Giulio Caccini (italiano, 1550-1618), Tomás Luis de Victoria (espanhol, 1548-1611), John Dowland (inglês, 1563-1626) e Carlo Gesualdo (italiano, 1561-1613).

No próximo artigo, conversaremos sobre a era barroca, que assistiu ao nascimento da ópera, à expansão da orquestra e ao florescimento da música instrumental, especialmente para violino e teclado.

(*) Frederico Toscano trabalha no Ministério da Ciência e Tecnologia, é mestre em administração e autor do blog Euterpe [http://euterpe.blog.br], especializado em música clássica.