Estimada Dra. Telma,
Talvez por nunca ter me dirigido a você por escrito (salvo nos cheques nominais de nossos começos), eis que me saiu esse ´doutora` tão anódino – um preciosismo que você saberá relevar, se é que atribuirá a tal deslize alguma importância. O provável aliás é que não. Seja como for, acatei sua recomendação para que lhe endereçasse uma ou duas missivas enquanto durar essa minha viagem à Europa como forma de não perdermos o ritmo que vínhamos ganhando mais precisamente desde meados do ano passado, quando deixei claro que me comprometeria de vez com a análise e que passaria a colocá-la no centro de minha vida.
Se essa decisão não configurou grande mudança aparente, devo admitir que houve uma angulação de foco nada banal. E isso porque em dado momento me pareceu patente que, depois de quase doze anos de convívio, não se justificava que continuasse a sucumbir à tentação de impressioná-la, entretê-la, enganá-la ou até mesmo de seduzi-la. Ao me colocar palidamente sob a lâmina do microscópio e me abstrair do que posso vir a dizer de interessante com o fito de lhe arrancar um sorriso, creio que mudamos de patamar e, com algum alívio, concluo, afinal, que você é mero instrumento de interlocução, alguma coisa entre uma parede e uma escarradeira.
Não, não fique chocada com a contundência da linguagem. Digo parede porque é muda e altiva. Escarradeira porque ali despejo as secreções de minhas angústias multiformes. Por amor à síntese, você é uma parede onde se escarra e que podemos lavar depois com urina abundante, consoante a bebida. Pronto, está dito. Pois bem, essa longa introdução apenas se prestou a confirmar que acatei sua sugestão e, vez por outra, vou mandar um sumário executivo – desculpe, é deformação profissional – para que eu me mantenha aquecido e não caia em seu esquecimento, agora que você congrega pacientes de novo coturno, gente que achava que a terapia era mais adequada a filhas obesas ou narigudas. Coisas do novo Brasil que se configura, é o que se diz.
Veja bem, comecei mais essa viagem internacional por modorrentas cidades alsacianas onde me entediei com as belezuras dos telhados inclinados, vestígios de ninhos de cegonha e janelinhas ornadas por flores de mil cores, apesar do frio. O Riesling não é vinho que me atraia e você sabe que tenho horror a toda gente que castiga o idioma, mesmo quando este não é o meu. Certo é que os alsacianos espezinham o alemão e se lançam em construções infelizes quando falam francês.
O lado muito bom de tudo foi que, bem diante da rosácea da catedral de Strasbourg, me indispus em definitivo com Darcy e não foi sem alívio que nos despedimos em torno de um chucrute colossal de que só comemos as costelas defumadas e o joelho gorduroso, ignorando as salsichas que esfriaram, definharam e sumiram. Por muito que me conheça, você não pode avaliar o quanto foi uma libertação ver a cabeça grisalha de Darcy sumir nas vielas que margeiam os canais, quem sabe para sempre. Fiz hora na rua e, chegando ao quarto, já não tinha vestígio algum que me lembrasse a presença pesada de uma pessoa que, em definitivo, nada tem a somar à minha vida.
No dia seguinte, atravessei o Reno de alma renovada e devolvi o carro em Frankfurt, louco para fazer alguma coisa por mim, como você gosta de dizer. Voei então para a Hungria. Pois bem, serei sintético quanto a essa parte de meu roteiro já que ele foi pura evasão. Mas asseguro que Budapeste estava linda e me vali das temperaturas amenas do inverno para fazer programas ao ar livre. Como já não tenho muito o que ver no lado de Buda, aquele colossal tédio austro-húngaro, resolvi ler Imre Kertész nas termas de Pest. Assim, chegava ao Széchenyi Fürdö mal eles abriam as portas e lá ficava com o corpo encoberto a três quartos pela água tépida, lendo “Sem destino” e de olho nas chances de uma paquera magiar, o que terminou acontecendo. Quer detalhes? Digo agora como você: nada de relevante, foi só prazer.
Terminado esse reconhecimento inicial pela Europa Central, vim encarar a vida concreta em Londres, missão sobre a qual já tinha te falado ainda na última sessão do ano passado. Conduzi as entrevistas no hotel Park Lane e tive a ventura de encontrar as pessoas certas ao cabo de apenas dois dias. O mundo está cheio de talentos objetivos, digamos assim. Vamos ver se se sustentam nas subjetividades da conversa com os clientes. De qualquer sorte, como nosso serviço de pesquisa funcionou com perfeição, instruí o escritório a emitir a nota de serviços e decidi que queria ver e viver mais. Além dos limites da livraria Hatchard´s e dos salões da Richoux.
Só para garantir a paz, excluí Darcy de minhas redes de compartilhamento e cá estou eu hoje na Escócia onde, aqui sim, o destino nos reserva uma pauta mais substantiva. Reato há dois dias, portanto, com uma cidade que não via há décadas e que, desde o ano passado, eu namorava quando me debruçava sobre mapas. Por que será? Está curiosa? Trata-se da velha Edinburgh. Veja bem, a primeira e única vez que aqui estive foi com meu primo Décio, numa memorável viagem terrestre na companhia de dois amigos italianos que viviam em Oxford: os irmãos Paolo e Luigi Piana. Ambos eram filhos de um peninsular que fizera fortuna na Venezuela com o fornecimento de maquinário para a indústria do petróleo e traziam consigo um saquinho de cocaína para desfrute próprio.
Indiferente aos riscos, nada disse ao primo para que não perdêssemos a companhia deles, logo a cota para o aluguel do carro. Mas no decurso da viagem, foi inevitável que ele constatasse que o estado de ambos não se explicava apenas pelas garrafas de Bells que bebíamos no gargalo. Para chegarmos ao fim do périplo, tivemos que separá-los à noite porque, caso contrário, eles a passariam cheirando pó. Agora tudo é muito diferente. Guiado pelo instinto, achei em Haymarket um hotel barato. Fica em Coates Gardens, na primeira casa à esquerda de quem vem da estação ferroviária. Na esquina, pontifica a loja Drummond, de máquinas de costura. Já pensou que delícia de anacronismo? Coisas do Reino!
Pois bem, me deram um quarto no subsolo e da janela vejo as pernas dos poucos passantes que transitam ao longo do casario uniforme e compacto onde já morou o escritor Walter Scott. O frio é rigoroso e penetrante. Tanto ou mais do que os piores que peguei no outono passado, quando me aventurei em novembro pela zona do Baikal, na taiga siberiana. Isso porque, apesar do termômetro benevolente – zero grau -, o açoite do vento é tremendo. Ademais, presenciei uma interessante combinação: tarde ensolarada por quase duas horas, seguida de neve ao entardecer. O fenômeno se deve a que logo ao norte, pelos lados de Aberdeen, tem nevado abundantemente. Aqui chega, portanto, uma neve encorpada das montanhas e os flocos parecem imensos na luz dos faróis dos carros.
Amo a neve, você sabe. Ontem mesmo, ao sair do restaurante chinês – onde tomei sopa de pimenta vermelha, seguida de peixe branco com cogumelos pretos e lâminas de gengibre amarelas -, os flocos eram tão pesados e nutridos que chegavam a doer quando batiam no rosto. Simplesmente não dava para encarar o trajeto de frente para chegar ao hotel. Posicionei-me na diagonal e foi assim que evoluí até chegar em casa. O método talvez diga muito de meu próprio caminho. Sempre joguei melhor com o cavalo, embora também soubesse me valer dos bispos. Não é à toa, portanto, que nunca fui bom enxadrista com as torres, o que diz algo de meu estilo oblíquo. Lá estou eu tentando te seduzir de novo com metáforas pretensamente inteligentes, sôfrego para que você me diga, afinal, que ainda sou um homem interessante. Ou não? Enfim pouco importa, já a vejo granítica e indevassável.
Bem, concluí afinal que tenho mesmo certa birra para com os tais excluídos, você bem sabe disso. Prefiro pensar que todos nascemos excluídos e que a inclusão é uma conquista a ser feita sozinho, estando o Estado ali só para não atrapalhar, raramente para ajudar. Veja só, na entrada da livraria Waterstones, na manhã de hoje, um mendigo esmolava com um copinho da Starburcks diante de si. Enquanto eu olhava a vitrine, vi que ele falava sozinho numa língua eslava. Apurei o ouvido. O filho da puta tinha um celular colado à orelha sob a boina de lã. Que por sua vez estava sob o capuz impermeável. Quando as pessoas saíam de seu raio de ação, ele retomava a conversa com alguém do outro lado da linha. De vez em quando, ria tanto que não continha a tosse encorpada dos fumantes. Mas quando alguém passava, estendia a mão e falava como um suplicante desvalido. Biltre, parasita.
Subi para ler os jornais e tomar um chá. Quando saí, mais de duas horas depois, a mesma cena. E o pior é que ainda tem um monte de idiotas que se apieda e estaca para conversar ou dar uns “muffins”. Como me valho cada dia mais das prerrogativas da idade e do físico decadente, me fiz de descuidado e, ao passar, chutei com a lateral do pé o copinho da grife odiosa. Duas ou três moedas correram pela calçada. Fiz teatro: “Oh dear, I am so sorry, young man”. Um passante ou outro recolheu as moedas e ele ficou me olhando esquisito, como se tivesse entendido que a colisão não tinha sido fortuita.
Mas não é sobre isso que queria te falar. O ponto central, que talvez venha adiando, é o seguinte. Foi aqui em Edinburgh que tive uma conversa determinante para minha vida. E cujo alcance eu levaria décadas para assimilar. Pois foi aqui, repito, que falei com Décio, em 1977, sobre o que ocorria no Brasil – onde não voltava há quase ano e meio. Lembro nitidamente quando ele narrou que meus pais tinham saído do edifício Rivas e que papai comprara um novo apartamento no Toronto. Tinha mais: deixara o velho emprego na autarquia e, segundo ele, botara a cabeça para funcionar e resolvera ganhar dinheiro à altura de seus talentos.
Se tudo isso me pareceu meio estranho, o caldo entornou com o que estava por vir. Pois eis que ele disse que, ao voltar ao Brasil, um carro zero quilômetro me esperava na garagem. Que eu nada dissesse sobre o segredo para não estragar a surpresa. Ora, quem ficou surpreso fui eu. Achei as notícias péssimas. Era como se uma parte do Recife tivesse sumido na minha ausência e, com ela, uma fração importante de minha vida. Mas para Décio aquele aburguesamento de vida era tudo a que se podia almejar.
Meio bêbado, confessei que o arranjo não me cheirava bem. Minha intuição dizia que aqueles eram ventos freantes. Eu teria que fazer concessões. Teria que manobrar para não colidir de frente. Teria que avançar em diagonal. Um carro? Acaso era eu um índio à procura de espelhos e miçangas? O que havia de errado com o ônibus 27, o de Nova Descoberta? O que me pediriam em troca? Do que eu deveria abdicar? E as brigas domésticas sem fim entre eles? Décio foi conciliador como tentam ser os muito idiotas. Discorreu, sorrindo, sobre o poder curador do dinheiro. Ora, até as querelas tinham amainado. Afinal, o progresso une. Como continuar brigando se tinham móveis a comprar e apartamento a decorar? Que eu deixasse de ser esquisito, me disse. Que me rendesse de uma vez por todas aos atrativos do capitalismo – foi essa a expressão beócia que usou. Isso tudo aconteceu em torno de uma garrafa de Bells em algum lugar aqui perto, minha cara. Dentro de um tempo, se completarão quarenta anos. O que quer que seja importante no final da vida, foi em Edinburgh que se jogou uma cartada no começo da minha.
É daqui que espero escrever um longo capítulo – tão longo quanto puder – sobre o fechar das cortinas. Não, não foi por acaso que cheguei a essa bela cidade. Até quarta-feira, Telma.
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Não tenho nenhuma parenta conhecida com esse nome, caro Fernando. Muito menos psicanalista. A não ser que seja uma dos descendente do meu tio-avô, Espiridião Rosas, que migrou da Paraíba para o Rio, e acabou Marechal (perdemos a pista deles).
Mas mesmo que a Telma Rosas seja puro fruto da sua imaginação prodigiosa, rendo-lhe as minhas homenagens, por ter, entre seus pacientes, pessoa tão inspirada, divertida e sensível como o engenheiro Couceiro.
Aguardo, com interesse, o desenrolar das suas aventuras.
Querido Clemente,
Seu belo sobrenome certamente não foi lembrança lá tão fortuita, mas a constatação da coincidência só me ocorreu depois de ver o texto publicado. No fundo, imagino que essa seja a conclusão de João Rego, o mago desses labirintos, talvez fosse só uma forma de chamar tua atenção e acolher o simpático comentário. Vamos ver como Couceiro se vira doravante. Meus personagens começam a me sufocar. Não tardará e farei com que se encontrem.
Grande abraço,
Fernando